Despojos laranja depois da enxurrada autárquica

(Francisco Louçã, in Público, 10/10/2017)

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Cá temos então Santana vs Rio. É a principal consequência da eleição autárquica: colapsando para cerca de 10% nas duas principais cidades, todo o projecto do PSD passista falhou. Nem houve eleições legislativas antecipadas, o famoso diabo, nem o governo se desgastou, antes aproveitou o contraste que lhe foi oferecido entre a crispação ressentida e o alívio na bolsa e na vida das pessoas. Portanto, o governo ganhou, venha o senhor laranja que se segue.

E aqui é que está a novidade. A sucessão não é Montenegro, o herdeiro que não seria mal visto em Belém, nem Rangel, o ideólogo. Ambos tinham aparelho e carreira por fazer, mas sofreram um pânico de última hora e invocaram razões “pessoais e políticas” ou “familiares” que, fossem o que fossem, já lá estariam antes de se terem dado à maçada de comunicar ao país que “estavam em reflexão”. Terá sido então um puro exercício de narcisismo, culminando numa cínica declaração de que a sua carreira está acima do seu partido (“não apoio nenhuma candidatura”)? O certo é que saíram de cena.

A novidade é então Santana, que Rio era certo e sabido. E esse confronto desloca o PSD da sua recente tradição neoliberal, troikista, para terra desconhecida. Santana, que já deu provas, molda-se ao que for: como governante, frequentou o populismo mas foi de pouco brilho, como opositor interno viveu da evocação sácarneirista, mas foi frequentemente derrotado. O que será agora, para tentar ganhar, já vamos ver, inventa-se tudo de novo. Sabe-se em todo o caso o que deixará de ser, aquele senhor de meia idade finalmente bafejado pela sensatez e distância das excitações mundanas. Para ganhar, Santana só pode regressar ao passado e isso pode ficar-lhe mal.

Do outro lado, Rio. É demasiado conhecido, o que não lhe convém: parece só um autarca regional. É demasiado atrevido em autoritarismo: a sua proposta de reforma do sistema político é deixar cadeiras vazias no parlamento como prémio da abstenção, portanto uma estratégia de terra queimada. Quero ver como é que Pacheco Pereira, um dos bons advogados do governo actual, se encaixa nesta deriva.

Assim se resume o PSD depois das autárquicas: espaços em aberto, descontinuidade, regressos ao passado. Nem ideias novas, nem um programa de governo, nem um projecto social, só a rememoração de Sá Carneiro (Santana), mas quem se lembra dele, ou de si próprio (Rio na Câmara do Porto), e quem gosta do que se lembra?

Tão frágil é esta construção que se torna necessário convocar artilharia. No caso, contra o PCP, empolando negativamente os seus resultados para esmorecer o efeito no PSD. Já notou, cara leitora ou leitor, quantos comentadores anunciam que o PCP se abstém no Orçamento que ainda está por concluir, ou que provocará eleições? Uma crise política, por favor, pedem encarecidamente uma crise, haja distracção que sem ela vamos mal. No extremo, Teresa de Sousa defende o seu partido com uma injunção histórica: “o PSD tem futuro”, o PCP não.

Esquece simplesmente que, mesmo nestas eleições autárquicas, o PCP tem 490 mil votos nas Câmaras, o que é mais do que nas legislativas (445 mil, ou nas presidenciais, 180 mil). Se acho estranho que o PCP esteja a agravar a percepção dos seus resultados por razões de questiúnculas partidárias (as inventadas “insinuações” e “calúnias” de outros partidos, um dia evocadas, aliás repetindo um refrão antigo, mas no dia seguinte denunciadas como citação abusiva da imprensa, que criaria “falsos conflitos”), os números dizem tudo sobre a sua grande força municipal.

O preconceito ideológico dirige portanto esta invocação da crise que não existe. Esse é mesmo o problema do PSD: queria o diabo europeu, falhou, quer o diabo nacional, falha, quer o mal e a caramunha – mas pode ser que o país vá perdendo a paciência.

