(Gonçalo M. Tavares, in Expresso Diário, 29/03/2020)
Diário da Peste, 28 de março
“A salvação agarra-se à pequena fissura na catástrofe contínua”, escreveu Walter Benjamin. É preciso salvar nos pequenos intervalos, nas pausas. Quando o diabo se distrai um segundo, eis uma fissura. E aí entra a salvação. Espanha. Dia 26 de Março “na planta numero 4, na habitacion 429 del Hospital del mar”. Um vídeo. No Hospital del Mar uma enfermeira pega no seu próprio telemóvel e faz uma chamada para o filho de um doente. 4º Andar, quarto 429. Faz uma vídeo chamada, pega no telemóvel, aponta para o rosto do doente. “Respira bem, sim, sem a máquina”, diz ela para o filho do doente acamado. E repete, a sorrir: “Não vê? Não vê?” Quer mostrar que o pai dele não está tão doente, que melhorou. Repete: respira sem máquina, está só com uma máscara! Fala como se anunciasse a um pai que acabou de lhe nascer um filho. Mas não. Está a anunciar a um filho que o pai ainda está vivo. O doente levanta a mão em direcção à imagem do filho. A enfermeira aproxima o telemóvel. A mão fica a uns centímetros do ecrã. Tocar no rosto do filho na tela é nestes dias tocar no rosto do filho. Quase tocar na tela é quase tocar no corpo. Olá! eu sou a Susana, diz a enfermeira com ar feliz para o filho que está no outro lado do ecrã. É preciso infiltrar nas fissuras a alegria. Como se a alegria fosse um material médico. Quase um material de salvação. Certos enfermeiros usam esse material. Que bom, José. Diz a enfermeira, viste o teu filho. Quem está a filmar tudo é um colega do quarto do doente José. Quem estava a filmar, outro doente, termina a gravação com a frase, numa voz cansada: “Muita felicidade para todos”. Alguém que está doente fala da felicidade dos outros. Alguém que está doente consegue mudar de assunto. O assunto não sou eu, diz – de uma cama do hospital – quem deseja aos outros felicidades. Há fissuras evidentes e até belas na catástrofe contínua. Benjamin fala numa investigação necessária. Perceber se os extremos da salvação têm ou não dois nomes: cedo demais e tarde demais. Escrevo. A salvação é o que está no meio do cedo demais e do demasiado tarde. A salvação só existe como efeito de uma absoluta pontaria no tempo. Acertar no tempo como num alvo móvel que tem dois limites exteriores: cedo demais/ tarde demais. Já se viu que a peste não é uma fissura, não é qualquer coisa que se remende facilmente. A alegria não basta, mas é necessária. Uma alegria que salvasse, que fosse máquina de fazer respirar quem começa a não conseguir respirar. Uma máquina não pode dar alegria. Ou talvez possa, mas não de forma directa. Uma máquina cuja função fosse instalar na fissura da doença uma alegria alta ou pelo menos mínima. Encomendar máquinas que não existem a fábricas que ainda não existem. Leio La Repubblica e estremeço. Digo alto a frase. Repetir alto uma frase até ela se dissolver no ar, como se não tivesse existido. Repetir 100 vezes uma frase para ela desaparecer. Como se o uso repetido fosse uma forma de destruição das frases e das coisas. No La Repubblica dizem que na Lombardia já não há avós. É esta a frase. É preciso repeti-la até ela desaparecer no ar. Escondê-la debaixo do chão ou então repeti-la até ela desaparecer no ar. No La Repubblica dizem que na Lombardia já não há avós.
(Ricardo Cabral Fernandes, in Público, 12/08/2019)
Salvini surge com 38% das intenções de voto na sondagem do “La Repubblica”
(A Estátua, cansada de ouvir o Dr. Pardal, o Dr. António Costa, os serviços mínimos que são máximos, os camiões que rolam mas não rolam, as mangueiras que não esguicham, e coitados dos turistas na fila pro gasóleo – que mandem vir a UBER que ela entrega tudo embrulhado e quentinho -, resolveu investigar se o mundo, lá fora, tinha fechado para obras.
E deparou-se com esta ópera bufa, à italiana, com todos os ingredientes de um libreto para cantar em falsete.
