As reações a Fátima provam que o objetivo era calar o PCP

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 15/09/2020)

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É muito interessante comparar as reações mediáticas e partidárias a toda a preparação da Festa da Avante e a forma complacente e justificativa como foi tratado o que aconteceu em Fátima no dia 13 de setembro. Durante meses fomos massacrados com o que iria acontecer na Quinta da Atalaia. A exceção, o tratamento de favor, o crime. Até tivemos direito a cartazes insultuosos da JSD. Defendi, depois de serem conhecidas as condições em que o PCP faria a Festa, que ela não punha em risco a saúde pública e era legítima. Também fiz uma avaliação política do erro que o PCP cometia, por dispersar a sua mensagem e se ver obrigado a ficar à defesa. Mas nunca duvidei que estávamos perante uma campanha e por isso o escrevi.

Não há comparação entre o que aconteceu na Festa do Avante, onde as pessoas assistiram aos concertos em lugares sentados e distantes, onde conhecemos a lotação não apenas do espaço em frente ao palco mas da zona circundante e onde foram definidas regras; e as imagens que vimos no Santuário de Fátima, com milhares de pessoas em pé, sem lugares previamente definidos e sem um décimo do controlo que se exigiu ao PCP.

No entanto, todos os títulos dos jornais tiveram um sentido quase inverso ao que foi dito sobre a Festa do Avante: que o Santuário, cuidadoso, bloqueou o acesso mal se chegou a um terço da sua capacidade. Coisa nunca vista, extraordinária, admirável. A medida de emergência e improvisada teve um tratamento mais simpático do que todas as medidas preventivas do PCP, tratadas com desconfiança ou desdém.

Terão estado cem mil pessoas no Santuário de Fátima, que tem 7,2 hectares. O PCP propôs-se receber 33 mil (a DGS aconselhou 17 mil) num espaço de 30 hectares. Com uma área quatro vezes superior, a Quinta da Atalaia propôs-se receber um terço (a DGS aconselhou um sexto) das pessoas que estiveram no Santuário de Fátima. Mesmo que os 30 hectares não sejam todos área útil, a diferença continuará sempre a ser abissal. Ninguém fez perguntas no Parlamento. Ninguém se incomodou. Os jornais que fizeram do PCP o bombo da festa não pediram esclarecimentos. Não houve petições, cartazes, marchas lentas de carro. O secretário de Estado da Saúde até sublinhou o “comportamento exemplar” da Igreja. Não, o comportamento não foi exemplar. Muito longe disso. Foi improvisado. Foi o oposto ao que vimos com o PCP.

Não se trata de justificar um erro com outro, até porque o erro é incomensuravelmente mais evidente em Fátima do que na Atalaia. Mas fica claro que a motivação contra o PCP nada teve a ver com saúde pública. Se assim fosse, a indignação seria muitíssimo sonora neste momento. A motivação foi política. E sendo política, quer dizer que há quem use a pandemia para tentar limitar a liberdade política dos seus opositores. E isso é, por si só, um ataque à democracia.

Por mim, a Festa do Avante e as peregrinações a Fátima devem acontecer, desde que se acordem condições mínimas para que se façam em segurança. Cada um assumirá o preço político de assim o fazer. Assim como espero que os que antes gritaram e agora se calam assumam as suas verdadeiras motivações.


Fátima, Futebol e Festival

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 15/05/2017)

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Não há conversa mais previsível que o enjoo moralista com quase tudo o que sejam manifestações populares que não correspondam às recolhas etnográficas ou aos cânones neorrealistas.

Mas dos três F que o Estado Novo usou para reduzir os portugueses a uma simplicidade mais maleável e menos subversiva, dois já foram absolvidos e absorvidos pela intelectualidade nacional. Antes de tudo, o futebol. Hoje, até fica mal a um intelectual não saber de bola. E o fado, a que chegaram novas vozes. Hoje, até fica mal a um poeta não ter escrevinhado nada para ser fadistado. Só mesmo Fátima continua, por razões evidentes, fora da lista do consensual.

Quando era novo o fado era música de fascistas e o futebol alienação para mentes embrutecidas. Porque era suposto o povo passar o dia a fazer a revolução. Isto quando não estava a trabalhar, obviamente. Este espírito desapareceu ao ritmo que desapareceram as esperanças na dita revolução. Mas sobreviveu um discurso que me faz trepar pelas paredes: sempre que o povo se diverte quer dizer que está alienado e desinteressado daquilo que é relevante. O paternalismo, que retira aos outros o direito que nos damos a nós próprios – o do divertimento ou da fruição de cultura e da religião – é comparável a uma proposta que um dia ouvi num partido onde militei e que felizmente não passou pelo crivo do bom senso: o de não haver televisão à quinta-feira, como acontecia na Islândia. A mesma esquerda que se bateu durante décadas pelo direito dos trabalhadores a serem donos do seu tempo fora do trabalho tem a tentação de decidir o que os trabalhadores podem e não podem fazer com esse tempo que é só seu.

