Noite e Nevoeiro

(Abílio Hernandez, in Facebook, 27/01/2018)

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Em 27 de janeiro de 1945, o exército soviético libertou o mais tenebroso dos campos de extermínio construídos pelo regime nazi: Auschwitz-Birkenau. Foi há muito tempo? Não, foi no tempo da vida de muitos de nós. Naquele dia eu tinha 3 anos de idade, a mesma idade de milhares de meninos assassinados nos campos nazis.

Em 1955, Alain Resnais realizou um extraordinário filme sobre os campos: Nuit et Brouillard – Noite e nevoeiro. O título do filme inspira-se na obra de Jean Cayrol, Poèmes de la Nuit et du Brouillard, que por sua vez repete o nome do decreto nazi de 7.DEZ.1941 – Nacht und Nebel-Erlass – que determinou a prisão, a deportação para os campos e a eliminação física daqueles que o regime considerava indignos de pertencerem ao povo alemão: judeus, ciganos, homossexuais, membros da Resistência…

A prisão, o transporte e a eliminação dos prisioneiros ocorriam, geralmente em segredo, durante a noite, para que não houvesse testemunhas e fosse mais fácil eliminar as provas do crime. Nas roupas, os prisioneiros tinham gravadas as letras NN. Quando, no fim da guerra, se descobriram os registos dos Serviços de Segurança alemães, nem sequer os locais das sepulturas estavam anotados, constavam apenas os nomes e as iniciais NN, noite e nevoeiro. “Mesmo uma paisagem tranquila, mesmo um prado com voos de corvos, com colheitas e fogueiras … podem conduzir simplesmente a um campo de concentração.”

Quando o filme de Resnais começa, ouvimos estas palavras, ao mesmo tempo que deslizamos o olhar por essa paisagem bucólica, seguindo o percurso de um travelling, longo e lento, como tantos travellings de Resnais. As cores da paisagem são suaves. A música de Hans Eisler é harmoniosa, delicada. A voz do narrador regista nomes: Stutthof, Oranienburg, Neuengamme, Bergen-Belsen, Ravensbrück, Dachau e o mais sinistro de todos, Auschwitz, onde, só ali, os nazis assassinaram mais de um milhão de prisioneiros. Tinham passado dez anos sobre a descoberta dos campos.

Projetados por arquitetos e engenheiros, organizados como se fossem cidades, horrendas cidades, os campos possuíam casas de habitação, bordéis, hospitais e até, suprema ironia, prisões. E banhos públicos de cujos chuveiros não jorrava água, mas um gás mortal, Zyklon B. Eram lugares sem lugar, construídos com a única finalidade de produzir o extermínio total dos seus habitantes/prisioneiros. Resnais mostra-nos tudo: os despojos do presente e os corpos perdidos do passado. Mas nunca deixa de nos colocar perante a evidência de que não estamos a ver nada da autêntica realidade dos campos. “É em vão que tentamos descobrir os restos desta realidade dos campos”, diz o narrador. “Deste dormitório de tijolo, destes sonos ameaçados, não podemos mostrar senão a casca, a cor”.

Imaginar o inimaginável, pensar o impensável, eis o objetivo de Noite e Nevoeiro. Sem nunca banalizar o horror, o filme diz-nos que filmar os campos é uma obrigação ética, estética e política. E desafia-nos para uma reflexão sobre o nosso próprio olhar e a nossa condição de espectadores, apelando à urgência de uma memória que não seja a simples reatualização do passado, mas que contribua para criar uma cultura ética e política que previna novas feridas e não permita que ninguém, nós incluídos, se exima de uma responsabilidade histórica que não prescreve. Por isso, o apelo final é dirigido a todos nós:

“A guerra adormeceu com um olho sempre aberto. … 9 milhões de mortos assombram essa paisagem. … Quem de entre nós vela este estranho observatório para prevenir da vinda de novos carrascos? Terão eles um rosto diferente do nosso? … Estamos aqui e olhamos estas ruínas como se o velho monstro concentracionário estivesse sepultado sob os escombros …, nós, que fingimos acreditar que tudo isto pertence a um só tempo e a um só país. E que não olhamos à nossa volta e não ouvimos que os gritos ainda não se calaram.”

