A lavandaria do Panamá

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 26/10/2019)

Clara Ferreira Alves

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Trinta e nove corpos clandestinos num camião búlgaro. Ao mesmo tempo, o patrão de uma empresa denominada WeWork, e que encontrou sérias dificuldades na oferta pública sendo obrigada a retirá-la, receberia 200 milhões de dólares para se retirar e deixar um investidor, o Softbank, resgatá-la com a injeção de biliões. Como tantas outras, a startup e o ‘disruptor’ foram sobrevalorizados. Temos aqui um dos variados espelhos da desigualdade que o capitalismo sem freio nem escrutínio, sem regulação de políticos medrosos e desautorizados, promove e ambiciona. Um mundo unipolar desde a falência do modelo coletivista soviético, que se recusa a taxar o grande capital e que faz basear os regimes fiscais numa classe média e assalariada à qual foram pedidos, exigidos, os resgates dos bancos e do sistema financeiro. Todos sabemos que o dinheiro se multiplica sozinho, como sabemos que o dinheiro nunca se multiplica a partir de um salário, a não ser que esse salário seja de um administrador ou quadro superior que receba cerca de cem a duzentas vezes mais do que os trabalhadores da empresa. Todos sabemos que nunca houve no mundo tanto dinheiro e que esse dinheiro não está a ser distribuído ou taxado. Sabemos que muito dinheiro é sujo. Em que se distingue um oligarca russo que se apoderou dos recursos naturais do seu país dos corruptos ditador africano ou alto burocrata chinês, e todos de um chefão de um cartel mexicano ou colombiano da droga? No ramo de negócio.

Uma vila do Reino Unido descobriu que os habitantes pagavam mais imposto de renda do que o Facebook de Zuckerberg, e acionou os mecanismos de protesto e rebelião. Inutilmente, porque a opinião publica vê com maus olhos a taxação intensiva das tecnológicas às quais oferece os dados pessoais enriquecendo-as até ao infinito, e prefere culpar os rendimentos dos políticos ou os bancos malfeitores. As tecnológicas escapam com impunidade. Na Europa, o único continente onde a regulação e taxação têm merecido a atenção de Bruxelas e da formidável Margrethe Vestager, as tecnológicas têm offshores em países inteiros, como a Irlanda. Ou a Holanda. Ou o Luxemburgo. Ou Chipre, oásis dos multimilionários russos com obscuros proventos. De vez em quando, um escândalo rebenta e durante dias os media dão-lhe uma atenção exclusiva para logo o deixarem cair. Os media, também por ignorância dos mecanismos de esconderijo do dinheiro, preferem temas que entronquem no escândalo passional ou político, no sumo cor de rosa ou no triunfo desportivo que alimenta os espíritos dos pobres que não ganharão o reino dos céus.

Os pobres não ganharão coisa nenhuma. Os corpos búlgaros não têm importância para o oligarca que lucrou com o desmantelamento do império soviético. E os media tradicionais estão eles mesmos na falência, engrossando as suas legiões um bloco que podemos designar genericamente por remediados. Poderá o “Washington Post” escrever sobre a Amazon e Jeff Bezos? Não.

O escritor e jornalista francês Emmanuel Carrère tem no livro “Il est avantageux d’avoir où aller” uma reportagem brutal sobre o Fórum de Davos e a hipocrisia dos salvadores do mundo, embrulhando o capitalismo universal num manto de bondade e boas intenções, das que está o inferno cheio. É um texto cómico, porque a abordagem deste mundo autocontido terá de ser cómica por não poder ser trágica. A tragédia, exceto a tragédia pontual dos corpos achados num camião como notícia sentimental do dia em que a Inglaterra tenta livrar-se de búlgaros e afins, que os brexiters não desejam acolher, a tragédia, repete-se, não convence e afasta a audiência. A abordagem trágica tem o mesmo efeito prático que o novo tomo de Thomas Piketty a desenhar os gráficos da desigualdade. O mesmo que as consequências reais do escândalo dos ‘Panama Papers’. Ou seja, nenhum. Durante uns dias a coisa é discutida apaixonadamente, e logo esquecida e enterrada.

