E ficamos assim?

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 17/11/2023)

Há oito dias escrevi aqui: “Em 7 de Novembro aconteceu uma de duas coisas e apenas uma de duas coisas, pois não há terceira hipótese. Ou um impensável cancro andou a ser congeminado e a germinar no círculo íntimo do poder e do primeiro-ministro ou vários magistrados do Ministério Público (MP), confundindo diligências de governantes com indícios de crimes de corrupção e intervenções para desbloquear procedimentos com crimes de tráfico de influências, decidiram, leviana ou conscientemente, derrubar um Governo eleito pelos portugueses.” Logo no dia seguinte — tal como a toda a praça jornalística — foi-me dado acesso à famosa “indiciação” do MP que esteve na base de toda a operação causadora do terramoto político a que o país foi condenado a assistir — como sempre, generosamente tornada acessível (e não pela PJ…), com o objectivo de alcançar o pré-apoio mediático às aventuras judiciais do MP. E logo aí a minha intuição e convicção disseram-me que era a segunda hipótese a verdadeira: estávamos perante um inaudito “golpe de Estado” do MP — não apenas leviano mas maturado durante quatro anos, ponderado, com um timing irresponsável mas bem escolhido e consumado com o beneplácito da senhora procuradora-geral da República. Assim pudesse isso ser desmascarado por um juiz de instrução que fosse um verdadeiro juiz das garantias e da legalidade e enfrentado por advogados que não recuassem frente ao desafio. Felizmente para o que ainda resta da nossa sanidade democrática, isso aconteceu. Mas também quero dizer, para que fique claro, que quando falo do MP não me refiro a todo o corpo dos seus magistrados, a grande maioria dos quais presta um indispensável serviço ao país pelo país fora, mas sim, e sobretudo, a esse corpo de elite que é o DCIAP de Lisboa, um clube privado de anjos virtuosos e salvadores da pátria, funcionando em roda livre e aterrorizando tudo e todos, a começar por essa triste figura da dra. Lucília Gago.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

De há muito que defendo não o fim da independência do MP — a faculdade de investigar, instruir e acusar sem qualquer interferência do poder político — mas o fim da sua autonomia funcional. O fim da liberdade de qualquer procurador poder fazer o que quiser sem dar satisfações a ninguém internamente, de não responder perante ninguém hierarquicamente, de não haver um adulto na sala a dirigir e a controlar o que ele anda a fazer, mesmo que seja a lançar fantásticas operações que têm como efeito prático e único derrubar um Governo eleito por uma maioria absoluta de portugueses. E que no final, e ao contrário do que sucede com os magistrados judiciais, quando o escândalo se torna insustentável, só responda disciplinarmente, quando responde, perante um Conselho Superior do Ministério Público, onde os seus pares estão em maioria. Em todos estes anos em que defendi isto só me recordo, se bem o interpretei, de ter visto isto defendido também por Daniel Proença de Carvalho, que, tendo sido ele próprio delegado do MP e depois advogado — entre outros, do “caso Leonor Beleza”, onde conheceu de perto a infame acusação política que o MP quis disfarçar de processo-crime —, cedo percebeu como a frase “à Justiça o que é da Justiça” podia conter, armadilhada, uma autodeclarada rendição da política frente aos abusos da Justiça e as consequências daí resultantes. Essa rendição, depois repetida em outros casos igualmente infames — como o Casa Pia, Miguel Macedo, Azeredo Lopes, Eduardo Cabrita e, sim, certas facilidades do caso Sócrates —, estimulados cá fora por gente de opinião instantânea, politicamente orientada e sem paciência para ler e reflectir sobre os milhares de páginas dos processos, como João Miguel Tavares e outros, cavalgada irresponsavelmente pela imprensa em cima das violações do segredo de Justiça promovidas pelo MP, levou este clube de virtuosos a achar-se primeiro a reserva moral da nação, depois os donos da lei e depois os condottieri do povo — a fase a que agora e finalmente chegaram.

