Da coragem de não ser puro

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 25/01/2022)

Só há duas formas de mudar um país – ter uma política diferente e ter mais de 50%. E se uma destas condições não existe então transforma-se em algo de inútil para disputar o poder. (…) Ter poder sem princípios não serve de nada. Mas ao mesmo tempo ter os princípios sem poder é igualmente inútil.”


As palavras são de Marisa Matias, no início de 2015, numa entrevista a Pablo Iglesias, secretário geral do Podemos e atual vice-presidente do governo espanhol. Ouvi-as, recordo, com espanto, quando preparava um perfil daquela que mais tarde nesse ano seria anunciada como a candidata presidencial do Bloco: era a formulação exata do meu pensamento sobre aquilo que via, com impaciência, como a infantilidade tradicional dos partidos à esquerda do PS face à realidade – a resistência a sair do lugar confortável do protesto, a assunção de pureza irredutível dos que não se conspurcam nas negociações e nos compromissos, dos que não se rendem às vicissitudes da realidade.

Afinal, pensei, ainda há no Bloco quem se lembre de que este foi apresentado, em 1999, na sua criação, como o novo partido à esquerda do PS que, ao contrário do monolítico e inamovível PCP, estava disposto a fazer pontes, a puxar o PS para a esquerda e até, talvez, a governar. O BE que surgia, com o seu grupo parlamentar paritário e sem gravata, as suas causas igualitárias, feministas, ambientalistas, como a lufada de ar fresco de que a esquerda portuguesa tanto precisava, um possível “desempatador” de um panorama parlamentar em que a direita conseguia fazer maiorias compostas e a esquerda nunca.

Esse espírito de entendimento e diálogo vimo-lo aliás seis anos depois, quando, na perspetiva da provável vitória sem maioria do PS, o BE então liderado por Francisco Louçã se prefigurava como o parceiro óbvio de governo – era essa a pergunta que se fazia insistentemente ao então secretário-geral do PS: se iria coligar-se com o BE e em que condições. Não aconteceu – o PS teve a sua primeira e única maioria absoluta até hoje – e a distância entre os dois partidos iria crescer até romper. Mesmo se em 2008, Louçã, num debate promovido pela editora Tinta da China, admitia que o governo socialista tinha até então posto em prática uma parte considerável do programa do Bloco – e não se referia apenas às matérias ditas “fraturantes”, longe disso. “Ainda bem, significa que conseguimos fazer valer o nosso ponto de vista”, comentou o coordenador do BE, sem discutir o essencial, ou seja, que os programas dos dois partidos eram essencialmente compatíveis. Sabemos, porém, o que sucedeu depois; e sabemos também o resultado que o sucedido teve.

Adiante: quando em 2015 Marisa Matias, provavelmente a mais social-democrata dos bloquistas (é um elogio), disse o que cito no início deste texto sobre poder e princípios ainda não tinha acontecido a debacle do Syriza na Grécia, o referendo convocado para 5 de julho de 2015 pelo governo para ouvir o povo quanto ao ultimato europeu e o subsequente ignorar da negativa que recebeu em resposta e pela qual fizera campanha; ainda não tínhamos visto um partido da dita “esquerda verdadeira” a render-se, de modo totalmente inesperado, ao princípio da realidade e a aceitar o memorando austeritário cuja rejeição tinha pedido ao povo para em seguida, após eleições legislativas, se aliar a um partido de direita de modo a continuar a governar. Ainda não tínhamos visto o BE a tentar digerir o que pode suceder a um partido irmão quando em vez de protestar, criticar e exigir passa para o outro lado e se vê a ter de escolher entre atirar a toalha e fugir, ou ficar e aceitar o que parecia inaceitável.

Ainda não tínhamos visto Catarina Martins, na campanha para as nossas legislativas de 2015, comentar assim a vitória do Syriza nas eleições gregas convocadas a seguir ao referendo: “Prova que o povo grego não quer voltar atrás. É verdade que o plano que foi imposto ao governo grego não é uma rutura com a política de austeridade, e é conhecida a oposição do BE a esse plano assinado pelo governo grego. A rutura de que precisamos na Europa não existiu ainda. Mas se ganhasse a Nova Democracia [partido grego de centro direita] seria voltar ainda mais para trás.” Na mesma entrevista ao DN em que aceitava ser melhor um Syriza em capitulação perante a austeridade que um governo de direita que faria decerto pior, Martins negava que o BE quisesse continuar a ser um partido de protesto: queria ser governo, mas sem “ceder em objetivos essenciais”.

Seis anos depois e quase 23 após a sua fundação, o BE não foi ainda governo; nunca teve realmente de sopesar a importância relativa do poder e dos princípios. Parece, no entanto, ter sopesado a importância relativa do que é melhor para o partido: continuar a apoiar um governo PS, com as cedências necessárias nas negociações, ou arriscar eleições.