Como não perder depois de ganhar

(Francisco Louçã, in Público, 04/10/2017)

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O vencedor da noite eleitoral, o PS, é o partido que arrisca mais nas próximas semanas. Explico-me: o PSD iniciará o seu processo de congresso, muitas reuniões — que delicioso que a primeira congregação se reúna numa quinta em Azeitão, em ambiente bucólico tão propício às facas longas — e muita zaragata. Mas, até ver, tudo o que o PSD fará é não fazer nada. Entrará desbaratado no processo orçamental, penará até ao congresso e depois se vê. Ora, ao não fazer nada, o PSD não arrisca, já perdeu o que tinha a perder.

Fica então o PS. O PS festejou exuberantemente e tem razões para isso. É simplesmente a sua maior vitória de sempre. Isso nunca aconteceu a um partido que estivesse no governo. Ora aí está: a explicação para a vitória é mesmo o governo. O alívio popular descrispou a política, tornou esotérico o discurso do PSD (e do CDS, mas este partido afastou-se do discurso diabista), reforçou o governo e fez do PS o seu herdeiro natural.

Tudo correu bem a Costa: o acordo com os seus parceiros, a confusão europeia que nos foi ignorando mansamente, a marginalização de Sócrates, esquecendo o passado, a teimosia de Passos Coelho, o encantamento de Marcelo, a pequena recuperação económica, nunca poderia aspirar a melhor conjugação astral. Ora, é por isso mesmo que o PS é o partido que mais arrisca de imediato.

O primeiro risco do PS é não perceber o que se passou. Se pensa que venceu o PCP, engana-se. Ganhou-lhe câmaras importantes, mas lembro que o PCP tem ainda assim mais votos no total das câmaras do que teve nas eleições legislativas. Se pensa que o Bloco não conta nas autarquias, está enganado: é o partido que à esquerda mais subiu em Lisboa e é decisivo na câmara, o que vai ser uma vantagem estratégica, como no caso de outros vereadores, e ganhou em coligação a Câmara do Funchal.

Mas é o segundo risco que mais ameaça o PS: é pensar que, tendo ganho as eleições, tem luz verde para impor as suas escolhas, desprezando os seus parceiros e reduzindo a negociação orçamental a uma escrituração de éditos ministeriais. Já ouço o que se diz em alguns ministérios, agora passamos a ferro o orçamento. Seria simplesmente perder depois de ganhar.

O governo tem fechado os olhos a problemas que se vão avolumando e que, de algum modo, as eleições autárquicas ocultaram. Não resolveu a embrulhada dos professores indevidamente deslocados para bolandas nem resolveu a questão das enfermeiras, que ficaram sem carreira durante anos a fio. Entretanto, foi agravando a confusão de Tancos por alguma vertigem autodestrutiva do ministro, que tem opções difíceis pela frente e não as quer tomar. Tudo isso vai ressurgir agora. Se o governo aceita um bom conselho, resolva estas questões.

Mas o pior problema é mesmo o Orçamento, que tem de estar pronto em dez dias. Ora, a negociação começou tarde, atrasou-se e agora está num impasse. O governo propôs 200 milhões para uma cosmética alteração no IRS e depois baixou a sua proposta. Propôs descongelar carreiras ao cuidado do próximo governo. Resiste a um aumento das pensões mais baixas. Investimento, sempre pelos mínimos. Recusa alterar a regra da troika para os despedimentos fáceis. Ou seja, a estratégia é esperar que as boas expectativas, os turistas e um milagre europeu nos puxem pela economia.

Os que no governo acham que o PS venceu e, portanto, não precisa senão do seu deslumbramento estão a esquecer-se de que foi a percepção de que estão condicionados pela esquerda que criou confiança. Esse deslumbramento está a minar o trabalho de convergência e é um perigo para o governo.

Na sequência das autárquicas, só há uma forma de não perder depois de ganhar: fazer um orçamento ousado na recuperação social. Mais ainda por causa das autárquicas, só haverá bom orçamento se for um bom acordo à esquerda.