Marcelo não o percebeu: não percebeu nem soube esperar para ver claro e entender que o que estava em causa, muito mais do que uma crise política, era, de facto, o famigerado regular funcionamento das instituições democráticas — quase a única verdadeira função presidencial. Pedro Nuno Santos ou Luís Montenegro, cegos pela iminência do poder que o DCIAP lhes pôs ao alcance inesperadamente, não perceberam ou não quiseram perceber que o único debate que esta conjuntura exige é sobre o Estado de Direito, a separação de poderes e o fim da impunidade funcional do MP. Porque a escolha é simples: é entre políticos que, por pior que sejam, podem sempre ser julgados e apeados pelo Presidente, pelos tribunais e pelos eleitores, ou magistrados que, por pior que sejam, não respondem perante ninguém e não podem ser apeados por ninguém. Com a frase assassina que Lucília Gago lhe dirigiu, António Costa precisou apenas de duas horas para se demitir, sem que ela achasse que tinha de se incomodar a explicar ao país que razões concretas tinha para forçar o PM àquela decisão e expor o país ao enxovalho internacional que se seguiu. Mas com o enxovalho público a que ela e os seus protegidos procuradores foram depois expostos no tribunal, a senhora acha que nada a impede de continuar o seu papel de múmia paralítica de uma instituição que levou ao absoluto descrédito. Que isto não seja o centro do debate político que está e vai estar na agenda do dia, mas sim a próxima campanha eleitoral e as próximas eleições, é, para mim, inaceitável e incompreensível.

Eu, enquanto eleitor, não me interessa nada ir votar enquanto souber que três procuradores do MP, cujas ideias desconheço, podem interromper uma legislatura a meio, a pretexto de uma narrativa pretensamente criminal e a favor da qual vão escavar ou inventar “provas” ou “indícios”, com “lapsos” reveladores pelo meio, para assim contrariarem a vontade de uma maioria que foi às urnas, e depois passearem-se no café da esquina como os heróis do bairro.

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Os defensores do MP agarram-se agora ao que resta, ao despacho do juiz de instrução que fala de “fortes indícios” de crime de tráfico de influências de que terão sido agentes passivos os ministros João Galamba e Duarte Cordeiro. Salvo melhor opinião, mesmo para isso, podem esperar sentados. Defender que um ministro poderá ter sido ilegitimamente “influenciado” com um jantar caro, sacrificando em troca uma “charca provisória”, habitat de meia dúzia de “rãs de focinho pontiagudo e lagartixas de Carbonel”, para que ali se pudesse desenvolver um projecto de investimento essencial para o país, vai ser muito difícil de sustentar em tribunal. Mas, como escreveu Francisco Teixeira da Mota, um dos advogados defensores da actuação do MP, “crimes como o tráfico de influências são de muito difícil prova”. De acordo, mas então cabe perguntar: se a prova é difícil, não deveria ser mais prudente a suspeita lançada aos quatro ventos?

Mais directo ao assunto foi o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Adão Carvalho, num artigo no “Público”, domingo passado. Escreveu ele, avalizando as suspeitas lançadas publicamente sobre o PM pelo comunicado da PGR: “Que queriam? Que perante a suspeita de um crime o MP enviasse a suspeita para a gaveta ou destruísse os elementos de provas para não incomodar o primeiro ministro? Esquecem que a lei obriga sempre à abertura de um inquérito quando há notícia de um crime?” Pergunto ao ilustre magistrado e sindicalista: de que notícia de crime fala ele e quem a forneceu? De que suspeitas? De que crime? De que prova? De que elementos de prova? Mas tais respostas não devem interessar a quem escreve que tudo se resume entre os que “preferem delinear uma estratégia anti-MP” e os que preferem “implementar uma estratégia anticorrupção”. Tão simples quanto isto. Até porque, acrescenta ele, os primeiros estarão debaixo do “poder dos investigados, quer a nível económico, quer a nível de influência, sobre os tribunais e a comunicação social”. Traduzindo: quem não está de alma e coração com as cruzadas do MP, sejam eles jornalistas ou mesmo juízes, estará provavelmente corrompido pelos suspeitos. Eis o que encerra a questão. Já ouvi este tipo de argumentação em qualquer lado, mas não me lembro onde.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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9 pensamentos sobre “E ficamos assim?

