Teremos sempre o Brasil

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 22/01/2021)

Clara Ferreira Alves

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Governa-se pela autoridade e o exemplo. Nem uma coisa nem outra abundam por um país onde orneia a indisciplina. A mensagem principal do Governo e do Presidente foi uma, eu sou igual a vocês e estamos todos no mesmo plano de autoridade e de hierarquia, ou melhor, se falamos de hierarquia vocês mandam em nós porque é isto a democracia e no tempo da informação real em perda de tempo útil e da opinião antidemocrática como expressão de civismo e de liberdade, eu baixo-me para vos elevar, cidadãos titulados do século XXI. Começa-se na cataplana em família no programa da manhã para caçar votos e nas operações de propaganda que acabam com o momentoso primeiro plano da primeira vacina com ministra em direto, este é o dia da esperança coletiva, e acaba-se a falar pela milésima vez ao país num apelo ao sobressalto cívico com o país a mudar de canal. Olha, lá está o morcão do Costa, a pedir que nos portemos bem.

Dá-me aí a trela que comprei no hipermercado, vou à rua fingir que passeio o cão que não tenho. Quem leva amanhã o carro? Vou dar uma volta e digo que é para levar os putos que não tenho ao colégio. É por estas bravatas da batota, a que achamos uma graça infinita e que tomamos por talento definido na linguagem portuguesa e lusofónica como chico-espertismo, que as coisas estão como estão. Todos temos culpas nisto. Esta medalha olímpica para infeção e morte.

E sabemos o que vem a seguir, o suspiro pela ordem e pela autoridade, a nostalgia da repressão. Desde o princípio, o Governo instalou sistemas paralelos, o dos cidadãos responsáveis e o das exceções. Houve tantas exceções, e tantos maus exemplos, não vamos agora de máscara comemorar o 25 de Abril, o Grande Prémio de Portimão tem de realizar-se, e o de moto, a final da Champions é um prémio aos trabalhadores da saúde, os ingleses infetados são todos bem-vindos apesar de nós não sermos bem-vindos por lá e se for preciso arranja-se um corredor só para eles no aeroporto, o 1º de Maio é sagrado, a Festa do “Avante!” e o dia 13 em Fátima também, o vírus está controlado no milagre português, temos de ir gastar dinheiro e podemos tirar a máscara, a vacina vem aí com a “bazuca” ao colo e vamos regressar à normalidade. Assim, torna-se difícil explicar que o confinamento, o duro, o brutal, o que nos retira todos os direitos e liberdades, o que nos arruína física e moralmente, economicamente, vai ser a única solução. Isso e a repressão, com multas pesadas, a única sanção que os chicos-espertos abominam.

Parece que a GNR e a PSP, que combatem entre si para ver quem escolta as vacinas, se fizeram escassas nos últimos dias. Milhares de carros a circular na cidade e fora dela ao fim de semana, grupos de pessoas nos parques e paredões com a máscara no queixo onde ela não faz falta, e um raro polícia para os dispersar e multar. Multar grosso, incluindo os da trela solta sem animal lá dentro. Se eu andar a 65 quilómetros onde há radares de 50 quilómetros levo logo com a multa em cima, mas se andar por aí a desafiar a autoridade e a desrespeitar os trabalhadores da saúde, sou uma pessoa com mérito e faço um filminho para o Facebook. Se eu reunir 160 amigos para um jantar sem distância e sem máscara num restaurante que devia estar fechado por lei sou um mau cidadão, mas se for o candidato presidencial Ventura, a bandalheira é um exercício dos meus direitos cívicos. E ninguém lhe deita a luva da autoridade.

Junte-se a isto a tradicional desorganização nacional e a demagogia, o tal terror que os políticos têm da plebe romana, e assiste-se às filas para votar antecipadamente, horas ao sol, melhor que ficar em casa, onde os ministros também esperam porque estamos todos no mesmo plano. Um país onde a propaganda das vacinas corre tão bem que o Governo e o Presidente insistiram em não ser vacinados, “para dar o exemplo”. Qual? Se adoecerem, vão consumir mais recursos médicos e hospitalares do que os normais, e vão retirar a outros doentes a hipótese de sobreviverem. Que parte de “os hospitais não aguentam mais” não perceberam? Ninguém acha estranho que seja a DGS, a DGS em perda de autoridade diária, a definir quem é operado e quem morre na oncologia? Quem tem direito a cirurgia e quem não tem? Isto não arrepia? Imagina-se o sofrimento psicológico dos condenados ao não tratamento? E querem que me preocupe com as vacinas de ministros e de um Presidente que deveriam ter sido vacinados em sossego e discrição, e silêncio, por uma vez, deem-nos uma folga de silêncio, em vez de nos incomodarem com o exibicionismo vacinatório? Vacinem-se, temos maiores preocupações.

