Um burro carregado de livros é um doutor

(Frederico Carvalhão Gil, in Facebook, 13/04/2021)

O princípio do Estado de direito é coisa que os juristas portugueses ainda não compreenderam porque a memorização acrítica de coisas que se vão dizendo ex-cátedra por docentes que se formaram nessa roda viciosa de cretinices germanófilas, apesar de o conhecimento suficiente do alemão não abundar assim tanto.

É, por isso, que quando abrimos um livro de direito de autor português é quase certo que lá virá a acrítica e compulsiva repetição de que o Estado de Direito é coisa que se deve aos alemães, não obstante de, por cá, já nos anos 20 do século XIX se utilizar a expressão «governo da lei». Dizem os ditos que estado de direito vem do alemão Rechtsstaat que mais não é do que somente o reino da legalidade. Seja um estado legal «perfeitamente acomodado a regimes totalitários, como a eleição «democrática» de Hitler, legítima porque legal».

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Na verdade, um estado de direito tem que ter como vértice – na tríade indivíduos, estado, direito -, o direito que regula a relação entre os indivíduos entre si, e os indivíduos e o estado, e não da relação direta entre o estado e os indivíduos, à maneira de Carl Schmitt, como o apregoou recentemente Marcelo (o afilhado) como profissão de fé nos inimigos da Estado de Direito (o Governo da Lei, The Rule of Law).

Mas os doutores em Portugal, inclusive os dos tribunais e anexos carregam livros, como poderia sintetizar a sabedoria popular portuguesa, e também aquela conhecida máxima de sabedoria de Heráclito em que se diz que o muito estudar não dá inteligência.

E por isto – e outras cretinices – a administração da justiça é um problema político em Portugal. E se o bom senso não fosse o arbítrio de quem o usa, diria que é preciso passar à reforma procuradores, juízes, professores de direito que ainda não viram a luz do conhecimento, que não aprenderam o significado do sapere aude de E. Kant, e preferem mergulhar no reino da ignorância repetindo fórmulas que lhes disseram serem o bom pensamento, mas na ausência do saber pensar bem.

É um avacalhamento da ordem constitucional portuguesa, das normas e princípios que a estruturam, afirmar que a lei serve a política e não o contrário. Isto é muito pior do que as javardices do chefinho do Chega, este subproduto das «covert actions» financiadas pelo tal ricalhaço com negócios na América. Mas todos fingem que está bem para bem parecer!


Até ao longo dia da Grande Cólera

(José Preto, in Jornal Tornado, 18/08/2019)

Há um conflito neurótico, dir-se-ia, na vida política e jurisdicional portuguesa.

Neste conflito, opõem-se – até à exasperação – as exigências do Estado de Direito e de uma sensibilidade social crescentemente democrática, mesmo nos seus vectores conservadores, às pulsões de um funcionalismo de formação nacional-católica, compreendendo os professores disponíveis das Faculdades de Direito (à excepção clara de Jónatas Machado e Paulo Ferreira da Cunha, que evidentemente contam para muitas coisas, mas não para aquilo que deveriam contar).

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O impacto social das praxes deste funcionalismo e da sua duríssima pedagogia é fácil de medir ao olhar os modos de tratamento ali reservados aos cidadãos comuns e a proporção de empregos que a administração garante entre a população activa.

O nacional-catolicismo (materializado no Estado de Petain, Franco e Salazar) naquilo que nos ocupa aqui, pode ser designado por fascismo católico sem inconvenientes, práticos ou teóricos, de significativa relevância. O fascismo dos católicos diverge dos fascistas pelo facto de recusar a pretendida primazia ao Estado como expoente da máxima consciência dos valores éticos da sua época, papel que reivindica para a sua (deles) Igreja. Os fascistas, em todo o caso, não têm “directores de consciência” e os da Colina Vaticana, sim. Recusa esta igreja (como qualquer outra) a perspectiva hegeliana do Estado e do Direito e os fascistas assumem-na. Esta igreja (caso único entre todas) afirma a sua chefia máxima, única, e reivindica para ela a soberania universal, enquanto os fascistas não aceitam poder que ao Estado se sobreponha na ordem externa, ou a ele se iguale na ordem interna. Isto chegará para esclarecer o significado da expressão que em toda a Europa é tão clara e aqui suscita tantas dúvidas.

O nacional catolicismo subiste mais facilmente que o fascismo nas mentalidades, assente numa prática religiosa intrusiva, tendencialmente psicotizante, a enformar as deseducações sentimentais, ao abrigo do ascendente (vezes de mais efectivo) dos seus ministros do culto.