Neste jogo em que todos culpam todos, parece óbvio que, como escreve Boaventura Sousa Santos no Público, a esquerda portuguesa decidiu, depois de uma iluminação redentora em 2015, voltar a ser burra e esquecer de novo aquilo que parecia ter aprendido: que a direita nunca tem problema nenhum em fazer cedências e dar todas as cambalhotas necessárias, incluindo, como se constata no namoro sonso de Rui Rio e da IL ao Chega, vender a alma (a existir) ao diabo, para segurar o poder.

Relembremos então: ter princípios sem poder é inútil – se a ideia é mudar o mundo ou um país e não apenas fazer manifestos para o vento. É agora que vivemos e não nos amanhãs cantáveis – e até o PCP, a maior surpresa dos últimos seis anos, parecia ter percebido isso. Podemos então, por favor, por favor, ser crescidos? Podemos ter – outra vez – a coragem de não ser puros?


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2 pensamentos sobre “Da coragem de não ser puro

  1. Quando um privilegiado da bolha da política/comentariado me vem com a conversa dos “puros” que rejeitaram o orçamento do PS, e que é “burrice” ser oposição ao governo do Cabrita, fico com uma comichão dos diabos.

    Imaginem que o BE tinha proposto (como propôs), como condição para aprovar o orçamento, um regresso à lei laboral que existiu até 2012, e a qual o PS defendeu até 2015. Se o PS dissesse que sim àquilo que o próprio PS defendia, hoje não havia eleições, e o país estava melhor ao ter trabalhadores com direitos um pouco mais dignos que os actuais.

    Agora imaginemos o oposto, que o PS dizia que não (como disse), que se atrevia a elogiar os resultados dessa reforma Passista (ou da troika), que dizia que era inaceitável ir mais longe (e aqui pergunto: então queria ir à especialidade para quê?), mas que no final o BE aceitava todos os 9 nãos que recebeu às suas 9 propostas (na área da saúde com ideias de Arnaut, e para tirar também o que resta da troika/Passos nas pensões duplamente penalizadas). O que teríamos hoje? Tal como no 1º centário, também não teríamos eleições, mas estaríamos muito pior.

    E estaríamos muito pior porquê? Primeiro porque Portugal passaria a ser apenas o 2º país do Mundo dito ocidental, em que a Esquerda não defende Direitos Laborais (sendo o 1º o regime dos EUA). Teríamos antes um governo que se diz “socialista” a defender um ataque contra os trabalhadores feito no tempo da bravata ideológica NeoLiberal de Passos Coelho. E em segundo porque Portugal deixaria de ter BE pois, convenhamos, um partido à Esquerda do PS que aceitasse a lei laboral da troika sem fazer dela uma linha vermelha, seria um partido morto a partir desse dia. E depois, com um PS nos 36% e um BE enterrado e um PCP já quase morto nos 5%, que Geringonça sobrava? Nenhuma. Apenas sobrava ao PS o regresso à “normalidade” de só poder negociar exclusivamente com a Direita.

    Com certeza a pessoas da tal bolha de privilégio como Câncio ou Boaventura, ter as horas extra pagas por inteiro, ter 25 dias de férias, ter contratação colectiva, ou ter indemnizações justas aquando dos despedimentos, a essa gente não faz falta. Mas ao povo real deste país, cuja realidade graças à lei laboral da troika/Passos (e agora também de Costa) é cada vez mais precária e de miséria salarial, faz muita falta. E sabendo disto, só me resta dizer uma coisa: se há uma “Esquerda” que chama “puros” ou “burros” a quem defende os que trabalham, então antes ser “puro” e “burro” do que ser um completo atrasado mental que ganha a vida na propaganda ao partido rosa do regime.

    Assim, vejo-me cada vez mais hoje em dia a concordar com a única coisa certa que Arnaldo Matos (histórico do MRPP) disse em toda a sua vida: isto é tudo um putedo. E a tal “esquerda” feita de gente “não pura” e “esperta” que me perdoe a franqueza e a escolha de palavras ao estilo do saudoso Zé Mário Branco, mas eu quero é que eles se vão todos f*der, mais à p*ta que os pariu a todos. Que acabem todos f*didos na cama com o PSD/CDS/IL ou até o Ch (ao lado de quem o PS votou contra a Esquerda nestas questões). E que se f*dam os que ainda houver por f*der no dia em que o FMI aqui voltar a entrar para nos voltar a resgatar da m*rda anti-democrática chamada Zona Euro, que tanto mal faz ao nosso país real. Mas é um mal com que o tal putedo vive bem, pois não o afecta lá na bolha de avençados em Lisboa…