As offshores, que sugam o dinheiro dos impostos que os Estados deveriam cobrar, continuam desreguladas. Os paraísos fiscais? Ninguém ousa pôr-lhes cobro. A começar pelas esquerdas, que não só continuam a insistir em alargar o Estado e premiar os funcionários públicos como nunca se movimentaram para cobrar às tecnológicas e multinacionais ou censurar os paraísos fiscais de uma forma compenetrada e exclusiva.

A esquerda clássica quer retirar à classe média assalariada para dar à classe média assalariada, retirar às empresas privadas que pagam impostos para dar aos cidadãos pobres que pagam impostos. As esquerdas que temos, e isto é visível no Partido Trabalhista de Corbyn e McDonnell, não percebem que o mundo mudou. E não percebem de encriptação e segredo industrial. Não compreendem a civilização digital e a supremacia do algoritmo. Não percebem matemática e sofisticados sistemas de taxação, que Piketty percebe. Querem coletivizar e nacionalizar o que é possível, não perseguir o que é impossível. Com exceção de Elizabeth Warren, que nunca será Presidente da América.

Como Carrère, o novo filme da Netflix sobre a Mossack Fonseca, a dupla dos ‘Panama Papers’, escolheu a abordagem cómica (também usada em “The Big Short”, sobre a crise do subprime) que Steven Soderbergh trata com o talento dele. Um grupo de grandes atores, de Meryl Streep a Gary Oldman, de Sharon Stone a Antonio Banderas, serve um argumento bem escrito que desnuda os reis da lavagem do dinheiro. “The Laundromat” (“a lavandaria”) foi mal recebido nos Estados Unidos, paraíso do capitalismo liberal. Eu não vi os defeitos que os enfastiados críticos viram. Dada a obscuridade do tema, e as complexas ramificações, a abordagem cómica serve uma intriga que a abordagem dramática nunca conseguiria explicar com sucesso. Os senhores Mossack e Fonseca consideraram-se ofendidos, e só a reação dos cavalheiros vale o filme. Tencionam processar a Netflix. Good luck with that. Por uma vez, um gigante dos media é maior do que a honra do capital. Os depauperados jornais e cidadãos nada puderam contra a narrativa do Panamá e a criminosa ação dos paraísos fiscais. A Netflix faz o que não podemos fazer. Porque tem poder e tem dinheiro para isso. E o dinheiro é a única coisa que (im)pressiona o dinheiro.

Queremos mesmo reduzir a carga fiscal?

(Ricardo Paes Mamede, in Diário de Notícias, 24/09/2019)

Paes Mamede

A polémica sobre a evolução da carga fiscal em Portugal é um exemplo do que não deveria acontecer numa democracia madura. Os partidos de direita são incoerentes. O governo confunde mais do que elucida. O INE (Instituto Nacional de Estatística) fomenta o uso de um conceito equívoco. E a comunicação social dá eco a um debate feito em termos pouco inocentes.

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Há expressões que são escolhidas a dedo para induzirem a interpretação desejada. Por exemplo, entendemos coisas diferentes se nos disserem que um mercado de trabalho é “muito regulado” ou que é “muito rígido” – mesmo que a realidade que estejam a descrever seja a mesma. Todos queremos que haja regulação nas economias, mas ninguém gosta de soluções rígidas. Por isso, quem defende mercados de trabalho liberalizados prefere usar a expressão “rigidez” e evita a palavra “regulação”; quem defende uma maior protecção dos trabalhadores nas relações laborais faz o contrário. As palavras, de facto, não são neutras.
O mesmo se passa com a expressão carga fiscal, que corresponde ao rácio das receitas de impostos e de contribuições sociais sobre o PIB.

