Incêndios na floresta portuguesa: quanto pior, melhor?

(Maria Carolina Varela, in Ionline, 19/07/2022)

Aos primeiros bafos de calor extraordinário, fenómeno raro mas que é parte integrante do nosso clima, Portugal arde.

À medida que o mundo rural da agricultura familiar se tornou o bastardo rejeitado por interesses económicos e políticos e o eucalipto se expandiu, os fogos tornaram-se, para alguns, uma lucrativa “indústria” de milhões.

Para os predadores da floresta os incêndios não são uma catástrofe. Os incêndios florestais em Portugal estão longe de ser o desastre nacional que as televisões nos vendem, onde pontificam grandes inquisidores que apresentam imediatamente culpados para queimar na praça pública: os proprietários que não limpam as suas matas, a vaga de calor ou o aquecimento global, conforme dê mais audiências.

Os incêndios crepitam na floresta portuguesa ao longo de todo o ano e tornaram-se um espectro que mina o poder negocial do proprietário. Há poucas décadas era vulgar os proprietários florestais dizerem: “Este ano não corto, vou esperar que a madeira suba um pouco”. Nos últimos anos ouve-se: “Vou vender antes que haja um fogo.” O preço da madeira no mercado passou a ser aceite com humildade, contribuindo para aumentar os lucros das grandes indústrias de transformação, sobretudo no caso do eucalipto que tem apenas um único comprador, as empresas de celulose.

O eucalipto rebenta, como facilmente se observa, e três ou quatros anos depois está recuperado e pronto para nova faina, seja a de ir para a indústria da celulose, seja para arder novamente. O pinheiro ardido não recupera, mas também é consumido por várias indústrias de madeira triturada, pois a indústria de madeira maciça de pinho há muito se finou.

O combate e a prevenção dos incêndios são “indústrias” florescentes onde a corrupção é frequente, como várias denúncias têm mostrado (e apenas mostram a ponta do icebergue de corrupção que gira à volta dos fogos.

Com os incêndios perdem os que morrem ou ficam feridos no inferno das chamas, bombeiros ou simples cidadãos. Perdem os pequenos proprietários florestais que não têm capacidade negocial para vender a madeira ardida (cada vez são mais os que nem sabem localizar o seu pedaço de terra); perdem os agricultores, vítimas colaterais que veem pomares, gados e olivais serem consumidos por chamas vindas de eucaliptais ou pinhais nas proximidades; perdem aqueles a quem a casa ardeu e que nunca receberam nada dos prometidos fundos para a reconstrução da habitação.

CLICHÉS, DOGMAS E MITOS SOBRE OS INCÊNDIOS FLORESTAIS EM PORTUGAL

“Os eucaliptais das celuloses não ardem.” São várias as vozes que repetem esta frase enganadora com o intuito de que se torne um dogma. Mas nenhum destes pregadores demonstrou, seja por títulos de propriedade, por responsabilidade na gestão, ou sequer mostrando alguns exemplos concretos, o que é um eucaliptal das celuloses. Não se conhecem dados oficiais sobre a área de eucaliptal que é diretamente propriedade das celuloses. Mas há indicadores empíricos muito fortes: os intermediários que compram a madeira sabem que a maioria dos eucaliptais são de pequenos proprietários, que os alugam, ou vendem o eucalipto, às celuloses. Assim, estas alijam a responsabilidade pela sua manutenção, que recai sobre os pequenos proprietários – uma espécie de “uberização” do negócio.

“HÁ FOGOS GRANDES SEM EUCALIPTO”

Exasperados com a evidência de os fogos em Portugal terem sido agigantados pela expansão do eucalipto, sempre que há um incêndio em que outras espécies tiveram o papel principal (e.g. Palmela 2022) surgem vozes que rejubilam, como se tivessem alcançado a prova irrefutável de que há fogos sem eucalipto.

Todas a florestas podem arder: até na Escandinávia de verões frescos e chuvosos, de onde tantos turistas se escapam para gozar uns dias de sol no Mediterrâneo, há fogos florestais. Mas são escassos e raramente catastróficos. Querer negar que o problema em Portugal vem da expansão descontrolada das espécies pirófilas que causam fogos colossais com capacidade de contagiar outros cobertos do solo, sejam florestais, agrícolas ou urbanos, é no mínimo desonestidade intelectual e técnica.