Ganhar eleições por moeda ao ar?

(Francisco Louçã, in Público, 29/09/2017)

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No domingo, a abstenção é a moeda ao ar das eleições autárquicas portuguesas.


Pode parecer estranho, mas no século XXI tem havido eleições (e outras decisões de instituições do poder público) que são determinadas por moeda ao ar. Um inventário, mesmo incompleto, indica que há bastantes casos em que isso aconteceu em anos recentes e, como verá, nem sempre em eleições de pequenas povoações.

Começo pelas eleições locais. No Reino Unido, em 2000, a eleição local na circunscrição de Bassetlaw foi decidida por moeda ao ar depois de três recontagens que deram sempre empate entre dois candidatos. O pretendente do Partido Conservador ganhou e tomou posse. A maioria no Conselho Municipal da circunscrição de Stirling, em 1988 e de novo em 1992, foi determinada por recurso a um baralho de cartas.

O presidente da Câmara de San Teodoro, nas Filipinas, foi escolhido em 2013 por moeda ao ar. Cada um dos dois principais candidatos tinha obtido 3236 votos e, obrigadas a anunciar imediatamente o vencedor, as autoridades eleitorais usaram a moeda e ficou o assunto resolvido. Caso estranho nos mares do sul? Olhe que não. Na decisão de quem dirigiria a cidade de Colp, no estado norte-americano do Illinois, havendo 229 pessoas com direito a voto, dois candidatos receberam escassos 11 votos cada. Nenhum entusiasmou os eleitores e a escolha entre eles foi feita por moeda ao ar.

Mas o caso mais relevante — e mais discutido — talvez tenha sido o da disputa entre Hillary Clinton e Bernie Sanders em 2016 pela nomeação do Partido Democrata para as últimas eleições presidenciais norte-americanas. Em grande parte do país, a escolha dos delegados nas primárias do partido faz-se por votação em urna, mas há também estados em que a escolha se faz em assembleias (os “caucus”), como no Iowa. Em cinco situações desses caucus, não sendo possível desempatar a eleição de um último delegado, a solução foi moeda ao ar. Curiosamente, nos cinco casos a vitória foi de Hillary Clinton (a probabilidade de isto acontecer é de um para 64, ou 1,6%, mas também é certo que a equipa inglesa de cricket já perdeu 12 vezes seguidas a moeda ao ar, o que corresponde a uma probabilidade de um para 4000). Ficou decidido e Clinton ganhou as nomeações; como se sabe, depois perdeu a eleição para Trump.

A moeda ao ar não existe só para eleições, a bem dizer. A agência de imigração do Canadá decidiu em 2012 a outorga de um contrato para prestação de serviços de telecomunicações, coisa para 170 mil dólares canadianos por ano, através de moeda ao ar para escolher entre duas propostas idênticas.

A sorte (ou o azar) parecem portanto ter um papel na política, mesmo quando se trata de substituir a decisão democrática ou a escolha institucional em assuntos tão sérios como determinar quem preside a uma autarquia, quem vai escolher o candidato presidencial do partido ou quem beneficia do contrato para prestar serviços ao Estado. Não sei se as particularidades de cada cultura fazem diferença, se por exemplo o gosto pelo jogo nos Estados Unidos explicaria o processo, ou se a assimetria do uso em português (“tirar à sorte”) e em castelhano (“juegos de azar”) significam alguma predisposição especial para procurar o optimismo ou o pessimismo, mas o resultado é sempre o mesmo: se é a moeda que escolhe por nós, ficamos a perder.

No domingo, a abstenção é a moeda ao ar das eleições autárquicas portuguesas. Se uma maioria de eleitores preferir ignorar a escolha dos seus representantes nas freguesias e câmaras, estará a deitar a moeda ao ar. Permitindo que outros escolham por nós, deixamos à sorte ou ao azar a composição dos órgãos que vão decidir questões importantes para a nossa vida. Permitimos que ganhe quem não desejamos ou que governe quem não queremos ver no poder. É um risco para todos e para cada um e cada uma, não é?