Terapia de grupo

(Carmo Afonso, in Expresso Diário, 24/01/2022)

O contributo que cada um pode dar, para que a noite de domingo não seja outro desgosto, vai para além do voto. A esquerda deve combater a direita e não combater-se entre si. A guerra deve acabar. Qualquer voto à esquerda tem a utilidade de contribuir para uma solução, são todos úteis. Os partidos já o disseram. António Costa, ontem, afirmou finalmente que chegou o tempo de dar força a quem ao longo da vida se dedicou a erguer pontes. Está aqui o momento de viragem.


A democracia portuguesa foi uma conquista. O valor que se dá à revolução que nos deu a democracia é um bom critério para aferir o posicionamento político de uma pessoa ou de um partido político. Também é um bom medidor para avaliar a evolução do posicionamento político de país. A gratidão e o reconhecimento da importância do 25 de abril estão com níveis baixos. O país tem vindo a movimentar-se para a Direita e a desvalorizar o impacto da revolução, a apontar-lhe falhas e a quem a protagonizou. Defender que o 25 de novembro é que foi importante tornou-se habitual.

Complementarmente também se tornou habitual ouvir, dos tempos da ditadura, que não foi nenhuma ditadura, que não era bem fascismo e, claro, que tinha algumas virtudes. Ainda anteontem ouvíamos Rui Rio afirmar que “Em termos de eficácia, a justiça piorou desde o 25 de Abril.”

As afirmações, como esta de Rui Rio, são normalmente feitas no espaço público de forma a terem uma possibilidade de recuo. Podem sempre ser compostas como uma piada, uma ironia, justificadas como uma maneira de dizer as coisas que só quem é muito quadrado é que não entende. Ser muito quadrado – o nome que agora se dá é ser extremista de esquerda – significa que não se aceita relativizar a leitura de factos.

Neste momento talvez já nem seja preciso qualquer recuo. A Rui Rio, que quer ser o próximo primeiro-ministro, não é exigido que justifique o que disse, que diga se estava a falar a sério ou se era mais uma piada como a do avanço do fascismo nos Açores, que se retrate junto das famílias de quem foi torturado, preso ou perdeu a vida nas mãos da eficácia da justiça nos tempos da ditadura.

E porquê?

Este fenómeno está integrado num maior. As linhas vermelhas foram recolocadas, estão agora muito distantes. Às vezes já é difícil localizá-las. Nada parece ser suficientemente sério ou grave a ponto de determinar que a generalidade dos portugueses ponham o pé no travão.

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Recentemente assistimos a imagens em que homens, da Guarda Nacional Republicana, trataram de forma criminosa imigrantes em Odemira. Não se trata apenas de não respeitarem a vida e a dignidade daquelas pessoas. Cometeram crimes. Violaram a lei que estão obrigados a fazer cumprir. Não vejo que, a partir destes factos, se tenha iniciado uma reflexão sobre alguns aspectos que são inultrapassáveis: existe racismo estrutural em Portugal e esse problema está especialmente enraizado nas forças de segurança. Forças de segurança racistas colocam numa situação de fragilidade comunidades que já têm bastantes razões para se sentirem fragilizadas. Mais, elementos das forças de segurança que se sentem impunes perante o não cumprimento da lei, não são verdadeiras forças de segurança, são um perigo efetivo para a segurança de todos.

O tema aqui é a normalização do inaceitável.

O tema aqui somos todos nós como povo. Qual é o limite? Porque damos estes sinais de que quase nada tem a gravidade de nos abalar?

Vamos a eleições no dia 30 de janeiro e claro que não devemos temer os resultados. Se o fizermos estamos a temer a própria democracia e a temer-nos a nós próprios. Não podemos defender os valores democráticos e depois não aceitar os resultados da dinâmica da democracia.

Mas é claro que o partido Chega é uma exceção aqui. Outra vez: não deveria lá estar. Não deveria ser uma possibilidade de escolha no boletim de voto. Nunca se combateu o fascismo a votar. Tudo isto é profundamente ridículo mas claro que não terá consequências ridículas, o adjetivo aplicável às consequências deverá ser outro.

Sucede que a exceção está no meio de nós e sucede que podemos ter uma solução governativa que integre André Ventura. Ainda ninguém à direita,

interessaria sobretudo que fosse Rui Rio a fazê-lo, afirmou de forma inequívoca que em circunstância alguma haverá entendimento com o partido Chega.

