TVI – 25.º aniversário

(Carlos Esperança, 21/02/2018)

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Foi já no estertor do cavaquismo (julgávamos nós, a memória foi curta), mas no auge da prepotência, que foi atribuído à Igreja católica o segundo canal privado, sem um projeto coerente, sem um caderno de encargos credível, sem viabilidade, mas a render homilias favoráveis ao PSD nas missas dominicais, contra um projeto mais elaborado e credível, em pia arbitrariedade governamental.

Do início nebuloso, que celebrizou o mais indigente dos programas, “A amiga Olga”, já não há memória. Durou a telemadrassa enquanto os crentes não se cansaram de acorrer aos aumentos de capital, desistindo das “boas ações” e do Paraíso, mais pela despesa do que por ausência de fé.

Do aborto informativo gerado no ventre do patriarcado de Lisboa, arrancado a ferros e com ventosa, pelo PM, diria mais tarde o pioneiro da crítica televisiva e seu excecional expoente, Mário Castrim, «nasceu na sacristia e desaguou na sarjeta».

À míngua de óbolos e orações, a TVI (‘I’ de Independente e de Igreja) mirrou e emigrou para o capital laico, onde a programação deixou de ser anunciada em missas dominicais, enquanto o Patriarcado garantiu missas, tempos de antena e mensagens cardinalícias no canal público, em flagrante atropelo à laicidade do Estado.

Deste projeto megalómano da Igreja católica e da cedência vergonhosa do Estado não se fala no 25.º aniversário em que muitos recordarão mais os programas escabrosos do que os negócios e as lutas políticas travadas no seu seio.
Para memória futura, ficam estes apontamentos que os cúmplices gostariam de ocultar e certamente empalideceriam os festejos de aniversário. Tudo se esquece e perdoa, longe do escrutínio de uma opinião pública esclarecida e participativa.

Ontem foi dia de festa na TVI, mas o passado ficou envolto nas brumas da memória.

Tolerância intolerante

(Por Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 01/05/2017)

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Protestar contra a tolerância de ponto decretada para se ir ver o papa não é ser contra manifestações religiosas; é estar contra a arregimentação, pelo Estado, de tais manifestações. Estranho um governo de esquerda não ter a sensibilidade de distinguir uma coisa da outra.


“Hoje devia ser feriado, caralho.” O grito de Éder, na Alameda, em julho de 2016, no fim do cortejo triunfante da seleção pelas ruas de Lisboa, ainda faz sorrir. Mas não, nesse dia não houve feriado; só os funcionários da Câmara tiveram tolerância de ponto. O resto dos trabalhadores públicos não tiveram licença para ir dar vivas aos heróis do Euro.

Terá havido então “uma grande falta de sensibilidade do governo”, para usar as palavras com as quais Costa justificou a tolerância de ponto na vinda do papa a Fátima. O governo não achou, na altura, que se justificasse o fecho de escolas, o adiamento de cirurgias e consultas, o encerrar de serviços públicos. Não havia, quiçá, do ponto de vista governamental, dignidade ou “bondade” suficientes na ocorrência; não era algo em que se pudessem citar números dos Censos para se alegar que “a esmagadora maioria dos portugueses são futebolísticos”.

Sucede que toda a gente sabe que são. Como toda a gente sabe que o Benfica é o clube com mais adeptos. Poderíamos pois defender que houvesse, em nome da tal “sensibilidade”, tolerância de ponto a cada jogo importante do Benfica? Não, responder-se-á; os outros clubes protestariam, e bem, pelo favorecimento do Estado a um rival. Seria uma insensibilidade do Estado desprezar os sentimentos dos não benfiquistas, para além dos de quem se está nas tintas para o futebol. E ninguém deixaria de reputar tal ideia de completamente idiota.

Muito bem. Qual é então a diferença entre decretar tolerância de ponto para uma celebração do clube com mais adeptos e simpatizantes e fazer o mesmo com uma confissão religiosa igualmente popular? Como se constata, no segundo caso parece haver muito mais gente a não achar uma idiotice, mesmo se a Constituição tem o cuidado de estatuir a separação entre Estado e confissões religiosas, não entre Estado e clubes de futebol (talvez devesse).

Esse cuidado deve-se à existência de uma história, mundial e nacional, de confusão entre Estado e religião. E porque não basta confiar no bom senso dos representantes do Estado para a evitar. Aliás, como nos demonstra o vídeo de propaganda que o PR gravou sobre Fátima, bom senso é um bem escasso. Alguém acharia normal o PR fazer um vídeo a promover um partido ou um clube de futebol? Porque será então que este acha aceitável fazê-lo sobre a sua “devoção” a Fátima? É claro que ser presidente não implica deixar de ser devoto do que lhe apeteça; exige-se-lhe porém não confundir a devoção com a função. E quem tenha dificuldade em perceber o quanto tal confusão é inadmissível só tem de imaginar que o vídeo era de propaganda à Igreja Universal do Reino de Deus ou ao Islão.

Marcelo fê-lo, porém, não só porque quando o bom senso foi distribuído tinha ido a Tires ver de uma avioneta mas porque na sua cabeça – como na de tanta gente – Portugal é católico. De resto, a ideia de que a religião é algo de intrinsecamente bom e útil e partilhado, sem potencial fraturante, só se aplica, por cá, à confissão católica. Assim se explica que haja ainda, sem escândalo generalizado, centenas, senão milhares, de escolas públicas com crucifixos nas salas de aula; que nelas se organizem missas, como ainda nesta Páscoa foi notícia; que se mobilizem membros das Forças Armadas para procissões e seja comum autarquias e Estado financiarem construção de igrejas. Já uma câmara planear a construção de uma mesquita dá um banzé.

