Imigração – sim, há esquerda e direita

(Isabel Moreira, in Expresso Diário, 22/12/2018)

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A comunicação social dá pouco relevo às iniciativas que vão sendo discutidas do Parlamento em matéria de migrações e de imigração. Ora, se há matéria em que, como noutras, ao contrário do que se diz por aí, é claríssima a diferença entre esquerda e direita é essa.

Na quinta-feira discutimos dois projetos de lei (BE e PAN), aprovados ontem por toda a esquerda, que visam a atribuição de um visto temporário de residência ao cidadão imigrante com um ano de descontos para a segurança social.

Estamos a falar de cerca de 30 mil pessoas que vivem em Portugal, sem visto legal de entrada, mas que descontam durante um e vários anos para a segurança social, sem que consigam regularizar a sua situação. Isto tem custos, por exemplo, no exercício de direitos sociais.

É gente da apanha da azeitona ou da construção civil, devidamente explorada para benefício económico de toda a comunidade regularizada.

O PS já tinha avançado com um projeto de resolução que recomendava ao Governo que promovesse as diligências necessárias a garantir celeridade nos processos de legalização de imigrantes em curso, conferindo, sempre que possível, por razões humanitárias, agilizando o respetivo procedimento, a autorização de residência a quem comprovasse e demonstrasse a inserção no mercado laboral, com descontos para a segurança social, por um período superior a um ano, independentemente de ter ou não entrada legal em território nacional.

Este projeto de Resolução foi retirado por força da boa aprovação do Decreto-Regulamentar que absorveu a proposta socialista, determinado que para os efeitos de atribuição de residência por razões humanitárias é relevante a inserção no mercado laboral por mais de um ano.

Ou seja: já há alguma resposta para as situações em causa.

Resta saber se estamos satisfeitos com a resposta prevista na lei e no Decreto-Regulamentar ou se entendemos que há espaço para encontrar um regime geral para o que é normal em vez de nos bastarmos com um regime excecional.

Isto porque do ponto de vista prático o procedimento de regularização continua a ser de uma morosidade exasperante que condena estes cidadãos e cidadãs a viverem tempo demais em condições de irregularidade.

No debate, a Direita opôs-se a estas pessoas. PSD dizendo que o que existe já chega e CDS dizendo, sem vergonha, que está em causa abrir as portas a gente com “más intenções”, à “criminalidade”, ao “tráfico” e a todos os horrores que imigrantes tresloucados representam perante a possibilidade de os regularizar. Foi ainda possível ver o CDS saudar o caminho europeu em matéria de imigração.

É nestes momentos que não tolero a afirmação segundo a qual já não há diferença entre esquerda e direita. Há. E muita. A esquerda não vê a imigração como um perigo, a esquerda tem uma perspetiva de acolhimento e de regularização das pessoas, em primeiro lugar por uma questão de decência. A esquerda não alinha no discurso de tanta da Europa e da direita portuguesa do medo do outro, nem aqui, nem, por exemplo, em matéria de nacionalidade, na qual o CDS tem insistido na péssima prática do continente que habitamos de privilegiar o critério do sangue.

A direita tem todo o direito de defender uma política que fecha os olhos a homens e mulheres que estão no nosso país a descontar para a segurança social e a defender a “magnífica política europeia” nesta matéria.

Que não se diga, porém, que não há esquerda e direita.

A estranha leveza da história

(Boaventura Sousa Santos, in Visão, 01/05/2015)

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Há gente demasiado pequena para ser humana. Talvez tenha sido sempre assim, mas desde que a modernidade ocidental se expandiu no mundo graças ao colonialismo e ao capitalismo a contradição entre a igual dignidade de todos os seres humanos e o tratamento desumano dado a alguns grupos sociais tomou a forma de uma fratura abissal.

Uma fratura por onde correu muito sangue e se destilou muita hipocrisia. As zonas de sub-humanidade foram tendo várias populações – selvagens, indígenas, mulheres, escravos, negros – mas nunca foram encerradas; pelo contrário, foram sendo renovadas com novas populações que ora se juntaram ora se substituíram às antigas. A zona mais recente é a dos imigrantes indocumentados. Por isso, o sangue vertido no Mediterrâneo vem de muito longe, tanto no tempo como no espaço. E não é por coincidência que seja hoje vertido tanto no extremo norte como no extremo sul do mesmo continente, na África do Sul.

As zonas de sub-humanidade são zonas de não-ser, onde quem não é verdadeiramente humano não pode reclamar ser tratado como humano, isto é, ser sujeito de direitos humanos. Quando muito, é objeto dos discursos de Direitos Humanos por parte daqueles que vivem nas zonas de humanidade. A estes não passa pela cabeça que as zonas onde vivem não seriam o que são se não existissem as zonas onde os “outros” “sub-vivem” e donde desesperadamente querem sair movidos pela escandalosa aspiração a uma vida digna. E não lhes passa pela cabeça porque a História não lhes pesa; pelo contrário, confirma-lhes que só os empreendedores vitoriosos (individuais e coletivos, passados e presentes) merecem a humanidade de que disfrutam. A filantropia faz-lhes bem, mas não têm dívidas a saldar com ninguém.

Só que não há História de vencedores sem História de vencidos e estes, muitas vezes, não perderam por serem humanamente menos dignos, mas apenas por não saberem ou poderem defender-se das atrocidades e dos saques a que foram sujeitos. No sangue que corre nos dois extremos de África há muita injustiça histórica e muitas histórias entrelaçadas. O colonialismo europeu não terminou com a independência de muitos dos países donde fogem os imigrantes. Continuou sob a forma de controlos militares e económicos, de fomento de rivalidades entre grupos étnicos para garantir acesso às matérias-primas ou para garantir posições na Guerra Fria. Muitos dos Estados falhados foram ativamente produzidos como falhados pelos poderes ocidentais. O caso mais recente e mais trágico é a Líbia. Não era a Líbia uma das fronteiras mais seguras a sul da União Europeia? Mereceu a pena destruir um país para garantir acesso mais fácil ao petróleo e servir os interesses geoestratégicos de Israel e dos EUA?

Mas a História do colonialismo europeu é muito mais complexa do que se pode imaginar e só essa complexidade pode ajudar a explicar o que se passa na África do Sul. Em que medida é que os colonizados aprenderam com os colonizadores a arrogância do racismo? Formalmente um país independente, a África do Sul foi, desde o início do séc. XX e até 1994, governada por uma das formas mais cruéis de colonialismo interno, o regime do apartheid. O racismo institucionalizado, muito para além de uma relação de poder assente na inerente inferioridade dos negros, tornou-se uma forma geral de ser e de saber (racismo cognitivo) que insidiosamente se foi libertando das grandes diferenças da cor da pele para se exercer.

Será por isso que os negros sul-africanos são considerados o povo de África mais intolerante em relação a estrangeiros pobres e negros? Será que aqueles que se libertaram do apartheid não se libertaram totalmente do regime de ser e de saber em que ele assentava? Será que, bem à maneira da ideologia racista, um tom mais escuro de pele corresponde a um grau mais baixo de humanidade? Será que a solidariedade de moçambicanos e zimbabwianos na luta contra o apartheid é uma parte da história que os sul-africanos não querem recordar para não terem de pagar dívidas? Será que os sul-africanos correm o risco de serem europeus fora do lugar?