Contando com a gestão (já política, muitas vezes) dos sentimentos de culpa que estes disseminam bem e vão governando, sobre a teia das pompas e dos  pretendidos segredos “de confissão”, numa moral que institui e dissemina as taras (em obcecação doentia pela vida sexual alheia), ao ponto de transformar em problema o simples e natural acto de dar banho a uma criança, ou de comer uma banana (estou infelizmente a falar a sério).

Esta educação católica (há apesar de tudo outras) é um lastro político deplorável. E é a referência do alto funcionalismo aqui disponível olhado em plano geral, todo ele asilar e incapaz de olhar sem sobressalto qualquer manifestação de inteligência, mesmo infantil. (Os textos normativos da função pública são frequentemente verdadeiras anedotas, eriçados de “dirigentes máximos” e parvoíces congéneres que, simplesmente, não podem existir). É de levar a sério a expressão aparentemente bem humorada na qual sempre designam a inteligência de alguém como “perigo”. Quem revelar a inteligência própria está em perigo, sim. Nesta terra, a inteligência não é sequer instrumento de sedução na relação entre sexos. Aqui, as mulheres seduzem-se fazendo-as rir. (É evidentemente melhor constituir família com quem não tenha nada a ver com isto).  O parvo enternece-as. Tem as utilidades e os inconvenientes do café. Primeiro excita, dir-se-ia. Depois enerva, tanto quanto me tem ensinado a infelicidade das experiências alheias. Mas deixemos esses problemas com quem os tem, embora não sejam problemas menores.

Não é desnecessário examinar como olha a direita católica para si própria quando se confessa em público. O insuspeito testemunho de Maurras deve ser lembrado. Ele agradece à igreja da Colina Vaticana a desjudaízação do Cristianismo, ou seja (e a meus olhos) a descristianização, sem mais.

Esta “desjudaízação” comporta a neutralização de grandes incómodos, como (por exemplo) a disciplina do Contrato de Trabalho definida no Livro dos Nazirim, último livro da Torah, ou ainda a exigência vétero-testamentária que a todos diz – “Não atarás a boca ao boi que faz a debulha”. Não devendo esquecer-se que a recomposição da Torah se declara concluída no séc. V,  em plena era de oiro da Patrística, com a fixação de boa parte do Credo e designadamente a deste pequeno-grande detalhe,  cuja dissimulação nunca deixou de ser tentada e boa parte das vezes conseguida: ”Creio em um só Senhor” .

Crer em um só Senhor, evidentemente, implica que a Terra só tem um Senhor e isso é indiscutível à luz da caracterização identitária da Ortodoxia da Fé. Todos os outros senhores, se acaso existirem, são inteiramente discutíveis. “Creio em um só Senhor” significa crer que a Terra é usufruto universal de todos os homens. Podemos discutir e ajustar a regulação desse usufruto. Mas isso é tudo.

Diderot notara já, na divindade de quem lhe falava o clero, uma realidade indigna da maiúscula que lhe cabe – ”Elargissez Dieu”. Deuses com minúscula, homens providenciais, senhores que não pode haver, nunca esquecendo o “dirigente máximo” e o “chefe supremo”, parecem-me bem tratados na recusa radical do movimento operário, quando canta a sua Internacional. Bem sei que não é habitual olhar para as coisas assim. Mas os hábitos não são tudo.

Olhar para as coisas desta forma tão pouco habitual permite iluminar inteiramente o agradecimento de Maurras. Faz isto lembrar Salazar e o seu agradecimento ao seminário menor de Viseu (é Cunha Leal quem o recorda e cita nas suas memórias) ”(…) ainda que houvesse perdido a fé em que ali me educaram (…)” certo –  a ambiguidade da conjugação verbal é notável –  pode ter perdido aquela fé, mas não perdeu outras coisas, designadamente nunca conseguiu relacionar-se normalmente com uma mulher durante a sua inteira existência. Não pode dizer-se que seja pouco (louvado seja Deus).

Isto arrasta e preserva modelos de “autoridade” e exercício do poder nocivos em si mesmos, da família à escola e à direcção de pessoal, ou, mais despersonalizadamente, “de recursos humanos”. Esta corja está já emboscada e a olhar a vivacidade intelectual dos adolescentes na Escola, ou dos jovens nas Faculdades. E já a fazer cálculos, a gizar bloqueios e a imaginar perigos. Parece-lhes mal a alegria de descobrir, o entusiasmo de investigar e preocupa-os qualquer solidez em qualquer conclusão, qualquer independência de reflexão, qualquer clareza de estilo, ou vivacidade de expressão. A elegância literária na expressão escrita deixa-os doentes. É lixo tóxico, esta gente. E os  efeitos práticos desta acção devem ser examinados, mesmo do ponto de vista do Direito Criminal, já que vivemos num dos raros lugares onde esse exame nunca ocorreu.