É a Europa, decrépita e sem alegria. A oeste nada de novo, a não ser o crepúsculo dos deuses e o estertor do império.
Comentário da Estátua, 12/08/2019)
A Itália vive o caos político e, nos próximos dias, uma série de batalhas serão travadas para formar um improvável novo governo ou convocar eleições antecipadas. O Partido Democrático pode sofrer uma cisão, o Movimento 5 Estrelas uma pesada derrota eleitoral e a Liga passar a dominar a política italiana em caso de eleições antecipadas.
As jogadas prolongam-se nos corredores do poder político e partidário. O primeiro combate foi travado esta segunda-feira em conferência de líderes parlamentares no Senado. O segundo é na terça-feira, com os senadores a votarem o calendário da moção de desconfiança apresentada por Matteo Salvini.
Esta segunda-feira, os líderes parlamentares decidiram, por maioria de votos, agendar a intervenção do primeiro-ministro, Giuseppe Conte, para 20 de Agosto. No entanto, por falta de unanimidade, a presidente do Senado, Elisabetta Casellati, deliberou que os senadores terão de votar individualmente o calendário da moção de desconfiança. Espera-se que a Liga saia derrotada.
Provável aliado da Força Itália de Silvio Berlusconi, Matteo Salvini, líder da Liga e vice-primeiro-ministro, exigia que o debate e votação fossem agendados já para esta terça e quarta-feiras, enquanto os restantes partidos – PD, 5 Estrelas, Misto e Livre e Igual – defenderam que fossem no dia 20. Para o ex-primeiro-ministro Matteo Renzi, os poucos dias de diferença são a chave para se negociar a formação de um governo institucional, enquanto o 5 Estrelas quer avançar com a votação prévia de uma emenda constitucional para reduzir o número de deputados, que, caso seja aprovada, impedirá eleições antes da próxima Primavera, pois obriga a consultar os italianos em referendo.
Além disso, esperar até 20 de Agosto daria tempo a Conte, aliado do 5 Estrelas, para poder explicar a crise ao povo italiano, encostando a Liga às cordas.
Anunciada a morte do Governo, Salvini tudo tem feito para o enterrar, e bem fundo: exigiu eleições imediatas e a demissão de Conte, mas foram-lhe ambas recusadas. Decidiu então apresentar uma moção de desconfiança contra o executivo, numa altura em que os deputados e senadores estão, normalmente, de férias.
Perante a derrota anunciada, Salvini tem uma última cartada ao seu dispor: forçar os ministros do seu partido a demitirem-se. O Governo cairia de imediato e o 5 Estrelas teria de agir contra o tempo para formar novo executivo. No caso de o Presidente italiano, Sergio Mattarella, o aceitar. O chefe de Estado detém o poder de dissolver o Parlamento e convocar eleições antecipadas ou permitir a Luigi Di Maio, líder do partido mais votado, tentar formar uma nova coligação para governar.
Salvini sempre disse que as intenções de voto não norteavam a sua acção política, mas tudo indica o contrário. Na sondagem de 29 de Julho do La Repubblica, a Liga surgia na liderança destacada com 38% dos votos, permitindo-lhe formar um Governo com maioria absoluta com o Irmãos de Itália (6,6%) e a Força Itália (6,5%). O Partido Democrático surgia em segundo, com 22%, e o 5 Estrelas, que ganhou as eleições em 2018, cairia para terceiro com 17,3%.
A jogada de Salvini para acabar com a legislatura que deveria durar até 2023 é também uma tentativa de definir que Parlamento eligirá o próximo Presidente, se o actual ou um futuro por si controlado. Dominando Governo e Parlamento, ficaria bem posicionado para as eleições municipais de Maio de 2020.
A ser bem-sucedido, Salvini conseguirá liderar o primeiro Governo composto exclusivamente da extrema-direita na Europa Ocidental.
Manobras à esquerda
É precisamente esta hegemonização da política italiana que o antigo primeiro-ministro Matteo Renzi diz querer evitar a todo o custo. “Um governo institucional é a resposta para aqueles que querem plenos poderes para orbanizar Itália”, afirmou no Twitter, em referência à transformação do regime húngaro pelo líder de extrema-direita Viktor Orbán. E sublinhou: “É uma loucura ir a votos”.