E já que falamos em vacinas, essa esperança inaugurada num país onde morrem quase 200 pessoas por dia, sabiam da variante brasileira? A de Manaus? A de Manaus é muito perigosa. Tanto como a da África do Sul, mais do que a do Reino Unido. Não se sabe a eficácia das vacinas contra a variante. Segundo o epidemiologista Adam Kucharski, da London School of Hygiene and Tropical Medicina, Manaus devia ter atingido a imunidade de grupo. A maioria da população foi infetada em 2020, mais de 70%. Mas as mortes continuam a crescer, e a infeção está descontrolada. As hospitalizações aumentaram de novo em 2021. E detetou-se a terceira variante, 501Y.V3, similar à sul-africana. Mais de metade das infeções e reinfeções são com esta variante e suas mutações. Sobre ela sabe-se pouco, a Amazónia não é um modelo de investigação no combate à pandemia. Esta variante, que a falta de transparência portuguesa fez de conta que não existia, soubemos dela porque, mais uma vez, os ingleses nos bateram com a porta na cara. A BA deixou de voar para Portugal, tal a preocupação. O ministro do costume protestou e foi ignorado como de costume. E pergunta-se, os voos de e para o Brasil acautelaram isto? Não.

Os voos estão cheios, e cheios vão estar, porque a moda dos portugueses chicos-espertos com dinheiro é ir passar o inverno ao Brasil e fugir desta “seca de país”. Os hotéis das praias do Nordeste estão cheios. O Rio tornou-se “barato”. São Paulo está ótimo, tudo aberto, há festas. No Brasil, o vírus é coisa de pobres. Se tentar marcar um voo da TAP para o Rio ou São Paulo, e daí para Manaus na Azul do Neeleman, a vida continua, o algoritmo avisa que há já poucos lugares disponíveis em janeiro e fevereiro. E temos o Carnaval. A variante e as mutações vão circular em Portugal, decerto circulam já, mas temos de manter a TAP a voar para levar e trazer os meninos e meninas que não aguentam “a cena do confinamento”. Conheço gente que foi e veio ao Brasil várias vezes, passar umas semaninhas em teletrabalho. É o shuttle da 501Y.V3.

Temos muito tempo pela frente para nos infetarmos todos. O Presidente disse, e ninguém reparou, que a vacinação vai levar ano e meio. Ano e meio. Dez milhões de almas. A Índia vai vacinar 300 milhões até agosto. Os britânicos estão a vacinar milhões. Israel também. A Alemanha desviou 30 milhões da vacina da Pfizer para a população, em vez de esperar pela lentidão burocrática da Europa, que comprou mais Sanofi por pressão política da França. A Sanofi está atrasada e não se sabe se será aprovada em 2021. Daí a corrida à Pfizer, que agora tem de satisfazer outras encomendas e avisou dos atrasos. Mas, como diria o Rick de “Casablanca”, teremos sempre o Brasil.


A pandemia não tem solução?

(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 20/01/2021)

Se formos ver os mortos com covid-19 por milhão de habitantes desde o início da pandemia, Portugal aparece agora em 28.º lugar entre os piores resultados do planeta. Na semana passada era 30.º.

Se analisarmos apenas os últimos sete dias de dados (ainda sem as mortes de ontem), Portugal surge, tragicamente, em terceiro lugar.

Muitas pessoas, desde março até agora, têm-se manifestado contra as medidas de restrição de circulação, dando o exemplo da Suécia como um país que obtinha bons resultados no combate aos efeitos da pandemia sem impor restrições exageradas.

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Se formos ver os números de mortes por milhão de habitantes na Suécia, desde que a pandemia começou, verificamos que ela aparece em 21.º lugar, pior do que Portugal mas não muito longe, e, se nos limitarmos à última semana de dados disponíveis (já com imposição de confinamentos obrigatórios), a Suécia surge em quarto lugar, encostada a Portugal.

Este parece-me ser um exemplo claro de como as maiores ou menores medidas de confinamento serão certamente relevantes, mas não explicam tudo sobre os níveis de contágio e de mortes por covid-19: como é que Portugal e Suécia, com políticas de reação à pandemia tão diferentes, acabam com resultados tão semelhantes?