    Assinado: um jovem bem formado que nunca na vida conheceu outra coisa a não ser a precariedade e baixos salários ou a nossa crise de divergência permanente na Zona Euro, e em breve a imigração daqui para fora, pois tanto putedo já cheira mal.
    Vou para um país sem NATO, sem Euro, sem offshore, com +60% sindicalizados, com +30% funcionários públicos,. com muito mais Estado, muito mais carga fiscal, muitos mais distribuição e redistribuição. Com tal descrição “bloquista”, deve ser só “puros” e “burros” no reino da Suécia…

  2. Quando um privilegiado da bolha da política/comentariado me vem com a conversa dos “puros” que rejeitaram o orçamento do PS, e que é “burrice” ser oposição ao governo do Cabrita, fico com uma comichão dos diabos.

    Imaginem que o BE tinha proposto (como propôs), como condição para aprovar o orçamento, um regresso à lei laboral que existiu até 2012, e a qual o PS defendeu até 2015. Se o PS dissesse que sim àquilo que o próprio PS defendia, hoje não havia eleições, e o país estava melhor ao ter trabalhadores com direitos um pouco mais dignos que os actuais.

    Agora imaginemos o oposto, que o PS dizia que não (como disse), que se atrevia a elogiar os resultados dessa reforma Passista (ou da troika), que dizia que era inaceitável ir mais longe (e aqui pergunto: então queria ir à especialidade para quê?), mas que no final o BE aceitava todos os 9 nãos que recebeu às suas 9 propostas (na área da saúde com ideias de Arnaut, e para tirar também o que resta da troika/Passos nas pensões duplamente penalizadas). O que teríamos hoje? Tal como no 1º cenário, também não teríamos eleições, mas estaríamos muito pior.

    E estaríamos muito pior porquê? Primeiro porque Portugal passaria a ser apenas o 2º país do Mundo dito ocidental, em que a Esquerda não defende Direitos Laborais (sendo o 1º o regime dos EUA). Teríamos antes um governo que se diz “socialista” a defender um ataque contra os trabalhadores feito no tempo da bravata ideológica NeoLiberal de Passos Coelho. E em segundo porque Portugal deixaria de ter BE pois, convenhamos, um partido à Esquerda do PS que aceitasse a lei laboral da troika sem fazer dela uma linha vermelha, seria um partido morto a partir desse dia. E depois, com um PS nos 36% e um BE enterrado e um PCP já quase morto nos 5%, que Geringonça sobrava? Nenhuma. Apenas sobrava ao PS o regresso à “normalidade” de só poder negociar exclusivamente com a Direita.

    Com certeza a pessoas da tal bolha de privilégio como Câncio ou Boaventura, ter as horas extra pagas por inteiro, ter 25 dias de férias, ter contratação colectiva, ou ter indemnizações justas aquando dos despedimentos, a essa gente não faz falta. Mas ao povo real deste país, cuja realidade graças à lei laboral da troika/Passos (e agora também de Costa) é cada vez mais precária e de miséria salarial, faz muita falta. E sabendo disto, só me resta dizer uma coisa: se há uma “Esquerda” que chama “puros” ou “burros” a quem defende os que trabalham, então antes ser “puro” e “burro” do que ser um completo atrasado mental que ganha a vida na propaganda ao partido rosa do regime.

    Assim, vejo-me cada vez mais hoje em dia a concordar com a única coisa certa que Arnaldo Matos (histórico do MRPP) disse em toda a sua vida: isto é tudo um putedo. E a tal “esquerda” feita de gente “não pura” e “esperta” que me perdoe a franqueza e a escolha de palavras ao estilo do saudoso Zé Mário Branco, mas eu quero é que eles se vão todos f*der, mais à p*ta que os pariu a todos. Que acabem todos f*didos na cama com o PSD/CDS/IL ou até o Ch (ao lado de quem o PS votou contra a Esquerda nestas questões). E que se f*dam os que ainda houver por f*der no dia em que o FMI aqui voltar a entrar para nos voltar a resgatar da m*rda anti-democrática chamada Zona Euro, que tanto mal faz ao nosso país real. Mas é um mal com que o tal putedo vive bem, pois não o afecta lá na bolha de avençados em Lisboa…

    Assinado: um jovem bem formado que nunca na vida conheceu outra coisa a não ser a precariedade e baixos salários ou a nossa crise de divergência permanente na Zona Euro, e em breve a emigração daqui para fora, pois tanto putedo já cheira mal.
    Vou para um país sem NATO, sem Euro, sem offshore, com +60% sindicalizados, com +30% funcionários públicos, com muito mais Estado, muito mais carga fiscal, muito mais distribuição e redistribuição. Com tal descrição “bloquista”, deve ser só “puros” e “burros” no reino da Suécia…

    (comentário corrigido)

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