A ideia de Renzi pode ter números para resultar. Em minoria, Salvini terá do seu lado uns meros 259 deputados (em 630) e 149 senadores (315), segundo contagem do Corriere della Sera, enquanto o campo do governo institucional detém 322 deputados e 166 senadores. No entanto, o campo institucional dá sinais de fragilidade e as divisões no Partido Democrático vêm à tona.
Sem nunca lhe chamar cisão, Renzi ameaçou com a criação de um novo partido – o Acção Civil –, caso a liderança do Partido Democrático não adira à ideia do governo institucional. Controla grande maioria da bancada parlamentar, fruto das legislativas do ano passado, contra o secretário-geral, Nicola Zingaretti, que deseja novas eleições.
“Não é credível que um governo faça a manobra económica e depois dispute eleições, seria um presente para uma direita perigosa que toda a gente quer travar”, argumentou Zingaretti, apelando à união no partido que lidera.
Zingaretti vê o cenário de eleições como oportunidade de afastar os apoiantes de Renzi de futuras listas, mas também receia que Salvini saia vencedor ao ficar de fora de um governo apoiado por esta legislatura. É provável que o futuro executivo tenha de subir os impostos e, por isso, venha a gerar descontentamento. Além disso, os dois principais partidos desse hipotético executivo, o PD e o 5 Estrelas, estão hoje em minoria nas intenções de voto, permitindo a Salvini acusá-los de golpe.
Porém, Renzi mostra-se irredutível, mesmo quando as hipóteses são escassas. Hipóteses enterradas esta segunda-feira, no Facebook, por Di Maio: “Ninguém se quer sentar à mesa com Renzi”.
Ao aceitar as políticas da Liga, o 5 Estrelas deixou-se enredar por Salvini, caiu nas sondagens, perdeu votos nas europeias e Di Maio ficou sem muito do seu capital político, e nem todos dão sinais de alinhar na sua posição. “Depois de termos governado com a Liga, acho que até somos capazes de fazer um acordo com Belzebu”, admitiu a deputada do 5 Estrelas Roberta Lombardi, em entrevista ao La Repubblica.
O governo fascizante italiano que está no poder há muito pouco tempo queria aproveitar politicamente a queda do viaduto urbano Pocevera de Génova, mas apareceu essa malandragem dos blogs e facebooks a reproduzirem os textos de 2006 em que o partido do palhaço fascista Bep Grillo, 5 Estrelas, se opunha veementemente à construção de uma segunda autoestrada urbana com um viaduto que permitiria a circulação de mil camiões por hora.
O atual vice do Governo e líder do “5 Estrelas” Luigi di Maio mandou cortar tudo o que tinha sido escrito no blog e facebook, mas não consegue anular as partilhas que aparecem agora em muitas páginas de facebooks e nos jornais. No blog pessoal de Grillo há um texto a fazer troça da queda da ponte Morandi de 2013 que também foi apagado, mas ficou nas partilhas.
O viaduto de Génova era uma obra do célebre fabricante de camisolas Beneton que, soube-se agora, financiou o outro partido fascizante do governo, o “Legga”, liderado pelo vice-presidente Matteo Salvini. Estes dois vices tomam todas as decisões e o PM Guiuseppe Conte é apenas uma marionete dos dois fascistas.
Numa coisa, os dois governantes têm razão. A tal autoestrada e viaduto novo deveria ser uma obra estatal e não foi feita devido às imposições austeritárias de Bruxelas, mas Luigi di Maio fala agora em acordo secretos do governo anterior com a Benetton que nunca quis uma segunda autoestrada e viaduto para não lhe fazer concorrência.
O desastre é uma calamidade para a Itália porque o porto de Génova é o principal porto de importações e exportações. Por exemplo, quando um camião cheio com mercadorias italianas vem para Portugal não roda da Itália para Lisboa porque os franceses não deixam passar todos os camiões pelo sul da França. Por isso, o camião embarca em Génova num “ferry” para desembarcar em Málaga ou Algeciras e daí vir para Portugal e o mesmo se passa se os camiões forem para Espanha.