Em muitas situações deveríamos todos celebrar o aumento daquele rácio. Tal verifica-se, por exemplo, quando o dinheiro enviado para paraísos fiscais passa a ser devidamente tributado; ou quando as actividades informais passam a fazer os descontos que devem; quando as várias formas de trabalho precário passam a estar cobertas pela protecção social, contribuindo em conformidade; ou ainda quando os salários aumentam, levando a que os rendimentos estejam sujeitos a taxas de imposto mais altas, respeitando assim o princípio da progressividade.

São boas notícias quando alguma destas fontes de aumento da carga fiscal se verifica. Mas não é isso que a expressão usada nos leva a crer. Carga é sempre uma palavra negativa. É um peso, um fardo que temos de suportar. Convida-nos a ver qualquer melhoria na angariação de receita por parte do Estado como uma má notícia, como algo a evitar sempre que possível.

Bastaria olhar para os níveis da carga fiscal nos países da União Europeia para questionarmos aquela interpretação. Mesmo depois da recente subida do rácio em Portugal, há 16 países em 28 que têm cargas fiscais superiores. Correspondem, com poucas excepções, às economias mais desenvolvidas da UE. Sem surpresas, países com serviços públicos mais abrangentes, Estados mais funcionais e sociedades mais coesas – como a Áustria, a Dinamarca, a Finlândia e a Suécia – encontram-se neste grupo. A razão é dupla: por um lado, os impostos e as contribuições sociais são o preço que se paga por viver em sociedades decentes; por outro, as receitas obtidas são maiores nos países em que o Estado é mais eficaz e onde o compromisso com o bem-estar colectivo é maior.

Não é assim que pensam os neoliberais. Para estes, o Estado é um empecilho à liberdade, excepto quando garante a segurança, a justiça e a concorrência de todos contra todos. Tudo o resto deve ser deixado aos mercados e à decisão individual. Mais impostos e mais contribuições sociais representam um aumento da coerção que o Estado exerce sobre os indivíduos. A ser assim, o aumento da carga fiscal é um fardo a abater. Por isso fazem tanta questão de sublinhar a expressão sempre que a usam – e usam-na sempre que podem. Já se percebe menos bem que a comunicação social ou o INE utilizem acriticamente o conceito, fomentando uma interpretação tão carregada de doutrina.

Por contraste, é fácil perceber que PSD e CDS recorram aos números da carga fiscal como argumento de campanha. A apropriação pelo PS da bandeira das “contas certas” e o bom desempenho da economia portuguesa ao longo da legislatura deixaram a oposição de direita com poucas alternativas de mensagens eleitorais. Mas há um problema: sem o aumento das receitas de impostos e contribuições sociais seria impossível continuar a pagar a dívida pública nos termos previstos e manter níveis mínimos de investimento nos serviços colectivos. PSD e CDS não podem denunciar escandalizados o aumento da carga fiscal e ao mesmo tempo exigir maiores pagamentos da dívida pública e mais investimento nos serviços de saúde.

O governo, por sua vez, não ajudou muito a clarificar a discussão. Mário Centeno começou por afirmar que “faltava PIB” às contas da carga fiscal, sugerindo assim que os valores máximos deste rácio atingidos em 2018 resultavam de um problema no cálculo do denominador. A revisão do PIB, entretanto anunciada pelo INE, só em parte dá razão a Centeno: apesar de menor, o valor do rácio em 2018 continua a ser o mais elevado de sempre. O ministro das Finanças quis também instituir um novo conceito de carga fiscal, que leva em conta as implicações das opções actuais para as gerações futuras; mas ao optar por revestir de discurso técnico uma questão que é acima de tudo política confundiu mais do que elucidou. Continuando a jogar à defesa, Centeno socorreu-se de um gráfico do Banco de Portugal para mostrar que as taxas de imposto de facto baixaram, pelo que o aumento das receitas em percentagem do PIB não se deve a um maior esforço fiscal; mas limitou-se a enunciar ideias genéricas sobre a evolução da economia e do emprego para explicar a dinâmica do indicador em causa.