É verdade que a conjugação dos três F tem uma conotação política evidente. É verdade que ela corresponde à simplificação de uma identidade nacional que a propaganda das ditaduras de direita sempre precisou. Isso ou a nossa suposta tolerância e brandura de costumes, uma aldrabice excelente para pintar de cores suaves o colonialismo e manter bovino o bom povo. Também é verdade que o pão e circo sempre foram uma receita ganhadora para eternizar a tirania, que as aparições de Fátima foram, desde o início, um instrumento de propaganda antirrepublicana e anticomunista e que o fado foi extirpado do seu lado marginal para passar a ser apenas resignado. E que depois do fado veio aquilo a que, nos anos 70 e 80, se chamava de nacional-cançonetismo e que tinha, em ditadura e em democracia, o ponto alto nos serões em que o País parava para ver o Festival da Canção. Mas pode dar-se o caso do salazarismo não ter apenas plantado as sementes dos três F, ter colhido também os frutos do que já era popular para a partir daí forjar a simplificação de uma identidade que lhe era conveniente. Uma única, que as ditaduras gostam pouco da variedade.

Quem julga que Fátima, Futebol e Fado são sinal de atraso acreditou na propaganda salazarista, que os queria como instrumentos seus. Temos acesso a muito mais e já ninguém tenta resumir este povo aos três F . Mas continuamos a precisar de momentos coletivos em que nos sentimos, na nossa diversidade, uma comunidade.

Quis a suprema das ironias que um século depois das supostas aparições de Fátima, num tempo em que os ventos revolucionários varriam a Rússia e que os sentimentos anticlericais tomavam a elite política do país, tudo se encontrasse de novo, no mesmo dia. Parece que o passado se concentrou todo a dia 13 de maio de 2017: centenas de milhares de portugueses encontraram-se em Fátima, outros tantos festejaram o campeonato do Benfica e os restantes ficaram colados à televisão a verem a Eurovisão e celebrarem o seu patriotismo pop (mas com qualidade, apesar de tudo) . Como é possível que depois de 43 anos de liberdade, democratização do ensino e da cultura, de Europa e de acesso ao mundo, tudo pareça não ter mudado? Enganam-se: mudou tudo. Os três F – tendo o Festival tomado o lugar do Fado, que é hoje até é bem visto pela generalidade dos intelectuais – não eram sinal de coisa nenhuma. Faziam apenas parte da cultura popular e foram usados pela ditadura para uma simplificação identitária que lhe convinha. Já éramos muito mais do que isso então e, em democracia, ainda mais o seremos. E quem julga que Fátima, Fado e Futebol são sinal de atraso acreditou na propaganda salazarista, que os queria como instrumentos seus. O que mudou? Temos acesso a muito mais e já ninguém tenta resumir este povo aos três F (a começar por Fátima). O que não mudou? Continuamos a precisar de momentos coletivos em que nos sentimos, na nossa diversidade, uma comunidade. E isso pode ser bem mais saudável do que parece.


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Se os pastorinhos estivessem na escola seriam santinhos

(In Blog O Jumento, 13/05/2017)
pastorinhos
Visto de fora as aparições de Fátima, que aos poucos a própria Igreja Católica vai transformando em visões foi uma grandiosa obra de marketing conduzida ao longo de décadas pelos governos e clero portugueses. De aparições não reconhecidas, uma entre muitas aparições comuns na época, as aparições de Fátima transformaram-se num fenómeno mundial.
Aos poucos o catolicismo vai promovendo uma espécie de revisionismo, as aparições já não o são para passarem a ser visões, em vez de se pedir que se acredite no fenómeno sugere-se que se acredite na espiritualidade do local, o próprio papa desvaloriza a dimensão milagreira da Nossa Senhora, algo que teve o seu expoente máximo quando Cavaco sugeriu que o bom resultado da 7.ª avaliação da Troika se devia ás rezinhas da esposa à Nossa Senhora de Fátima.
Mas quem eram os “pastorinhos”, que cultura tinham, em que meio viviam? Os agora santinhos não tiveram uma grande sorte, deixaram de ser crianças de um dia para o outro, dois morreram ainda em crianças vítimas da doença e da miséria, a sobrevivente viveu enclausurada pelas paredes dos conventos e pelas paredes de convicções adquiridas em criança.
Se as três crianças em vez de andarem a guardar gado andassem na escola a Nossa Senhora teria aparecido? As crianças teriam visto a Nossa Senhora e ouvido os seus segredos?
Poder-se-á colocar a questão de outra forma, porque será que  a Nossa Senhora que poderia ter aparecido em qualquer lado, a adultos com formação ou a crianças na escola, preferiu aparecer junto de crianças sem qualquer cultura, que viviam num ambiente fechado cheio de santos e de diabos? A resposta é porque a Nossa Senhora prefere os mais pobres. Os mais pobres ou os mais ignorantes?
Hoje é treze de maio uma data importante para quem nasceu numa terra fundada pelo Marquês de Pombal e que sempre se manteve fiel ao ministro de D. José, o Marquês nasceu precisamente nesta data. Por isso celebro o nascimento do Marquês, respeitando os valores religiosos de cada um e, em especial dos que em vez de optarem pela estátua do marquês de Pombal, em Lisboa, preferem a Santa Iria.
Mas espero que da próxima vez a Nossa Senhora apareça a crianças que andem na escola.