Várias observações podem ser feitas a esse respeito mas novamente a mais importante é sobre nós como povo. O líder partidário do maior partido de direita português está, segundo as sondagens, a passar impune (falo de impunidade nas intenções de voto) fazendo uma admissão tácita de um entendimento com um partido de extrema-direita neofascista e racista.

Há cinco anos seria uma impossibilidade. Agora é possível. Atrevo-me a ir mais longe: parte do eleitorado da direita espera que Rui Rio chegue a um entendimento com o partido Chega se tal entendimento for condição necessária para a formação de um governo de direita.

As pessoas são boas a encontrar justificações para aquilo que pretendem ver feito. A leitura de que, se António Costa se pode apoiar na “extrema-esquerda” para formar governo, também Rui Rio tem legitimidade para o fazer à direita é a mais frequente.

E esta foi outra linha que se cruzou recentemente. Bloco e PCP passaram a ser a extrema-esquerda. Esta classificação – errada do ponto de vista da ciência política – foi intencional e tem vindo a passar. Está agora firme na voz de muitos protagonistas de direita. Trata-se de chamar extremismo ao combate às desigualdades sociais, à luta pelos direitos dos trabalhadores, à reivindicação do aumento do salário mínimo nacional, à exigência da correção do valor da reforma de quem tinha longa carreira contributiva e do pagamento das horas extraordinárias.

Ou seja: se António Costa pôde chegar a entendimento com esta esquerda, então é mais que justo que Rui Rio possa chegar a entendimento com quem incita ao ódio à comunidade cigana, assenta o seu programa em diferenciações entre portugueses e, de um modo geral, sugere aos portugueses que devem desconfiar dos outros portugueses, os mais pobres, pois na verdade são uns aproveitadores com Mercedes à porta de casa.

Este é o raciocínio. Estamos falados.

Até acredito que Rui Rio sinta repugnância por estas ideias – é certo que Marcelo Rebelo de Sousa a manifestou, e de forma inequívoca, no debate presidencial com André Ventura – mas isso não conta para nada, talvez até agrave o que aqui está em causa. Mas também é verdade que existem no PSD pelo menos duas direitas e que esta direita de Rui Rio não é a de Marcelo Rebelo de Sousa ou a de milhares de militantes que poderão até estar mais perto de António Costa do que estão de Rui Rio.

Se com esta possibilidade implícita de acordo com o Chega em cima da mesa Rui Rio ganhar as eleições, então será totalmente merecida a sorte que nos espera a seguir. As eleições não são apenas uma avaliação do desempenho dos partidos e dos dirigentes partidários. Elas permitem também uma avaliação do desempenho dos eleitores, de nós próprios.

Esta avaliação deve começar pelos abstencionistas (estabelecer aqui uma diferença entre abstencionistas e os que votam nulo/branco. É um grande tema. Há milhares de portugueses que participam no sufrágio eleitoral, e nessa participação manifestam o seu desagrado com a política nacional, com um voto nulo/branco. Estes sim, são a terceira força política do país): quem se abstém de participar em eleições não tem grande direito a queixar-se seja do que for. Nem que o dinheiro dos seus impostos está a ser mal gerido, nem que a extrema-direita está a avançar muito e nem que a classe política em Portugal não tem qualidade ou qualquer outra queixa. Quem não participa no ato mais importante da vida democrática está a excluir-se das soluções e, com todo o respeito por essas pessoas, de discutir política no espaço público ou de lhe pedir contas. Queixo-me aqui de todos os que não vão votar. Dos que olham para os céus – que numa versão contemporânea significa fazer desabafos nas redes sociais – com revolta mas que não saem de casa naquele dia.

O PSD não está unido em torno de Rui Rio. É de notar a estratégia que Rui Rio usou nas eleições internas do partido e que mantém: a de dizer que, se o Partido Socialista ganhar as eleições, contará com o PSD para viabilizar uma solução governativa. Muito interessante e uma grande armadilha: ao dizer isto Rui Rio apresenta-se como um moderado do Bloco Central. Rui Rio, o mesmo que não consegue afirmar inequivocamente que jamais fará entendimentos com o Chega. Quem vota neste PSD tanto pode estar a viabilizar um governo do Partido Socialista como a votar no primeiro governo, da história da democracia portuguesa, que integra um entendimento com um partido de extrema-direita.

Pode ser o oito e pode ser o oitenta. Que PSD tão elástico.

