Os Navegadores

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 14/09/2019)

Clara Ferreira Alves

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De vez em quando, ouço a frase “os portugueses foram grandes navegadores”, entremeada com vários prodígios da raça lusíada. O autor da frase é um desses guias de tuk-tuk que circulam nas ruas da cidade de Lisboa apinhadas de turistas. Uma manhã entre Alfama e o Terreiro do Paço é suficiente para apanhar a deixa meia dúzia de vezes. Os Descobrimentos, como Fernando Pessoa, tornaram-se uma marcha em bicos de pés. Pessoa tornou-se um cromo absurdo, desligado da figura real do poeta, e mais ainda da obra, e as caravelas tornaram-se um alfinete de peito que implica certa grandeza sem as conotações imperiais que tanto destoam em mentes estritas. Os navegadores.

E que sabemos nós ao certo das nossas navegações, fortalezas, entrepostos e domínios do império que excedam a cartilha encomendada? A sebenta da escola primária? O Gama e o Cabral e o infante e o caminho marítimo e o Cabo das Tormentas com o Adamastor e o mar salgado quanto do teu sal são lágrimas de Portugal, o mar da vulgata pessoana. Que sabem os portugueses, grandes navegadores do turismo contemporâneo e dos expedientes de sobrevivência dos remediados, agora que o império secou e a cornucópia deixou de abastecer, da história e do legado imperial? Quase nada.

Ao contrário dos ingleses, e da supremacia histórica e cultural cuidadosamente cultivada, ensinada e elaborada, os portugueses descolonizaram e logo esqueceram. Não existe, para o cidadão comum, conhecimento do império. Poder-se-ia dizer que não existe porque a revolução e o sentimento esquerdista multiculturalista dominante na fase seguinte, a europeia, se encarregaram de destruir essa memória que transportava a carga negativa da guerra colonial e de uma opressão imperial tardia e anacrónica. Macau foi devolvido em 1999. Ou seja, ontem. E a ira dos retornados, e a curta memória que começava e acabava muitas vezes no século XX, foi neutralizada pelas benesses e fundos da democracia europeia. Continuámos a traficar com África mas deixando de lado com todo o escrúpulo qualquer política ou diplomacia que pusesse em causa o comércio, a ganância, e a novíssima cordialidade com os governantes africanos. A conveniente falta de memória degenerou na ausência de opinião contrária, ou de manifestação de desagrado com métodos despóticos, corruptos e corruptores dos países descolonizados. A massa crítica nunca foi o nosso forte.

Se os laços com África e o Brasil justificavam a proximidade e as extravagâncias da lusofonia, responsáveis pelo catastrófico Acordo Ortográfico, que deu cabo da raiz latina da língua portuguesa e a transformou num patuá abrasileirado que nem os brasileiros reconhecem, os laços com a Ásia nem sequer foram pensados. Acrescente-se que, durante anos, o Acordo esteve à disposição do debate público, mas só quando foi aprovado em letra de lei se ergueram os opositores.

Tarde demais.

A internet tinha-nos subsumido no português do Brasil. No princípio das negociações, muito pouca gente se opôs, certamente pela indiferença e ignorância do costume. E muita gente comprou as vantagens de uma uniformização da grafia que se julgava coerente e que teria como consequência inevitável a circulação de livros e autores portugueses nos países lusófonos. Sabemos hoje no que isto deu. O Acordo, que devia ter sido morto à nascença, como tantos de nós quiseram nos finais de 80, foi uma atrapalhada e trapalhona decisão comercial. Não serviu para nada, não serviu para ninguém.

Não é apenas o Acordo a prova dessa destruição compulsiva da memória. O legado português na Ásia foi completamente ignorado e desleixado. Para quem viaja nesse continente e vai verificando em placas, relatos e memoriais que “os navegadores” apregoados pelos tuk-tuks estiveram em toda a parte antes de toda a gente, desembarcando na Índia, na China, no Japão, na Birmânia, no Vietname, estabelecendo-se no Sião e no Ceilão, deixando incontáveis nomes, famílias, arquiteturas, tradições e uma influência gastronómica considerável, fica surpreendido pela ausência de relações com as nações com as quais tivemos trocas comerciais e culturais importantes. Olhar para os restos imperiais em Cochim, e os defuntos centros de intercâmbio cultural que nunca funcionaram porque nunca neles foi investido um cêntimo, verificar o afastamento da gente da Índia, da gente da Malásia, da do Sri Lanka ou da Tailândia, atestar a ignorância das misturas linguísticas, desconhecer as legiões de Fernandos e Fernandes que ainda guardam a memória circulante do império e da língua, é constatar que rasurámos a nossa História.