Tal imersão coletiva no abastardamento do princípio constitucional da separação faz com que de cada vez que alguém protesta contra esse mesmo abastardamento se fale de “ódio” e “fundamentalismo”. Denunciar o proselitismo católico do Estado – ou alguém pode desmentir que ao decretar esta tolerância de ponto se está a dizer “vão a Fátima ver o papa”? – é reputado de “exagero”. Ou “insensibilidade”, na versão do PM. É até comum que, em notável cambalhota argumentativa, se acuse quem o faz de querer impedir as pessoas de exprimir publicamente a sua fé – como se o que está em causa fosse proibir essa expressão em vez de exigir ao Estado que se coíba de a impor.

Esta reversão das posições – quem impõe e se congratula com a imposição a acusar os outros de serem eles os tiranos – é especialmente chocante vinda de um governo que tem na esquerda laica o seu suporte. Há quem, para justificar a incoerência, acuse Costa de “populismo” e “eleitoralismo”. Recorde-se porém que em 2010, quando na visita de Bento XVI o governo Sócrates decretou três dias de tolerância de ponto, não só houve protestos de vários setores como uma sondagem dava 55% dos inquiridos como desfavoráveis à mesma. Sendo duvidoso que o PS ganhe com isto um único voto, e ainda por cima calhando a visita do papa a Fátima num sábado, a decisão de parar o Estado só pode dever-se à tradicional reverência de partidos e governos, travestida de “cortesia”, face à Igreja Católica. Mais de cem anos após deixar de ter religião oficial, Portugal continua a ser um país em que se confunde liberdade religiosa com a liberdade de ser católico. E isso não é apenas insensível, é estúpido.

Bons costumes

(Daniel Oliveira, in Expresso, 27/08/2016)

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                       Daniel Oliveira

Com aplauso do governo de Paris, várias cidades balneares francesas proibiram a utilização de burkinis na praia, medida entretanto suspensa, em algumas localidades, pela mais alta instância da justiça administrativa francesa. Apesar do nome, os burquínis tampam o corpo e o cabelo, deixando o rosto visível. Vi-os quando estive em praias turcas. Lá, ninguém incomodou a mulher que, ao meu lado, usava biquíni. Gostava que em França acontecesse o mesmo, no sentido inverso. “O acesso à praia será banido a todos os que não tiverem roupa de banho adequada que respeite os bons costumes e o secularismo”, lê-se no comunicado do presidente da Câmara de Cannes.

Dantes o Estado achava que as mulheres sérias se deviam tapar, hoje acha que se devem destapar. Sempre em nome dos “bons costumes”. A ministra da igualdade francesa diz que tapar o corpo é uma forma de controlo sobre a mulher. E o Estado decretar que ela tem de o destapar é o quê?

A questão não é se gosto do que representa o burquíni, porque não gosto. É onde acaba o direito de o Estado determinar uma coisa tão pessoal como a roupa que cada individuo usa, seja qual for a sua religião. A defesa da liberdade das mulheres não determina que estas prefiram o biquíni ao burquíni. Determina que elas se vistam e se dispam como e quando querem, sem receberem ordens de maridos ou de polícias. As dos segundos não são mais libertadoras do que as dos primeiros.

Quando polícias obrigam uma mulher a despir-se na praia e os veraneantes que assistem aplaudem e lhe gritam “vai para casa” a França tem de olhar com medo para o caminho perigoso que está a trilhar. Quando as vendas de burquínis aumentam depois desta proibição deve compreender a inutilidade da medida. Viver em sociedade é difícil. Não podemos transformar cada gesto do outro numa insuportável ofensa para os nossos valores. Mesmo quando os valores dos outros nos incomodam. Sim, para grande parte dos muçulmanos, como para muitos católicos e para a maioria dos hindus ou dos judeus ortodoxos, as mulheres mantêm uma posição subalterna na sociedade e até acontece muitas delas defenderem a sua própria subordinação. Ao contrário dos que querem rasgar os burquínis em nome de um feminismo onde nunca militaram, sei que a autodeterminação das mulheres se faz garantindo-lhes instrumentos para exercerem a sua liberdade: trabalho, independência económica, planeamento familiar, direito a decidir sobre a sua gravidez e proteção judicial contra o abuso e a discriminação. O Estado obrigar uma mulher a vestir-se ou a despir-se em nome dos “bons costumes” é o oposto da autodeterminação. Até porque pode haver mulheres que querem mesmo usar o burquíni.

Não podemos ignorar a situação em França: isto coincide com uma crescente tentação totalitária, que se manifesta num estado de emergência eterno, na limitação ao direito de manifestação e na aprovação de leis fundamentais, como a laboral, por decreto. E coincide, como tem sido deixado claro por todos, com o sentimento de medo e revolta depois do Bataclan e de Nice. Na realidade, não se quer destapar os corpos das muçulmanas, quer-se tornar invisível a insuportável presença dos muçulmanos. Podemos continuar entretidos a discutir indumentária feminina. Mas todos sabemos que o debate é outro. E que à sua sombra se vai legitimando a intolerância e o autoritarismo. Sempre em nome da segurança e dos bons costumes, claro.