Podemos dizer, honestamente, que países com serviços de saúde desenvolvidos, com populações com comportamentos sociais e culturais semelhantes, com climas parecidos, com geografias próximas, com políticas públicas muito iguais, têm resultados de resistência à pandemia semelhantes? Não.

Porque é que a Itália, desde março, ocupa o terceiro lugar de mortes provocadas pelo novo coronavírus, a Grã-Bretanha o sexto, a Espanha o 14.º, a França o 17.º e a Alemanha o 37.º? Há assim tantas diferenças nos comportamentos das populações, na gestão da crise pelos governos ou na resposta dos respetivos serviços de saúde para explicar esta divergência tão grande?

E porque é que os piores países do mundo, desde março, são europeus: a Bélgica, a Eslovénia, a Itália, a República Checa, a Bósnia e o Reino Unido?

Como é que não são os Estados Unidos, o Brasil, a Índia ou a Austrália, que nos aparecem muito mais frequentemente nos noticiários com carimbo de “catástrofe coronavírus”?

E porque é que, se olharmos apenas para a última semana, quem aparece no topo das mortes por milhão de habitantes com covid-19 são, novamente, países europeus, por esta ordem: Reino Unido, República Checa, Portugal, Suécia, Eslováquia, Lituânia e Eslovénia? A própria Alemanha aparece em 12.º lugar!

Portanto, ou toda a Europa está a fazer algo de errado em matéria de combate ao coronavírus, ou reúne um qualquer tipo de condição especial que está a favorecer este desastre – e como, em conjunto, estamos a falar da zona do planeta que possui os melhores serviços de saúde (e que nenhum afirma ter entrado verdadeiramente em colapso, apesar da elevada pressão), tenho de concluir que tudo o que os especialistas nos têm estado a dizer sobre esta matéria parece ser tão válido como os horrores que ouvimos sair da boca de Jair Bolsonaro ou de Donald Trump.

Resta, portanto, e infelizmente, o empirismo da experiência que coletivamente temos estado a viver.

Com esse empirismo percebemos, em primeiro lugar, que tentar contratar médicos e enfermeiros com contratos a prazo de quatro meses, em vez de reforçar o Serviço Nacional de Saúde oferecendo contratos permanentes, é o mesmo que não contratar.

Percebemos também que em março, quando fomos todos para casa cheios de medo, a pandemia regrediu.

No verão, dado o recuo de contágios, não foi estúpido tentarmos levar uma vida bastante mais normal.

No outono percebemos que nos tínhamos de voltar a defender e a ser mais prudentes. No Natal e no fim do ano fomos irresponsáveis e a doença disparou.

Em fases diferentes, comportamentos diferentes.

Quando falo em “nós” não estou a aceitar os ralhetes que Presidente da República, governantes, autoridades de saúde e alguns representantes de médicos e enfermeiros estão a dar à população por não estar a respeitar o confinamento geral.

Eles é que são líderes do país, eles é que são os sábios, e se a população não segue as suas indicações, isso acontece, exclusivamente, por culpa deles: ou porque não são claros e coerentes nas orientações; ou porque passam a vida a discutir publicamente uns com os outros, aumentando a confusão geral; ou porque perderam credibilidade e, por isso, autoridade.

Em face dos números de mortos e à lentidão da vacinação, o que há a fazer? Não sei. Mas o empirismo anterior aponta, pelo menos, para mais uma medida de confinamento: o fecho das escolas para maiores de 12 anos. E, infelizmente, para nos fecharmos em casa, com medo e a chorar os mortos.


Jornalista


O preço de sermos humanos

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 11/01/2021)

Daniel Oliveira

O Governo decidiu não fechar o país no Natal e o apoio pareceu-me generalizado. Como diz Henrique Barros, “as pessoas foram visitar o pai, o velho tio ou um irmão doente ou um amigo. Fizeram-no, porque são seres humanos”. A decisão não foi tomada na ignorância. Sabíamos que o resultado seria um aumento de infetados em janeiro. Quem, como eu, a maioria das forças políticas e a maioria das pessoas, defendeu esta opção não pode vir agora bramar contra o confinamento. Assumo as minhas responsabilidades: quis a maior abertura no Natal. Isto é uma corrida demasiado longa e não é possível cortar com todos os domínios da vida em todo o momento. E sei, porque sou adulto, que isso tem um preço.


