A multidão e o povo

(António Guerreiro, in Público, 31/03/2023)

António Guerreiro

A multidão indistinta, que só conhece formas elementares de identificação e é movida por mecanismos de imitação difusa, pode vir a ocupar o lugar outrora pertencente à “classe”.


Em França, enquanto prosseguia nas principais cidades uma mobilização social vigorosa e persistente contra a nova lei das reformas, em que se passou rapidamente do protesto ao apelo à resistência, uma luta de um novo género travou-se em Sainte-Soline, contra o projecto em construção de mega-reservas artificiais de água para irrigação agrícola: para lá convergiram no sábado passado cerca de 30 mil manifestantes, de vários países europeus, seguidores de grupos ecologistas que defendem acções radicais de sabotagem e se sentem traídos pela brandura e ineficácia dos partidos verdes (o sueco Andreas Malm, autor de livros sobre o “fascismo fóssil” e “como sabotar um pipeline”, surge aqui como um importante ideólogo).

O objectivo era a destruição de infra-estruturas desses mega-reservatórios que configuram a apropriação e a monopolização de um bem raro (a água) por parte de empresas privadas. Pela frente, os manifestantes encontraram um aparato policial dotado de meios de combate militar. O resultado esteve à altura dos meios policiais (centenas de feridos, alguns com muita gravidade), mas ficou aquém dos fins dos manifestantes, que não conseguiram alcançar o alvo (conseguiram no entanto a mais grandiosa mobilização deste tipo, num país onde a histórica Revolução parece despertar como memória em declinações actuais, sob a forma de revoltas).

Nada nos permite dizer que os confrontos em Sainte-Soline mostram o rosto e a força constituinte de uma nova “classe ecológica”, anunciada por Bruno Latour, mas identificar os manifestantes pura e simplesmente com uma massa açulada é não perceber nada do que se passa à nossa volta.

Foi mais ou menos dessa maneira que o presidente Macron se referiu às manifestações contra a lei das reformas e o modo excepcional como ela foi aprovada. Disse ele: “A multidão que se manifesta não tem legitimidade face ao povo que se exprime através dos seus eleitos”. A multidão contra o povo: de um lado uma entidade perigosa, tradicionalmente considerada como objecto preferencial de uma psicologia social e, portanto, exterior à representação política; do outro, o povo, precisamente o objecto supremo da representação política, sujeito político constitutivo desde a Revolução Francesa ao diferenciar-se do parte empírica do corpo social.

Remetendo os manifestantes para a condição de “multidão” politicamente ilegítima, Emmanuel Macron traz à memória um filão do antigo pensamento sociológico francês do século. Em primeiro lugar, aquele representado por um bom velho reaccionário (no sentido primeiro, original, desta palavra entretanto caída em desuso porque ser reaccionário é a nossa condição normalizada), chamado Gustave Le Bon, que em 1912, escrevendo sobre a “psicologia das revoluções”, diagnosticava como entidades patológicas “estas multidões estridentes e malignas, núcleo de todas as insurreições, da Antiguidade aos nossos dias”. E para Gabriel Tarde, a multidão era uma formação heterogénea, inorgânica por excelência e inferior enquanto facto social.

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Assim entendida, a multidão, enquanto fenómeno da era das massas, é a expressão de tensões sociais quando estas chegam a um certo grau de intensidade e representa um perigo: é a emergência do heterogéneo no seio da sociedade homogénea. Ela não tem nada que ver com a luta de classes porque a multidão não é uma classe, nem muito menos revolucionária. É precisamente isso que Macron quis dizer, para lhe atribuir uma condição ilegítima. Não porque ele aprecie ou acredite na luta de classes, mas há momentos em que um presidente conservador e com alguma vocação despótica até encontra algum sossego na doutrina marxista. É evidente que ele utiliza o argumento da “multidão” para incutir medo; e utiliza a palavra “povo” para evocar implicitamente a ordem republicana e as suas instâncias de legitimação.

O problema, que ele certamente conhece, é que a multidão indistinta, que só conhece formas elementares de identificação e é movida por mecanismos de imitação difusa, pode vir a ocupar o lugar outrora pertencente à “classe”. Terá Macron lido Multitude, o livro de Negri e Hardt? Acompanhará ele a produção ensaística da revista Multitudes, publicada no seu país? Saberá ele o significado político que pode ter hoje a multidão ou só leu Gustave Le Bon, Gabriel Tarde e, na mais favorável das hipóteses, Elias Canetti?



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Um pensamento sobre “A multidão e o povo

  1. Só que … há uma diferença entre “rico” e “rico” …
    – Quando não se paga a mesma percentagem de impostos … não se rouba?
    – Quando se financia carreiras políticas na esperança de um retorno do investimento … não se rouba?
    – Quando destrói a sua concorrência (aquisições) graças a condições de empréstimo que mais ninguém consegue obter … não estão a roubar?
    – Quando cria valor através do trabalho dos trablhadores que não recebem uma parte justa … não se está a roubar?
    – Quando ser rico é um caso para toda a vida de pai para filho, assemelhando-se a uma nobreza indestrutível … é relevante?
    – Quando leis, regulamentos, a justiça faz com que uns tenham mais poder do que outros … é justo?
    Sim, há um problema de classes …

    A noção de luta de classes herdada do marxismo com a representação de conflitos sociais no coração das indústrias que, num país como o nosso, se desindustrializou em grande parte para ter um sector terciário muito preponderante… Eu não diria que é reactiva, é provocação fácil, mas ainda tenho a impressão de que os marxistas não evoluíram (ou será que podem?)

    Sob o antigo regime, não havia luta de classes. O povo é gerido pela burguesia, que se sai sempre bem. Em suma, o povo luta contra si próprio porque fisicamente tem sempre uma outra parte do povo à sua frente. E os líderes políticos e sindicalistas da direita e da esquerda mantêm a pontuação e certificam-se de que ela não sai fora de controlo. Tudo isto sob o olhar benevolente das finanças. Os filósofos, os guardiães os “bens pensantes”, falam ao povo sobre moralidade, sobre respeito. São todos a favor da guerra em nome de valores a defender, os seus próprios, claro, mas não para fazer a guerra. Estão mesmo prontos a irritar as pessoas que não pensam como eles.

    A classe média ficou pobre. A Europa e o Ocidente em geral empobrecem e a principal razão deste empobrecimento deve-se ao facto de o Ocidente ter demasiado impostos e não produzir riqueza real suficiente, ou seja, produção industrial.

    A Europa distinguia-se por países de grande classe média. Os países do Terceiro Mundo distinguiam-se pela ausência de classe média. Agora, em Portugal, o aumento do custo de vida, os impostos e o custo da habitação empobrecem cada vez mais a classe média.

    Durante a pandemia, todos aplaudiram os trabalhadores da primeira linha. Os indispensáveis para manter a economia em funcionamento.

    Enquanto isso, as grandes empresas fizeram lucros recordes. O PSI 20 nunca foi tão alto.
    E a primeira linha é só migalhas.
    Depois dizem-nos que a culpa é da guerra na Ucrânia…

    Lembro-me que, quando a moeda europeia chegou , todos ficaram contentes( teria eu 30 anos)!, ”

    Mas eu sabia desde o início que não era uma boa ideia, na verdade, é a moeda europeia que empobrece todos!

    Sim, os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres ficam cada vez mais pobres!
    A pobreza existiu antes da moeda Europeia, mas sabe materializar-se desde a sua introdução na Europa.
    Esta Europa capitalista que nos é imposta é directamente afectada e também a sua própria moeda.

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