“OS MATOS SÃO CULPADOS”

No Mediterrâneo, os incêndios nos matos são um fenómeno de sempre. Usar os matos como culpados dos grandes incêndios é mais um embuste para manipular as populações urbanas. Os matos ardem com velocidade e altura de labaredas muito inferior ao das espécies pirófilas, não criam os intensos ventos de convenção dos fogos dessas espécies e não projetam fagulhas a centenas de metros. Os incêndios em matos só se tornam fogos incontroláveis quando chegam a manchas florestais de espécies pirófilas, como o eucalipto e o pinheiro. Mas para aumentar a área de eucalipto toda a retórica serve: “Proprietários florestais e indústrias da celulose pedem o aumento da área de eucalipto e de outras espécies de árvores de crescimento rápido em zonas de mato abandonadas para reduzir o risco de incêndio e desenvolver o setor”, RTP N, 16 de julho de 2022.

O ABANDONO COMO CAUSA

É frequente ouvir dizer, a quem nada sabe sobre o complexo problema do minifúndio em propriedade indivisa e das causas do abandono florestal, que é um fator essencial nos fogos e como tal há que expropriar essas terras. Não o dizem para contribuir para a mitigação dos incêndios, mas apenas como pretexto para o ataque à pequena propriedade. O abandono contribui um pouco para os fogos, mas nunca pode ser assumido como uma causa principal. Os eucaliptais que tanto ardem são tudo menos terras abandonadas.

O problema do minifúndio em propriedade indivisa tem décadas e Portugal nunca teve um governo com coragem de iniciar a reforma desse tipo de propriedade tão danoso para a economia rural do país e que encoraja ao abandono. É um processo longo que não se executa por simples decreto e implica o envolvimento de várias competências técnicas, desde agrárias a jurídicas.

MAS ENTÃO O QUE FAZER?

Um país com a dimensão florestal em área e importância económica como Portugal deveria ter a sua floresta gerida de forma centralizada, com elevada responsabilidade e nível técnico capazes de conceber um ordenamento florestal com vista aos fogos e a produções em quantidade e qualidade.

As defuntas circunscrições e administrações florestais dos serviços florestais tinham intenções de ordenamento florestal do território e tinham técnicos oriundos de um curso de silvicultura onde foram professores grandes nomes da ciência florestal portuguesa. Essas estruturas foram substituídas por uma miríade de associações florestais a que estão atribuídas funções administrativas e de fiscalização, outrora desempenhadas pelos guardas-florestais, por exemplo sobre as limpezas dos terrenos e dos processos de autorização para alteração de espécies nas rearborizações.

O ordenamento florestal do território é uma obra que requer elevada exigência técnica e vontade política. A estrutura florestal que hoje em dia (des)governa o país dá-nos a certeza de que Portugal vai ser sempre assolado por enormes incêndios, logo que haja uns bafos de calor. Só a incompetência pode conceber que as associações florestais pudessem substituir a antiga estrutura dos serviços florestais.

Eng. Silvicultora e mãe de Raquel Varela


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Abraçar Portugal

(Virgínia da Silva Veiga, 18/06/2019)

Volvidos dois anos sobre os grande incêndios, o impensável acontece: o abraço entre o Primeiro-ministro António Costa e Nadia Piazza, a presidente da Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande. Não há ninguém que não esteja recordado da forma como por aquele concelho se protagonizou uma postura negativista, em muitos casos a raiar a ofensa a governantes e instituições, a todos nós, afinal, enaltecendo o Presidente da República em afronta ao Primeiro-ministro, como se fosse o chefe de estado e não o chefe do governo quem pudesse fazer alguma coisa para ajudar o reerguer das catástrofes, humana e económica, então sofridas.

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Percebe-se. A dor, por vezes, não permite distanciamento.
Passaram dois anos. Nadia apareceu ontem, numa atitude ainda a raiar o negativismo, é facto, mas onde pela primeira vez marcou noção da questão primordial do momento: a legislação que há-de permitir ao Estado gerir as propriedades sem dono conhecido. Nadia apareceu a ajudar ao desenvolvimento, já se vai ver perceber melhor porquê.

Vítimas da comunicação social superficial que temos, talvez muitos se não tenham apercebido não ter sido apenas um abraço ocasional o dos protagonistas da inusitada foto, do quanto esta representa de esperança para todos nós, do simbolismo de unir em vez de separar. 

Nadia e Costa tiveram ontem um discurso comum, ambos disseram o mesmo, isto é – agora por palavras minhas – que sem que, volvido o prazo para registo cadastral –, olhos em que cerca de 67% dos territórios florestais permanecem sem dono conhecido, não é possível notificar para limpeza dos terrenos, não havendo quem deles cuide. 

Em Janeiro deste ano o governo aprovou um decreto que todos deviam ler, o Decreto-Lei n.º 15/2019 de 21 de Janeiro. Trata-se de um acrescento precioso à política de ordenamento do território, em meu entender, a maior intervenção estrutural dos últimos tempos. A ideia é a de criar um regime de identificação, reconhecimento e registo de prédios rústicos ou mistos
sem dono conhecido, dotados de aptidão agrícola, florestal ou silvo pastoril. 