  1. É o MP de Lisboa com as gentes do PS e o MP do Porto com as gentes do FPC. Claro que o Sousa Tavares que aprecio quando põe os dogmas de lado, falha quando tem os seus dogmas sobre a cabeça.

  2. O problema do Ministério Público é a impunidade de que goza. Como já disse uma vez, se cada vez que um desgracado que eles enxovalham e arrastam na lama fosse inocentado o acusador ficasse dois meses sem receber ordenado talvez coisinhas destas não acontecessem.
    Mas se nos sentimos impunes e por acaso até nem sabemos como nos livrarmos de determinados políticos podemos bem dar mais uns pozinhos que nao faz mal nenhum.
    O problema é que aqui as consequências podem ser infinitamente mais graves que aquelas que acontecem quando decidem detonar um desgracado qualquer que vive atrás do sol posto.

  3. Que o MP, se tivesse meios e gente capaz, submetesse a uma prévia aferição interna os processos que leva a promover detenções, não é má ideia.
    Tudo o mais é choradinho de quem vem promovendo fazer do poder político um agenciamento de influências em promover carreiras e negócios.

    E o PM demitiu-se tão só porque saberá o que provavelmente virá a seguir.

  4. O que virá a seguir é ficar tudo em águas de bacalhau por não se conseguir provar porra nenhuma. Mas era impossível alguém se manter no Governo com o MP a ladrar, o Chega a ladrar, a direita a ladrar e tudo quanto é comentadeiro a ladrar.
    Os comentadeiros servem para absolver nazis e colonialistas sanguinários na Ucrânia e Israel, respectivamente, e servem agora para legitimar possiveis geringonças do mal entre o senhor que uma vez disse que a vida das pessoas nao estava melhor mas o país estava, o ex comentador do Benfica e o menino copinho de leite.
    Pessoalnente como está já tenho o repolho bem apertado sem precisar de um Governo com esses trastes. Que é o sonho molhado de muita gente que não tem cuidado com o que deseja.

  5. Tadinhos!
    Mal por mal, antes a cambada PS que sempre tem um rótulo bonito e vai dizendo umas loas que mantêm viva a ‘doutrina dos coitadinhos’.

  6. Coitadinhos são os que votam fascista a pensar que vão conseguir lixar a vida a alguém. Porque não acredito que, alguém acredite mesmo, a não ser que, seja um grande banqueiro ou empresário, ou simplesmente alguém que tenha um empregado a quem explora, que votar em fascistas pode fazer a sua vida melhorar.
    Depois quando for a sua vida a ser lixada logo se fazem de coitadinhos, coisa de que adoram acusar os outros.
    Aliás, nem isso, são capazes de ir aos mesmos sítios onde antes garantiam que iriam votar nos fascistas a dizer “eu não votei neles”. Tivesse eu notas de cinco euros como gente dessa já conheçi e não precisava trabalhar mais.
    Eu não voto nem nunca votei em grandes partidos porque sei que as maiorias absolutas dão sempre merda, seja quem for que lá esteja.
    É se as maiorias absolutas do Cavaco não deram mais lebres na altura, vieram a dar depois. E não deram mais lebres na altura porque toda a gente estava interessada em sacar umas migalhas dos fundos comunitários, nem que fosse a frequentar cursos de formação que não valiam um caracol mas onde havia quem tendo ficado desempregado ganhasse mais que trabalhando. E assim se calaram as dissidências.
    No segundo mandato foi pior ainda porque quem falava mal so podia ser um reles comunista defensor daqueles países da Europa de Leste onde era só miséria. Porque aqui era tudo uma fartura com desempregados em barda a espera de vaga num curso de formação financiado pela CEE.
    Para alguns isso foi uma vacina bem mais eficaz que a da covid contra maiorias absolutas venham elas de onde vierem.
    Infelizmente houve gente que não pensou assim e por isso tivemos de voltar a passar pelo mesmo.
    Agora cabe a cada um saber muito bem onde vai votar para não levarem com uma geringonça do mal com os três artistas que já referi.
    Para asneira já basta a que os argentinos vão fazer amanhã. O problema é que já deu para perceber que votar em fascistas, para a maior parte da população, só da fome e porrada. Mas toda a gente acha que no pais dele vai ser diferente. Onde é que a extrema direita já governou e no fim do mandato a vida dá população em geral correu melhor? Na terra do faz de conta.
    Por isso quem está a pensar votar no Chega para tirar o rendimento mínimo aos ciganos, como alguns votaram em tempos mo Paulinho das Feiras, lembre se bem que pode chegar ao fim desses quatro anos a precisar de rendimento mínimo. E se ele tiver mesmo acabado e uma chatice. É que nos tempos da dupla Passos/Portas isso aconteceu a mais de um. Virou coitadinho mesmo sem se fazer.