Mesmo Francisco de Roma se tem multiplicado em exautorações a estes fenómenos. O pequeno passo a que parece ter ficado o episcopado chileno da demissão do estado clerical  e a bela bastonada nos malteses são dois bons exemplos, sem esquecer o puxão de orelhas dado por Ratzinger, ele próprio, na inteira clerezia portuguesa. O importante, aqui, não são estas ocorrências, mas a evidência de nada mudar apesar delas. Ocorreram, portanto, apenas para se poder dizer que aconteceram. E nisso se esgota a sua utilidade no plano da diplomacia eclesiástica.

Mas todas as perspectivas religiosas se desdobram em perspectivas políticas. Esta também. É para isso que serve, aliás. E por isso é tão generosamente subvencionada num constante e miserável desvio bem agenciado de recursos públicos no plano da educação, claro, como poderia ser outro?

Tal gente é lastro de resistência a qualquer salubridade. É isto a extrema-direita portuguesa. Ela não vem aí. Não há fascistas a chegar. Esta gente sempre aqui esteve. Medra a expensas do Estado, agarrada ao tronco como hera, já confundindo a sua folhagem com a da árvore parasitada. E ameaça matá-la por asfixia e inanição.

E é de tal modo assim que um amigo com boa formação filosófica me dizia, há dias, ter visto um texto de Rebelo de Sousa (Marcelo) e ter concluído que ali não havia a menor ideia do que seja o Estado de Direito. – “Eles acham que o Estado de Direito é o Estado onde se governa pela publicação de Leis”. Pois acham. Nunca passaram do positivismo voluntarista. No quadro de convicções não confessadas em que o sufrágio universal é expressão de mero poder de assentimento, até acham que podem alterar quaisquer leis por simples incomodidade circunstancial, o que dá este caos legiferante, incompatível, evidentemente, com qualquer Estado de Direito, uma vez que nem se garante a segurança jurídica. Isto é assim, porque, claro, acima do “dirigente máximo” não está nunca o Direito, mas um deus. Invocar um direito em oposição ao dirigente máximo é sedição, motim, caso de anátema. A segurança jurídica seria forma de oposição com alcance político aos desígnios do arbítrio. O regime faz-se nomoclasta.

Uma greve chegou para os fazer admitir ser o horário de trabalho meramente indicativo, por exemplo. Sim, pouco interessa o modo como publicamente se identificam. O que os identifica é o que dizem do Direito, não o que dizem sobre eles próprios.

Nem pela cabeça lhes passa que no Estado de Direito governa-se em submissão ao Direito e que não é sequer o Estado o interprete privilegiado da norma, antes lhe incumbindo garantir a imparcialidade dos organismos encarregados da sua aplicação, passada ao crivo do debate livre de juristas profissionalmente independentes e ali chamados, diante dos pressupostos estruturantes de uma sociedade democrática, que não pode deixar de encontrar, nesses próprios organismos jurisdicionais, uma afinadíssima expressão.

Governar nos limites do Estado de Direito é evidentemente tarefa a exigir muitas qualidades, bastante reflexão, intuição afinada, clara linha de rumo. Para a imposição do arbítrio qualquer “poseur” é suficiente, qualquer besta é conveniente e qualquer curso errático é imponível.

Até ao longo dia da grande cólera.


Fonte aqui

É pior roubar que violar

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 01/10/2018)

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Para um roubo ser violento basta constranger; na violação o mero constrangimento não é violência, diz a lei. Porque, lá está: à partida ninguém consente em ser roubado, mas sabe lá quem viola se a vítima não está a gostar.


Muita gente ficou espantada por descobrir que a lei não dá ao ato de violar uma pessoa inconsciente o nome de violação mas de “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”. E por um acórdão da Relação do Porto certificar que esse é um crime “sem violência”. Também a moldura penal do dito (de dois a dez anos, praticamente igual à de violação — de três a dez) causou perplexidade: há quem a repute de demasiado baixa.

Precisamente, numa ida à TV em defesa do acórdão, uma representante sindical dos juízes aventou que o problema não está em quem julga mas na lei, que deveria, talvez, ser alterada. Em quê não disse. Já a professora catedrática de Direito Penal Fernanda Palma, em declarações ao DN, foi clara: o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (165.º do CP) deve ser incluído no crime de violação (164.º) e a pena deste último deve aumentar.