Depois de anúncios e de todo um processo de apelo ao registo pelos donos, o Estado passa a poder tomar conta das chamadas “terras sem dono”, nada que D. Dinis, e outros reis não tivessem feito, mas com a diferença de que desta feita os terrenos não passam sem mais “à coroa”. 

Identificados e declarados às Finanças como propriedades sem dono, a sua posse – não a propriedade – ficará entregue ao Estado para que dela cuide como lhe aprouver. Já temos a usucapião e a expropriação por utilidade pública. Desta feita a ideia é semelhante mas mais aberta: só ao fim de 15 anos, se o dono não aparecer, a propriedade reverterá para o domínio público. 

Espantosamente, o caso voltou à Assembleia da República, o Partido Comunista é contra, parece – digo ainda sem saber – que PSD e BE se preparam para se juntar ao Partido Comunista e impedir a aplicação da lei. O CDS? Abstém-se, consta.

Foi este o abraço entre António Costa e Nadia Piazza: ambos ontem falaram, sem que os mais se dessem conta, da necessidade urgente de pôr esta legislação em funcionamento para que se perceba o que os jornalistas não explicaram: não ser o Governo quem tem Pedrógão ao abandono da proliferação selvagem de novos eucaliptos mas sim os respectivos proprietários, ausentes, vivos, mortos, os mais deles, muito provavelmente, a fazer exactamente o que eu faço relativamente a dois terrenos que não consigo sequer lograr identificar: por favor, pelo meu país, fiquem com eles. 

Pode não se gostar ainda de Nadia Piazza. Podem muitos não gostar de António Costa. Não há quem, em perfeito juízo, não goste de ver um abraço por um país.

Senhor Eucalipto

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 20/11/2018)

LOUCA3

Vários jornais acolheram três páginas de generosa publicidade paga que lançou o grito de alerta: há desinformação sobre os incêndios e, pior, “o ataque que se tem registado contra o eucalipto promove a desertificação do interior”. Nove municípios, uma lista de académicos que modestamente assinam “professor tal e tal”, associações de produtores, as principais empresas do sector, os ex-ministros do PS que estão sempre nestas coisas, todos se juntam para repelir o “ataque”. Entre eles destaca-se Álvaro Barreto, que Cavaco Silva foi buscar à Soporcel para dirigir o Ministério da Agricultura e que depois voltou à empresa para cumprir uma longa presidência, um dos mais eloquentes exemplos portugueses da porta giratória entre governos e as empresas do sector que tutelou. São os mandantes, os financiadores, os políticos, os empresários, o Senhor Eucalipto.

Irritados com o Parlamento e com o Presidente, um porque recomendou a retirada dos eucaliptos infestantes, outro porque se fez filmar a arrancar os ditos cujos, os signatários declaram-se dispostos a um debate “que permita aprofundar o conhecimento”. Ora melhor assim. Mesmo que alguns se tenham esquecido de declarar o seu interesse pessoal direto na matéria, o que só lhes ficava bem, falar de “factos sobre a floresta” é razoável.

Mas vejamos o primeiro facto: Portugal é o país do mundo que tem maior proporção de área eucaliptada (e o quarto do mundo em termos absolutos). Maravilha, nenhuma empresa e nenhum governo em país algum do planeta inteiro percebe o milagre que é o eucalipto e replica o sucesso português. A esperteza empresarial é privilégio único daquela lista de professores e empresários que assinam a publicidade, são os melhores do mundo. Entretanto, perguntar qual a razão para que todos os outros países do mundo imponham limites ao eucalipto é crime de lesa majestade. Segundo facto: o eucalipto já representou 24% da área ardida em 2016 e 127 mil hectares em 2017, no ano corrente ainda a conta está por concluir. No incêndio de Monchique, foi o eucalipto. Muitos dos distintos signatários são pagos pelo eucalipto e percebe-se a sua candura, mas escusavam de argumentar que ele nos protege do fogo.

Se nos dizem que o abandono do interior, a perda da agricultura e o desinteresse pela floresta também têm muitas outras razões, só posso concordar. O problema é que o Senhor Eucalipto é hoje a força económica dominante na floresta e o lóbi mais poderoso nos sucessivos Ministérios da Agricultura, e a sua ação agrava os riscos da floresta, acumula pilhas incendiárias e promete aos pequenos proprietários o que não lhes pode dar.

O predomínio do eucalipto na nossa floresta é somente um sinal da vulnerabilidade de Portugal. Que as empresas beneficiárias defendam o seu privilégio e que arregimentem os seus para uma declaração de subserviência, é natural. Que o país vá sofrendo esta prepotência, enterrando os seus mortos nos incêndios, carpindo as perdas das famílias atingidas e esperando resignadamente a desgraça do ano seguinte, isso já é menos aceitável.