O filme cala-se com este apelo e não nos concede o luxo de esquecer. Pensar a Shoah a partir do presente, pensá-la como um capítulo não fechado da História, tornou-se uma exigência da moderna consciência histórica. Seja escrita em nome do rigor da ciência ou da subjetividade da arte, a História só pode ser feita, como em Noite e Nevoeiro, contra o esquecimento e em nome do que pode tornar-nos mais humanos.

A sombra sinistra do passado

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/01/2016)

Autor

                            Daniel Oliveira

A Dinamarca acabou de aprovar esta semana uma lei que exibe à Europa o espelho da sua trágica memória. A partir de agora, todos os refugiados que cheguem ao país verão os seus bens particulares confiscados (acima de 1340 euros). Ficam de fora “objetos de alto valor sentimental” (alianças de casamento e retratos de família), que a selvajaria tenta sempre mostrar sentimentos. Os refugiados estarão impedidos de reconstruir as suas vidas com a ajuda dos seus próprios meios, mesmo que entre esses meios esteja, por exemplo, um computador pessoal. O que for apreendido será destinado a pagar as despesas que a Dinamarca tem com estas pessoas, diz o cinismo legislativo que, supõe-se, passou a ter o confisco de bens como forma de pagamento de serviços ao Estado. Esta aberração, para a qual tenho dificuldade em encontrar adjetivos que correspondam à náusea que sinto, foi aprovada por 81 deputados e contou apenas com 27 votos contra e uma abstenção.

O primeiro sinal mais visível da revolta veio, curiosamente, de um não europeu: em protesto, Ai Weiwei encerrou uma exposição em Copenhaga e retirou uma obra sua do museu de Aros. No entanto, não haverá nenhuma medida da União Europeia contra a Dinamarca. Parece que está tudo bem com o seu défice e as normas da concorrência são cumpridas. Na realidade, a única sanção de que se fala por estes dias é à Grécia, que pode ser suspensa do espaço Schengen por não estar a conseguir cumprir, com os parcos recursos que sobreviveram à crise, o papel de polícia de fronteira do norte da Europa. E é nestes momentos que me pergunto: o que raio quer dizer ser “europeísta” hoje em dia. A que valores se refere essa ideia? Estamos a unir-nos em torno de quê, exatamente? Ainda faz algum sentido?

A ver se nos entendemos, porque, quando todos os valores essenciais se perdem, pode haver alguma confusão em algumas cabeças. Os refugiados não são emigrantes. Recebê-los não é uma prerrogativa dos Estados. É um dever. Fogem da guerra e da morte e quem lhes recusa a entrada recusa-lhes a vida. Ao contrário da Turquia ou do Líbano (onde os refugiados já representarão um quarto da população), a Europa não está a ser inundada por refugiados. Na realidade, tirando a Alemanha, a Europa quase nada fez para os receber. E até desanca nos Estados do sul que têm de lidar com a situação.

Como parece que já só nos conseguimos envergonhar com coisas do passado, imaginem os Estados Unidos, durante a II Guerra e o Holocausto, a confiscarem os bens dos judeus à sua entrada. Imaginem e sintam a imensa vergonha. Confiscar bens a um refugiado é um ato de cobardia, de roubo e de selvajaria. E, já agora, uma estupidez: quem tenha alguma coisa de seu para recomeçar a sua vida não quererá ir para a Dinamarca.

A única coisa que consigo escrever perante isto é que não me conformo com o facto de estar na União que me liga a um Estado que aprova esta abjeção. Logo a Dinamarca, que ajudou os judeus a fugir do Holocausto. Envergonham os seus antepassados, envergonharão os seus descendentes. E que sinto, só não sente quem nada sente, o regresso dos tempos mais sombrios desta Europa. O mesmo clima de racismo e intolerância religiosa, a mesma frieza criminosa. O mal é banal e o ódio contagioso. É só deixá-lo à solta.