Especulação Imobiliária

(Dieter Dellinger, 28/09/2018)

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Foto: Alta de Lisboa com muito espaço para construção

A especulação imobiliária tem de ser vista nos seus números verdadeiros.

Há uns anos atrás a EDP declarou que tinha ultrapassado o número de 6 milhões de contadores domésticos, o que significa esse número de habitações para menos de quatro milhões de famílias.

Desde há décadas que natalidade tem vindo a descer e a mortalidade a subir um pouco apesar da esperança de vida crescer e chegar agora aos 80 anos. Quanto mais elevada a esperança de vida maior a mortalidade. Foi de 115 mil pessoas no ano passado com 87 mil nascimentos. Nenhum de nós fica por cá para sempre.

No prédio em vivo que é uma boa construção com 52 anos de idade já morreram 25 condóminos e ficaram dois casais, o meu e o de outro vizinho. Os apartamentos foram todos herdados pelos filhos ou sobrinhos que os passaram para netos ou venderam e serviram para ajudar esse netos a pagar uma entrada para um apartamento. Aconteceu isso com toda a gente que eu conhecia e com os de outros prédios vizinhos.

Por isso, o surto especulativo é de pouca duração, tanto mais que na única zona verdadeiramente livre para a construção, a Alta de Lisboa, já estão a construir novos prédios de grandes dimensões.

Falou-se no elevado custo da habitação na Rua do Salitre. Eu não queria viver nessa rua escura sem arrumação para carros nem que me pagassem. Também não queria viver em Alfama e qualquer outro bairro histórico nem no Martim Moniz ou na Rua da Palma, etc. e, menos ainda, no Chiado, Bairro Alto ou Largo de Camões.

Eu sempre pensei que Portugal pode vir a ser uma Califórnia da Europa devido ao seu clima amenos e às ligações eletrónicas e transportes que devem ser melhores nos próximos anos.

A Califórnia era uma terra bastante seca com um clima semelhante, só que nos anos vinte e trinta do século passado os americanos trouxeram água da Serra Nevada que vem do Estado do Nevado e criaram uma importante zona agrícola, o “Orange Valley” e depois veio muito turismo, universidades e indústria, principalmente, aquela que lançou a atual revolução digital mundial.

Fundamentalmente foi o clima ameno semelhante ao português. E está a acontecer isso em Portugal. Nada acontece em poucos anos, mas lentamente ou muito rapidamente em termos históricos, Portugal está a transformar-se. Claro, há os que são contra porque são sem sequer saberem porquê e os que se deixam enganar pelas televisões

Da política-espectáculo

(Joseph Praetorius, 14/07/2018)

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Joseph Praetorius

A mimetização da política-espectáculo pelo descerebrado funcionalismo, resulta nisto – entre outras grotescas desgraças – de haver uma polícia-espectáculo, uma procuradoria-espectáculo e tribunais-espectáculo.

Relembro o confinamento de 200 manifestantes perto das Amoreiras em Lisboa (improviso de campo de concentração, digno da Grécia dos coronéis), bem apoiado pelo falido Expresso – outro boletim da polícia – a noticiar, em grande excitação, o “desenrolar” da “operação” contra um bloqueio da ponte que nunca houve (ninguém consegue bloquear a ponte de Lisboa diante das Amoreiras, evidentemente).

Deixo-vos o link, para recordarem a coisa ( Ver)

A isto, se bem se lembram, respondeu a “Ordem dos Advogados-espectáculo” onde o candidato anti-Elina Fraga se exibiu na assistência às vítimas da arbitrariedade (como se a arbitrariedade alguma vez o tivesse incomodado, ou tivesse voltado a incomodá-lo depois disso).

Fica o link, também. ( Ver )

Tais incómodos foram pura diversão malsã da polícia. Aquilo foi tudo arquivado. Sem excepções.

E agora são os Hell Angels. “Longa maratona para identificar(…)”. Tudo maluco, evidentemente. Como é possível uma “longa maratona para identificar”? Só aqui, realmente. Até parece que “identificar” é tarefa complicada. “Especializada”. Um “grande esforço administrativo”. Os documentos estão em alfabeto georgiano? Vieram com documentos redigidos em Mandarim? Os detidos só falam Urdu? E os boletins da polícia mimetizam o “frisson”. Grande excitação. “Grande maratona”. Bandos sem fim de imbecis sem conto.