Palma sublinha igualmente que a atual redação do artigo 164.º e a sua muito estrita definição de violência é inconsistente com as definições de violência que informam outros crimes.

Por exemplo, a definição do crime de violência doméstica inclui, além da violência física, a psicológica. E, no capítulo dos crimes contra a propriedade, o roubo (artigo 210.º), que se distingue do furto (204.º) pela violência na apropriação da coisa alheia, tem, frisa a jurista, uma tipologia que evidencia o facto de “a violência neste crime não ter de significar ofensas corporais”, ou seja, violência física. Será roubo, por exemplo, constranger alguém a entregar um porta-moedas ou telemóvel apenas por via do temor criado pela exigência.

No roubo não há diferenciação estipulada de penas e portanto de gravidade consoante a vítima leva uns encontrões e chapadas para ceder o que é seu ou se o entrega sem protestos, paralisada pelo temor. Ambas as condutas são, e bem, consideradas violentas.

Mas, ao contrário do que sucede no atual artigo 164.º, em que se preveem dois tipos de violação – um mais grave, “com violência, ameaça grave ou colocação em incapacidade de resistir” e pena de três a dez anos, e outro menos grave, em que o constrangimento para a submissão ao ato sexual é “por qualquer outro meio” – e aí a pena é de um a seis anos -, no roubo não há diferenciação estipulada de penas e portanto de gravidade consoante a vítima leva uns encontrões e chapadas para ceder o que é seu ou se o entrega sem protestos, paralisada pelo temor. Ambas as condutas são, e bem, consideradas violentas.

O que há no crime de roubo, cuja pena-base é de um a oito anos, é um conjunto alargado de agravantes que a aumentam para de três a 15 anos. Vão desde a natureza do bem – “ser afeto ao culto religioso” é uma – ao que se tem de fazer para lhe aceder (arrombar uma gaveta fechada à chave, por exemplo), até ao aproveitar de uma circunstância em que a vítima se encontra – a sua “especial debilidade”, “um desastre”, “acidente” ou “calamidade pública”.

Assim forçar uma gaveta ou aproveitar a especial debilidade ou fragilidade circunstancial de alguém para roubar merece, para a lei em vigor, uma pena muito mais grave do que aproveitar o facto de uma pessoa estar inconsciente para a despir e usar sexualmente – o tal “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”. Para não falar do facto de se considerar que a tutela dos bens “afetos a cultos” deve impor penas mais altas do que a do direito que cada pessoa tem de decidir quem lhe toca, com quem tem ou não tem sexo, quem pode ou não penetrá-la.

Forçar uma gaveta ou aproveitar a especial debilidade ou fragilidade circunstancial de alguém para roubar merece, para a lei em vigor, uma pena muito mais grave do que aproveitar o facto de uma pessoa estar inconsciente para a despir e usar sexualmente.

Esta evidência, que demonstra o quanto o Código Penal de 2018 está desadequado em relação ao sentir básico da “pessoa comum”, para quem uma violação (sobretudo se nela perpetrada, claro) é algo de infinitamente mais gravoso do que ser despojado de um objeto, ganha outra dimensão quando olhamos para a história da lei penal. Até 1995, esta não via sequer os crimes sexuais como crimes contra as pessoas, muito menos, como hoje são definidos, contra a liberdade sexual. Estavam incluídos na parte “Dos crimes contra os valores e interesses da vida em sociedade” e no capítulo “Dos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social”. Eram, portanto, crimes “contra a moralidade”.

E com uma particularidade: a vítima era identificada como feminina. A violação – artigo 201º do CP de 1982 – era definida como “ter cópula com mulher”. E no seu número 3 previa que a pena, de dois a oito anos, seria “especialmente atenuada se a vítima, através do seu comportamento ou da sua especial ligação com o agente”, tivesse “contribuído de forma sensível para o facto.” (Estão a ver de onde vem a “sedução mútua”?)

Este Código, no qual as vítimas de crimes sexuais eram sobretudo mulheres e portanto das quais por princípio se desconfiava, foi aquele que a maioria dos juízes dos tribunais superiores conheceram no seu período de formação. Quiçá alguns não terão dado conta de que mudou. Até porque, na verdade, o seu espírito persiste no atual: a pena para um roubo do qual resulte a morte do roubado ainda é muito mais elevada – de oito a 16 anos – do que a da violação da qual resulte a morte ou suicídio da vítima: de quatro anos e meio a 15.

É possível que haja para esta infâmia outro motivo que não o do desprezo secular da justiça pelas mulheres. Mas não me ocorre nenhum.