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Tomámos coletivamente uma decisão. Ou melhor, o Governo tomou-a e o apoio pareceu-me bastante alargado. Claro que não tenho qualquer sondagem, mas foi pelo menos esta a perceção que tive. Eu e as forças políticas. Não quisemos fechar no Natal. A decisão foi tomada com base no conhecimento da nossa realidade cultural e social. Na convicção de que o encerramento seria não apenas pouco viável sem um aperto de fiscalização como ainda não tivemos, mas muito difícil de aceitar pela grande maioria das pessoas. O Natal não foi apenas um momento de descompressão. Foi um momento em que muitas famílias que vivem situações dramáticas de isolamento, esgotamento psicológico ou até doença puderam lamber as feridas. Numa data muito importante na nossa cultura. Isto é uma corrida demasiado longa e temos de cuidar das vidas de quem quer estar vivo.

Presto atenção às palavras de uma pessoa que me habituei a ouvir durante esta pandemia: Henrique Barros, especialista em saúde pública e epidemiologista do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto. Entrevistei-o em julho e aconselho a entrevista que deu recentemente ao Público: “Não é aceitável, nem moralmente, nem eticamente, não é decente dizermos que isto é culpa das pessoas. As pessoas têm de viver. O que é mais dramático e inaceitável é criarmos esta ideia de que isto foi culpa das pessoas que não ficaram sozinhas em casa. E foram visitar o pai, o velho tio ou um irmão doente ou um amigo. Fizeram-no, porque são seres humanos e tenho a certeza de que a imensa maioria teve a preocupação de se defender a si e aos outros.” E desdramatiza, na medida do possível: “É curioso verificar que, nos países onde se definiram regras muito precisas de como e quantas pessoas se podiam encontrar, o ricochete foi exatamente como nos portugueses ou, em alguns casos, pior ainda. Do ponto de vista das medidas, não havia mais nada a fazer. Quais seriam as medidas? Era impedir as pessoas de estarem umas com as outras. Não me parece bem.”

Ao contrário do que ouvi de um matemático, no sábado, na televisão, o preço de confinamentos prolongados não é apenas a crise económica. É tudo. São as outras doenças, são os dramas sociais, é o isolamento e os seus efeitos profundos, são os problemas psicólogos e psiquiátricos. É a saúde pública que não cabe em alguns cálculos pouco interdisciplinares. Repito o que tenho dito: defendo a ponderação de valores. Por isso, evito tanto os negacionistas como os engenheiros das almas, que julgam ser possível anular a vida das pessoas durante mais de um ano e as coisas não cederem por algum lado. Felizmente, não decidem eles. A muitos, falta a humildade que também se lê na entrevista de Henrique Barros: “Eu sou um cientista, epidemiologista e médico. Se a pergunta for ‘se nós confinarmos a infecção diminui?’ Sim. E deve-se fazer? Não me pergunte a mim. Como técnico, tenho de dizer aquilo que, no estado actual do conhecimento, se sabe que funciona. Mas há uma parte de ciência e uma parte de arte na tomada de decisões em termos de saúde pública. Do ponto de vista da saúde pública, o confinamento resolve o problema, naquele momento diminui a infeção, mas cria toda uma série de outros problemas, nomeadamente de natureza social. Se confinarmos todos, a sociedade pára. O balanço destas coisas é que tem de ser feito.”

A decisão em vésperas de Natal não foi tomada na ignorância. Estamos nisto há um ano. Foi dito expressamente que o resultado seria um aumento de infetados em janeiro. Até foi dito que uma pequena abertura teria logo um efeito de mola. Veremos, com mais tempo, como se compara com o que está a acontecer no resto da Europa, incluindo nos países que impuseram restrições maiores. Só há uma coisa que ninguém pode dizer: que não sabia que isto sucederia. Sabíamos todos e todos os que tinham espaço no espaço público o disseram e escreveram. Incluindo os que, como eu, defenderam esta opção. Poderão dizer que o Governo tinha o dever de nos contrariar. Isso seria verdade se nos faltasse informação. Não era o caso.

Esta escolha tem um preço: estarmos disponíveis para um aperto mais severo das próximas semanas. Quem defendeu este caminho, como eu, a maioria das forças políticas e, estou convencido, a maioria das pessoas, não pode vir agora bramar contra o confinamento – que espero que ainda possa excluir escolas. Por mim, assumo as minhas responsabilidades: quis a maior abertura no Natal, estou disponível para limitar a minha liberdade nos próximos tempos. Não é possível cortar com todos os domínios da vida em todo o momento. E sei, porque sou adulto, que isso tem um preço.