Na Tailândia, existem fios de ovos, bem como uma doçaria que é a herdeira direta da doçaria conventual portuguesa, à base de açúcar e ovos. Uma senhora improvável chamada Maria Guyomar de Pinha, casada com o aventureiro Constantino Phaulkon, se encarregou de cozinhar à portuguesa fazendo jus à origem lusitana misturada com a japonesa e a bengali. Em Hong Kong, os pastéis de nata ganharam vida própria e tornaram-se nativos das padarias. Na Birmânia, a presença portuguesa ultrapassa a onomástica e revela-se em lendas e narrativas como a de Felipe de Brito e Nicote, uma personagem de ficção que dava pelos nomes de rei do Pegu ou rei de Sirião. Por toda a Ásia, vemos os traços da nossa influência linguística, arquitetónica e gastronómica, militar e cultural. Nada fizemos por isto. As coisas foram sobrevivendo apenas porque foram sobrevivendo, por força do uso e do costume, perdidas as referências. E agora, os que usam as antigas tradições incorporaram-nas como suas, esqueceram eles mesmos a origem das práticas e dos nomes.

Portugal não existe na Ásia, para o cidadão comum. Ou existe. Existe no rosto pixelizado de Cristiano Ronaldo nos anúncios luminosos, e nas proezas futebolísticas. Digam a um asiático eu sou português e ele responderá, Cristiano. Dos navegadores por mares nunca dantes navegados é o que resta.

Os espectadores activos contra os espetadores ativos – a inércia e o desprezo pela nossa língua

(José Pacheco Pereira, in Público, 29/06/2019)

Pacheco Pereira

À memória do Vasco Graça Moura.

Se pensam que este artigo é duro, imaginem o que ele escreveria.


Prometi a mim próprio escrever um ou dois artigos por ano contra o chamado acordo ortográfico. E fiz essa promessa para não pecar do mesmo mal da inércia, que é a principal força que mantém este acordo vivo. Na verdade, são duas forças conjugadas, uma, a inércia, e a outra o desprezo pela língua portuguesa. São duas forças muito poderosas e, conjugadas entre si, ainda mais poderosas são. Mas são forças negativas, que misturam preguiça, indiferença, incultura, desprezo pela memória e irresponsabilização pelo desastre e fracasso diplomático que representou o acordo.

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O resultado é que todos os anos o português escrito em Portugal se afasta do do Brasil, de Angola, Cabo Verde, onde o acordo ou não existe ou não é aplicado. Ficamos com um português de ortografia pobre, menos resistente a estrangeirismos e menos expressivo, em nome de um objectivo falhado: o de fazer a engenharia da língua de forma artificial. E não me venham com o “pharmácia” e farmácia, porque o contexto deste acordo inútil é muito diferente dos anteriores, porque foi feito num momento em que tudo aconselharia prudência em mexer numa língua cujas ameaças principais não vêm da falta de unificação ortográfica, mas da correlação entre a perda de dinamismo social e a riqueza da língua, ortografia, léxico, gramática e oralidade. E aqui Portugal fica sempre a perder com o Brasil.

E não me venham também com o facto de ser apenas um acordo na ortografia, que não afecta a oralidade, nem a riqueza lexical. Afecta e muito porque lemos com os olhos, e para lá dos olhos é a imagem das palavras que fica, e uma coisa é ser “espetador” e outra ser espectador, apesar da inútil dupla grafia. Por detrás do espetador, como diria o Napoleão diante das pirâmides, mais de dois mil anos de civilização contemplam os infelizes do acordo, sem pai nem mãe latina e grega. Mas quem é que quer saber disso?

Este é um dos casos em que fico populista e atiro em cima “deles”, os políticos. “Eles” preocupam-se muito com as beatas no chão, mas nada pela riqueza ortográfica do português, na sua memória nas palavras antigas que são o solo que pisamos. E é por isso que o acordo serve a ignorância, dos políticos do PS e do PSD e do CDS, que deixaram à suposta geração designada de “a mais preparada de sempre” um dos mitos com que alimentamos a nossa mediocridade colectiva. Sim, uma geração que faz cursos universitários sem ler um livro, e que fala com a expressividade dos SMS e do Twitter numa linguagem gutural e pobre, que o acordo ajuda a consolidar.

Big Brother de Orwell eliminava do vocabulário todos os anos algumas palavras. Para ele a linguagem patológica dos escassos caracteres do Twitter, onde não passa um argumento racional, mas passa com facilidade um insulto, seria um ideal a conseguir. Falar com vocabulário variado e rico, algo que só se tem lendo, dá poder. O Big Brotherqueria retirar poder e não tenho dúvidas que gostaria do acordo ortográfico, para eliminar a memória das palavras vindas dos dias de cor e passar ao cinzento da farda.