Mas muitíssimo perigosos. Não apenas pelos poderes funcionais de que dispõem. Não só porque as suas confabulações ecoam sem limites. Mas também porque, justamente, se trata da exibição muito colorida de bandos de imbecis. Convém não esquecer o bom velho Platão. A estupidez é homicida. (Nada há mais pacificamente demonstrado). Nenhum delinquente é risco maior do que uma tal polícia.

Admito sem dificuldade que os hell angels possam ter feito alguma asneira. Só que a polícia, pela imagem que de si própria faz difundir, só faz asneiras, por ser isso quanto resulta (sem apelo ou agravo possível) das imagens difundidas.

Uma vez perguntei por escrito ao director nacional da PSP se dirigia um serviço nacional de segurança, ou aprendizas de cabeleireiro sobre-excitadas. Os disparates ali em causa pararam. Está na altura de alguém repetir a pergunta, dir-se-ia. (Ver)

A peste do futebol

(António Guerreiro, in Público, 25/05/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

Consumada a futebolização do país, chegados ao estádio último de um ininterrupto matraquear futebolístico do espaço público, já os ideólogos desportivos se parecem com hooligans e os hooligans se parecem com os ideólogos desportivos. Todos primos, todos irmãos.

Para prosseguir a crónica de uma intoxicação voluntária, aproprio-me do título de um livro que não li, de dois sociólogos franceses. Basta-me o título: Le football, une peste émotionnelle (“O futebol, uma peste emocional”). Em vez de peste, o futebol-espectáculo organizado também pode ser um lugar de formações sociopatológicas. Ou uma obsolescência desportiva. O que não devemos fazer é naturalizar o que nele e à sua volta se passa. Tal como não devemos tratar como meros desvios ou derivas aquilo que já constitui a própria substância do espectáculo. E não é preciso ter ocorrido um episódio de violência real para percebermos o que tem sido uma continuada violência simbólica, exercida como uma injunção colectiva através do empreendimento dos media.

A crónica de uma violência normalizada, ou mesmo da banalidade do ódio, é aquela que nos fala dessa peste emocional promotora da barbárie nos estádios e à volta deles, que difunde o racismo, o populismo, os nacionalismos xenófobos, os regionalismos atávicos e os ódios identitários, dando origem a uma regressão cultural generalizada.

O futebol-espectáculo não é simplesmente um jogo colectivo, tornou-se uma organização para o enquadramento pulsional das multidões: e os estádios de futebol são lugares concentracionários, modelos de totalitarismo. É preciso abdicar da ideia de que são os grandes acontecimentos que determinam essencialmente os homens. Pelo contrário, são as catástrofes minúsculas de que é feita a vida quotidiana que têm uma influência maior e mais duradoura.

Ora, o futebol, que é uma crónica ininterrupta de catástrofes minúsculas, dramatizadas de maneira enfática através da mediatização e da espectacularização exacerbadas, propõe de maneira ideal a violência da competição desportiva. O bárbaro — escreveu Claude Lévi-Strauss — é sobretudo o homem que acredita na barbárie. No futebol-espectáculo instalou-se a barbárie da competição desportiva e a barbárie originada pela peste emocional. Lutas, enfrentamentos, guerras, conflitos, rivalidades, provações, desafios agonísticos: o mais extremo campo semântico do darwinismo social transferiu-se para aqui. E os media praticam o incitamento à guerra e montam o palco das baixas contendas. Não fazem jornalismo desportivo: são, digamos assim, especialistas de polemologia do futebol.

E os jogadores, no meio de tudo isto? Os deuses do estádio são os representantes de formas extremas de escravidão, que a nossa época recalca e não ousa pensar. Há uma pequena parte com ganhos tão astronómicos que tudo o resto é esquecido. E o resto é a instrumentalização dos indivíduos no mais alto grau,  estritamente reduzidos à sua função específica: espera-se que eles sejam um apêndice da performance absoluta. E, por serem isso e nada mais, não podem falar para além daquilo que lhes é consentido pelo clube, não podem protestar contra os patrões, mal são “comprados” ficam destituídos de todo o direito e têm como única condição serem “activos” dos clubes. Têm de abdicar de toda a autonomia e da vida privada. São inteira propriedade do clube, da empresa desportiva que os compra, os vende, os empresta.

E quanto mais valem como desportistas, menos valor têm como pessoas. Chegámos aqui ao grau último da mercadorização da existência. Não há nenhum deus do estádio que não seja ao mesmo tempo uma criatura que se defronta com o inferno.