Ao longo deste debate, o governo nunca tornou claro de onde vem exactamente o aumento das receitas: da expansão do emprego líquido? Da subida dos salários? Do alargamento da base de contribuintes? Do combate à evasão fiscal e contributiva? Da maior cobertura de protecção social para trabalhadores precários? Sem estas informações não é possível fazer um debate sério e consequente sobre a evolução da fiscalidade em Portugal.

Uma discussão baseada em informação detalhada sobre as razões do aumento das receitas fiscais e contributivas permitiria esclarecer quem defende o quê e porquê nos debates sobre os modelos de desenvolvimento propostos para Portugal. De outra forma, não vamos além de chavões mais ou menos eficazes na luta eleitoral, mas pouco condicentes com uma democracia madura.

Economista e professor do ISCTE

Os malefícios dos benefícios

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 20/06/2019)

Alexandre Abreu

Um bom sistema fiscal deve ser simples, transparente, justo, proporcionar os recursos adequados à atividade do Estado e não implicar custos excessivos (incluindo em termos de dispêndio de tempo) nem para a administração fiscal nem para os contribuintes. Sobre isto é possível toda a gente ou quase concordar, independentemente da posição política – ao mesmo tempo que naturalmente se diverge sobre quão progressiva deve ser a fiscalidade e sobre qual deve ser o alcance da provisão pública.

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O uso – ou abuso – generalizado dos benefícios fiscais no sistema fiscal português é, à luz dos critérios em cima, um fracasso em toda a linha. O grupo de trabalho criado pelo Governo há um ano para estudar esta questão apresentou esta semana as suas conclusões, tendo encontrado 542 benefícios fiscais diferentes que, no seu conjunto, implicam uma despesa fiscal (perda de receita fiscal estimada) correspondente a perto de 12 mil milhões de euros – cerca de 6% do PIB, ou mais do que o orçamento anual do Estado para a saúde.

Mais grave do que isso, concluiu o mesmo grupo de trabalho, é o facto de não estarem contabilizados de forma minimamente rigorosa e sistemática nem os custos nem os benefícios da grande maioria dos benefícios fiscais que têm vindo a ser criados de forma ad hoc ao longo dos anos. Cerca de um quarto destes benefícios nem sequer tem uma função definida – não se conhece ao certo o objetivo económico ou social que se pretende com eles alcançar.

O sistema português de benefícios fiscais é um emaranhado de exceções, lacunas e escapatórias, principalmente em sede de IRS e IRC, que é tudo menos simples e transparente, servindo interesses particulares mal definidos e beneficiando desproporcionalmente quem melhor domina os meandros labirínticos da legislação e consegue fazer-se valer disso.

A essa dimensão de injustiça acresce a que resulta do facto de os benefícios fiscais serem em geral uma forma socialmente regressiva de despesa. Veja-se o exemplo da proposta, ainda esta semana retomada pelo CDS, de os residentes no interior do país pagarem metade do IRS. Quando temos em conta que perto de metade das famílias portuguesas (as de menores rendimentos) não paga IRS devido a não terem rendimentos suficientes para tal, percebemos facilmente que esta medida beneficiaria essencialmente as famílias do interior que auferem maiores rendimentos – as mais pobres não teriam qualquer vantagem – e que o benefício será tanto maior quanto mais elevados forem os rendimentos das famílias em questão. Por baixo de uma capa aparentemente benigna, esconde-se uma proposta fortemente regressiva em termos sociais, nomeadamente face à alternativa de reforçar o investimento público e os apoios sociais dirigidos ao interior, que têm um efeito muito mais transversal e progressivo.

Os benefícios fiscais reduzem os recursos que permitem financiar a atividade do Estado, aumentam a opacidade e complexidade do sistema fiscal e são uma fonte importante de injustiça e regressividade. Devem por isso ser excecionais, rigorosamente avaliados nos seus custos e benefícios e preverem mecanismos automáticos de caducidade. Em boa hora este grupo de trabalho começou a olhar para este problema, avançando com propostas neste sentido que o Ministério das Finanças parece ver com bons olhos. Resta agora agir em conformidade.