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Na verdade, é um problema maior do que a ortografia, é o problema da cultura e da democracia, onde todos os dias os parâmetros de mínima exigência são baixados, pelos pais, pelos professores, pelas instituições e, como o peixe apodrece pela cabeça, pela nonchalance dos nossos políticos pelas coisas importantes. E se há comparação que me honra é com o “velho do Restelo”. Na verdade, o velho do Restelo é uma das personagens mais interessantes e criativas dos Lusíadas. E tinha razão.

E deixem-me lá as excepções. A regra é que os mais velhos traíram a memória da língua, e os mais novos vivem bem no mundo do Big Brother. O tecido cultural do país, agredido pelo acordo, não é feito de excepções mas sim da regra, e a contínua enunciação das excepções só serve para esconder a regra.

Pode-se ser culto sem saber quem era Ulisses, ou Electra, ou Lear, ou Otelo, ou Bloom? Não, não pode. Como não se pode ser culto sem perceber a inércia, ou o princípio de Arquimedes. E, no caso português, sem ter lido umas frases de Vieira, ou saber quem eram Simão Botelho, Acácio, o sr. Joãozinho das Perdizes, ou Ricardo Reis, ele mesmo. E não me venham dizer que sabem outras coisas. Sabem, mas não chega, são menos, são diferentes e não têm o mesmo papel de nos fazer melhores, mais donos de nós próprios e mais livres. Sim, livres, porque é de liberdade que se está a falar.

As elites bem falantes ou as noções básicas de democracia

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 07/05/2016)

AUTOR

                                        Miguel Sousa Tavares

Eu sei, o assunto — o Acordo Ortográfico de 1990 é uma chatice, ninguém está para se preocupar com ele e dá algum trabalho tentar perceber melhor do que se trata. E também sei, mais de um quarto de século decorrido (!), que o destino já está traçado de há muito e a batalha perdida, por natureza: manda quem pode, obedece quem deve. Todavia, porque estas coisas da língua pátria e da pátria não me são indiferentes, e para memória futura, volto ao assunto, agora que ele voltou à actualidade pela mão de Marcelo Rebelo de Sousa.

Quando o acordo foi tornado público, eu fui um dos subscritores do primeiro manifesto contra o AO, assinado entre, vários outros, por Marcelo. Mais de vinte anos depois, entre adormecimentos e ressurreições, escutados e voltados a escutar todos os argumentos de ambos os lados (sobretudo, os argumentos contra, porque do outro lado se dispensaram soberbamente de contra-argumentar), a minha posição de início mantém-se inalterável: não sei quem pediu o acordo, não sei que necessidades reais ele veio satisfazer, não sei em que aproveita a Portugal e à língua portuguesa, não sei o que o justificou, o que o permitiu e o que o fez impor-se à força. Nas inúmeras vezes, aqui ou no Brasil, em que fui chamado a pronunciar-me sobre ele, o que sempre disse e mantenho, hoje mais a sério do que a brincar, foi que o AO nasceu porque um restrito grupo de académicos portugueses queria fazer umas viagens à borla ao Brasil e o pretexto encontrado foi o de negociar um acordo ortográfico — que os brasileiros nunca tinham pedido, nunca tinham sugerido e nunca tinham imaginado. E, por isso, os nossos autonomeados embaixadores da língua chegaram lá e disseram aos brasileiros: “Estamos aqui para fazer um AO em que todos os falantes de português passarão a escrever como vocês”. Um acto colonial ao contrário.

