SNS e ideologia

(Carlos Esperança, 27/12/2018)

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(Se a tralha passadista do PSD e do CDS votou em 1979 contra a criação do Serviço Nacional de Saúde, a que título, hoje, 2018, haveria de ser a favor do dito? Seria prova de uma grande evolução ideológica, no sentido da Justiça, o que está longe de acontecer, antes pelo contrário. Foram contra o SNS, hoje ainda são mais contra, e tudo fazem para o destruir e fazer da saúde um negócio para os privilegiados que a podem pagar.

É por isso que me enfureço quando vejo a Cristas e outros direitolas a apontar falhas ao SNS, como se o quisessem melhorar. Não, apontam-lhe as falhas para nos convencerem que a privatização da Saúde é o caminho a seguir.

Comentário da Estátua de Sal, 27/12/2018)


Quem entrou na função pública sem a mínima assistência médica ou medicamentosa, o que sucedeu ainda na maior parte da década de sessenta do século passado, exceto para a tuberculose, com um desconto obrigatório, sentiu que o Serviço Nacional de Saúde (SNS), preconizado pelo MFA, e institucionalizado na Lei nº 56/79, universal e gratuito, era a continuação da Revolução de Abril, que conduziu Portugal aos melhores índices de saúde dos países civilizados, deixando os mais vergonhosos lugares na mortalidade infantil e materno-fetal terceiro-mundistas a que se resignara.

Foi, aliás, na educação, com apenas quatro anos de escolaridade obrigatória, e na saúde, que as maiores conquistas foram alcançadas.

Foi difícil instituir o SNS, onde tubarões da medicina, alguns do PS, tudo fizeram para o impedir. Opuseram-se os deputados do PSD e do CDS, incluindo Marcelo Nuno Rebelo de Sousa, homónimo do atual PR, o que não invalida o papel decisivo do secretário de Estado da Saúde, Albino Aroso, que defendeu a saúde materna e reprodutiva da mulher, com forte animosidade dentro do seu partido (PSD).

A Lei de Bases de 1990, com Cavaco Silva, travou a gratuitidade do SNS estabelecendo o carácter “tendencialmente gratuito”, com introdução de taxas moderadoras, e o tempo encarregou-se de a desatualizar, pelo que a sua atualização se impõe.

Nunca tantos deveram tanto a uma lei, a que o nome do ministro, António Arnaut, ficou justamente ligado.

Há, no entanto, algumas perplexidades que rodeiam a nova Lei de Bases da Saúde que a ministra Marta Temido, com notável currículo académico e sólidos conhecimentos do setor, apresentou.

– Surpreende que a presidente da Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde, Maria de Belém Roseira, depois de ter apresentado o seu estudo pretenda pressionar a ministra a executar as suas propostas como se a Comissão se mantivesse depois de as apresentar, não tivesse meros efeitos consultivos e devesse ser totalmente aceite por uma ministra que nunca esteve ligada ao setor privado da saúde e é insuspeita de defender interesses de grupos privados.

– Surpreende o PR, sem funções executivas, a exercer uma pressão indevida ao querer que a lei, ao contrário da do consulado de Cavaco Silva, tenha o apoio dos dois partidos mais representativos do espetro político (só falta referir-se ao PSD).

Já é tão difícil contornar os interesses parasitários e ideológicos que querem transformar o SNS num mero pagador da medicina privada e das IPSSs, que se dispensava o ruído do PR e da ex-candidata presidencial que ornamentou a última corrida a Belém.

A saúde de todos é incompatível com muitos interesses e, sobretudo, com uma ideologia neoliberal.

 

Em defesa da medicina da dor

(Eduardo Paz Ferreira, in Expresso, 30/05/2015)

Eduardo Paz Ferreira

           Eduardo Paz Ferreira

Tornou-se muito frequente o recurso a metáforas médicas a propósito das políticas de austeridade. A elas recorre quem se interroga sobre se a austeridade mata ou se a austeridade cura, bem como quem a classifica voodoo economics. Recentemente, o primeiro-ministro português elevou essa prática a um novo patamar, ao declarar à Rádio Renascença que “o objetivo que temos é vencer a doença, não é perguntar se as pessoas durante esse processo têm febre, têm dor ou se gostam do sabor do xarope”.

É sabido o grau de insensibilidade dos arautos da austeridade e particularmente dos funcionários das troikas que, tal como os padres da Inquisição, se consideram incumbidos de um mandato divino que os obriga a não se ocuparem do sofrimento que provocam, em nome da missão transcendental que lhes foi confiada.

O alinhamento do primeiro-ministro português por uma versão totalmente ultrapassada da medicina não deixa, ainda assim, de impressionar.

Começou no século XIX um debate sobre a dor na medicina, originado num texto dramático da escritora Frances Burney, em que esta descreve a mastectomia de que foi objeto sem anestesia.

Mesmo que se possa dizer que o século XIX é ainda um período histórico em que a dor é considerada inultrapassável, crescentemente deixa de se lhe atribuir qualquer efeito de purificação, como sucedia anteriormente e acelera-se uma luta sem quartel para a sua supressão, assumindo-se a como um inimigo fundamental nos séculos XX e XXI, como é brilhantemente descrito num livro de Joanna Bourke, “The Story of Pain. From Prayers to Painkillers” (Oxford University Press, 2014),

A preocupação moderna de assegurar que os doentes não sofrem dores desnecessárias, que tem até expressão no grande esforço dos hospitais portugueses para porem de pé serviços de medicina da dor, não é sopesada pelo primeiro-ministro que, provavelmente impressionado pelas teorias alemãs da culpa e da expiação, vê na dor um passo necessário da cura.

A dimensão humana da medicina nos nossos dias é central em todos os tratamentos e, consequentemente, não pode deixar de passar para qualquer metáfora política. A consulta do magnifico livro de Atul Gawande, “Ser Mortal”, recentemente traduzido, com um excelente prefácio de João Lobo Antunes, ajuda a situar a medicina na sua versão contemporânea.

Mas se posso, eu também, recorrer a metáforas médicas, sempre direi que os portugueses estão tão anestesiados que nem se dão conta destas declarações, tal como não repararam numa anterior do primeiro-ministro (apenas retida pelo “Observador”): “Ninguém está certo de conseguir produzir uma política que garanta a felicidade seja de quem for, não acredito em coisas dessas. De resto, nem acredito na felicidade.”

Não digo que o primeiro-ministro esteja sozinho nessa conceção e sei que a sua legitimidade política resulta de uma vitória eleitoral, na sequência de uma campanha em que estas perceções do mundo não foram, em qualquer caso, devidamente comunicadas aos cidadãos, mas a compaixão é uma qualidade fundamental da governação, tal como a felicidade e isso disseram-no, já em 1776, os founding fathers da América.