  7. Sim,sempre foi assim!

    A ditadura perfeita seria uma ditadura com os traços da democracia, uma prisão sem muros da qual os prisioneiros nunca sonhariam escapar, um sistema de escravatura no qual, graças ao consumo e ao entretenimento, os escravos adorariam a sua servidão”. Aldous Huxley

    Vou tentar fazer uma dissertação sobre a diferença fundamental entre a República e a democracia.

    No entanto, para mim, a República é um regime político, enquanto a democracia é um sistema político.
    Portanto, acho que devemos ter uma República democrática em Portugal.
    O que não temos actualmente.
    Precisamos de uma Constituição que proteja o povo e que permita referendos muito mais acessíveis ao povo, como na Suíça.

    É deplorável ver a palavra “votar” substituir pela palavra “eleger”.
    Numa democracia vota-se, mas numa república elege-se.
    São coisas fundamentalmente diferentes.
    Votar = escolher uma lei e assumir a responsabilidade por ela.
    Eleger = escolher uma pessoa a quem se renuncia às responsabilidades.
    A maioria é apenas uma escolha arbitrária estipulada na Constituição para não bloquear o sistema. Imaginem precisar de 100% dos votos em cada votação ou eleição! Quanto a Portugal actual, é uma república das bananas onde os Portugueses servem os interesses de uma oligarquia.
    Os políticos são marionetas, vendo quem puxa os cordelinhos.

    Actualmente, mesmo que a democracia esteja claramente ausente da nossa paisagem política, a separação de poderes já não existe e é a república que está em perigo. A república é o único garante da possibilidade de democracia e, quando os juízes tomam o poder sobre o executivo e o legislativo, pouco importa os votos…

    Em Portugal também tem muita gente que confunde Portugal com a República, mas o facto de Portugal ter actualmente uma república não significa que se deva confundir com ela. De facto, Portugal também pode ter uma realeza com um rei à cabeça, ou um império com um imperador, ou mesmo um déspota esclarecido. Por outras palavras, um político pode afirmar-se republicano e não ter qualquer sentimento patriótico por Portugal.

    Nos países totalitários, o Estado decide qual a linha a seguir e depois todos têm de a cumprir. As sociedades democráticas funcionam de forma diferente.

    A linha nunca é declarada como tal, está implícita. De certa forma, é uma lavagem ao cérebro.
    E mesmo os debates acalorados nos principais meios de comunicação social enquadram-se nos parâmetros implícitos acordados, que mantêm à distância muitos pontos de vista opostos.
    O sistema de controlo nas sociedades democráticas é altamente eficaz; incute o princípio orientador como o ar que respiramos. Não nos apercebemos disso e, por vezes, imaginamos que estamos na presença de um debate particularmente vigoroso.

    “No fundo, é infinitamente mais eficaz do que os sistemas totalitários”. Noam Chomsky

    As leis são escritas de tal forma que os mortais comuns não conseguem compreendê-las. Estou convencido de que uma grande maioria dos Deputados não seria capaz de simplesmente explicar um acto legislativo que eles próprios nem sequer compreendem.

    Os eleitos não escrevem nenhuma lei… Só votam sem sequer terem lido os textos…

    Deve ser do conhecimento geral que os textos são escritos por lobbies para defender os seus interesses.

    Que a Humildade, a Justiça e a Paz tomem conta de Portugal. Ele precisa urgentemente disso.

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