Em 2006, e subitamente, o AO, então conhecido pelo nome de Aborto Ortográfico, foi ressuscitado por um governo socialista e, sem mais, mandado entrar em vigor rapidamente. E porque para tal faltavam as ratificações necessárias, conforme o próprio acordo previa, a minoria militante alterou unilateralmente as regras, dizendo que ele se tornava vinculativo desde que apenas três países falantes de português o ratificassem. É essa golpada política que torna o AO juridicamente inexistente. À data de hoje, nem Angola nem Moçambique o ratificaram e o Brasil, que suspendeu durante dois anos a sua entrada em vigor, vive numa espécie de limbo jurídico em que ninguém sabe se o aplica conforme as suas regras ou apenas na parte que lhe interessa e que não o obriga a mudar o que quer que seja na sua grafia (entre outras coisas, o AO não previu que, na situação actual do Brasil, o único tema que lhes interessa seja traduzido por essa palavra tão portuguesa que é o impeachement…). Com a súbita ressurreição de 2006, o AO começou então a ser discutido mais a sério. Do lado dos oponentes, produziu-se uma larga série de textos, conferências e até livros, todos demonstrando, ou pretendendo demonstrar, a irracionalidade linguística, a nulidade jurídica e a falsidade dos argumentos sobre as alegadas vantagens do acordo. Do lado oposto, nada: sempre umas vagas e repetitivas declarações do professor Malaca Casteleiro e do doutor Carlos Reis, cuja argumentação, na essência, pode ser resumida a duas palavras: “Porque sim”. Fizeram-se abaixo-assinados, petições à Assembleia da República e até se conseguiu que esta nomeasse uma comissão, dirigida pelo deputado Michael Seufert, para analisar o bom ou mau fundamento dos opositores do AO. A comissão concluiu pela absoluta razão destes, dizendo que o AO não podia estar em vigor juridicamente, que fora imposto ao país sem nenhuma discussão prévia e séria e que não se demonstrava quaisquer das vantagens que ele aduzia: não unificou a grafia da língua, antes a dividiu mais — entre países que escrevem segundo a grafia anterior, os que escrevem segundo a grafia do acordo (praticamente só Portugal), e o Brasil, que escreve como muito bem entende; separou, em Portugal, a grafia por gerações, coincidindo várias que escrevem com regras diferentes; e, quanto à tão invocada unificação do mercado editorial, seguindo as novas regras e em todos os países falantes de português, revelou-se a ficção que qualquer ser minimamente inteligente esperaria que fosse (e eu sou disso exemplo concreto: tenho cinco livros editados no Brasil e, por expressa vontade minha, nenhum deles de acordo com a grafia brasileira ou do AO, sem que tal me tenha prejudicado minimamente, em termos de mercado).

É arrepiante que, por vontade de uma vanguarda autonomeada para tal, um país se disponha a mudar uma língua que tem oito séculos de existência sem o consultar e à revelia daqueles que são os principais utilizadores dessa língua.

No “DN” de anteontem, li um artigo do constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, em defesa do AO, que é eloquente da leviandade com que uma verdadeira questão de soberania nacional foi e é tratada por quem pode e manda. Com o devido pedido prévio de desculpas, eu afirmo que esse texto é um chorrilho de asneiras filhas da ignorância, de falsas verdades, de banalidades argumentativas e de uma arrogância intelectual, expoente de um certo terrorismo académico que tolhe e verga os políticos às suas ameaças. Mas o rei vai nu. Toda a abundante produção de razões que contrariam as apregoadas vantagens do AO é reduzida por ele a um rol de “queixas, queixumes, remoques ou piadas” — o que quer dizer que não leu nada nem se deu ao trabalho de pensar em nenhum dos argumentos da parte contrária. E esta — a parte contrária é arrumada por ele na categoria de “velhos” ou então de “uma certa elite bem pensante (incapaz) de terçar armas por coisas mais substanciais que verdadeiramente interessam a Portugal”. Seria caso para responder que não se percebe, então, por que razão o jovem Bacelar Gouveia perde, ele próprio, tempo a terçar armas pelo AO e não por coisas bem mais importantes… Mas a acusação é notável: a tal “elite bem pensante” é apenas a larguíssima maioria dos principais interessados e utilizadores da língua, que não foram nunca consultados sobre o assunto e que rejeitam o AO: escritores, jornalistas, professores, editores. E que, como disse o presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Artur Anselmo, foram submetidos à força por um “acto despótico e ditatorial”, às mãos de outra elite, que não sei se é bem pensante ou apenas bem mandante. Por isso, pode Bacelar Gouveia, como “argumento” final, afirmar que a aceitação do AO “será uma questão de tempo” — como todas as imposições ditatoriais. Porque, embora vivamos em democracia, a nossa classe política está aqui tolhida pelo medo de enfrentar o terrorismo académico e pela chatice de ter de se ocupar de um assunto “menor”, que (mal) julgavam resolvido. Mas é sem dúvida arrepiante que, por vontade de uma vanguarda autonomeada para tal, um país se disponha a mudar uma língua que tem oito séculos de existência sem o consultar e à revelia daqueles que são os principais utilizadores dessa língua. É uma lição de democracia para não esquecer.

Para terminar, não resisto a dizer ao constitucionalista que usar argumentos tão estafados como o de Farmácia com F e não ph para tentar demonstrar as vantagens dos acordos ortográficos, é apenas ridículo: a palavra não tem origem na língua portuguesa nem latina, mas sim grega e por isso é que em línguas tão despiciendas como a inglesa e francesa se continua a escrever com ph. E se quer realmente saber como nem sempre os acordos ortográficos contribuem para enriquecer a língua, recomendo-lhe a releitura de Camilo: aí poderá constatar como, vários acordos e século e meio depois, a língua portuguesa se empobreceu.

(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)