Já a estratégia de António Costa tem passado por deixar claro que não tem intenções de se entender com o Bloco e com o PCP. Vamos lá analisar esta posição de António Costa. É que ela é altamente intrigante. Há muitas possibilidades de justificação e, claro, a esquerda vai-se entretendo numa verdadeira guerra civil entre si enquanto as intenções de voto na direita estão aparentemente a subir. Há que conseguir pensar enquanto ainda estamos no olho do furacão, enquanto não chega o momento em que olhamos para os destroços e contamos baixas. Desta vez fomos avisados.

Porque é que António Costa não tem acolhido as aproximações que o Bloco e o PCP lhe apresentam? Poderia ser por ressentimento a propósito dos últimos tempos, concretamente por não ter existido acordo para viabilizar o Orçamento do Estado. Só que não faz grande sentido que assim seja. Não indo buscar a saturada arqueologia da falta de entendimento à esquerda que nos trouxe até aqui, é relativamente seguro pensar que, se fosse por essa razão, Bloco e PCP não estariam no mesmo saco. Deve ser reconhecido ao PCP um esforço acrescido, sobretudo na fase anterior à da discussão deste orçamento, de viabilizar as políticas deste governo, de negociar. Os três partidos não se entenderam, diria que o PCP é quem tem menor responsabilidade nessa falta de entendimento.

Mas adiante na análise das motivações de António Costa. Não acredito em ressentimentos políticos quando está em causa ganhar ou perder uma eleições legislativas. Restam então dois cenários: O primeiro é que a António Costa, como se afirma por aí à boca cheia, não interessa assim tanto ganhar as eleições e que apenas o prenderá cá uma maioria absoluta. Este cenário considera que António Costa tem outros planos pessoais, na União Europeia, e que está farto (não me atreveria a criticá-lo por estar farto e cansado) da dureza destes últimos anos. Segundo esta teoria, António Costa põe o pé no acelerador a fundo e conviverá muito bem com qualquer resultado no próximo domingo. Se puder formar governo sem Bloco e PCP será precisamente o que vai fazer. Se precisar de negociar com Bloco e PCP, como aconteceu em 2015, então António Costa prefere ir à sua vida.

Vamos lá ver: recuso este cenário por várias razões. A principal é que não acredito que António Costa tenha a sua vontade de ganhar estas eleições condicionada por uma circunstância pessoal que só a si diz respeito. Há boas razões para se crer, independentemente da apreciação que se faça do seu trabalho, na sua dedicação ao país.

Há ainda um segundo cenário a considerar e este também dói: António Costa não tem dado conversa ao Bloco e ao PCP porque na sua leitura inicial a maioria do eleitorado português não quer uma qualquer reinvenção da geringonça. O eleitorado português deslocou-se para a direita. A narrativa de que a falta de entendimento da esquerda é culpa destes partidos também está bem difundida e assente junto de parte do eleitorado socialista. E é certo que a simpatia da direita pela geringonça também nunca abundou. Existe uma possibilidade de António Costa ter entendido que teria melhor resultado admitindo entendimentos com a associação protetora de direitos dos animais que se constituiu como partido político e com o Livre (Rui Tavares saiu-se magnificamente nos debates, mostrou bem a sua preparação e, deve ser dito, foi o primeiro a defender publicamente uma convergência à esquerda) do que com esta esquerda. E reparem que o anúncio forte foi o da possibilidade de entendimento com o PAN, o do Livre foi mais discreto e não simultâneo.

Este último cenário entristece. Estará a maior parte do eleitorado português farto desta esquerda e das suas reivindicações? Sempre foi minoritária mas, depois da governação de Passos Coelho, era atrativa. As votações obtidas foram boas e o eleitorado socialista não se opunha ao entendimento. Claro que foi graças a esta esquerda que existiu um governo de esquerda, o melhor governo que conheci e também graças às suas exigências e contributos. Mas em política não há agradecimentos.

Faço parte de um grupo de pessoas que vivem a vida política de forma intensa. O grupo das pessoas que sofre e que delira com resultados eleitorais. Também é verdade que os respeito. E aqui um há detalhe que é novamente intrigante: Rui Rio apresenta a tranquilidade própria de quem convive bem com qualquer resultado eleitoral. Ele próprio já esclareceu o que fará se perder as eleições e parece evidente que não será o fim de nada, antes o princípio de uma fase política nova, nova como foi a que se seguiu às eleições de 2015. Teremos tempo, se for o caso, para pensar nela.

Também António Costa manifesta a tranquilidade de quem convive bem com qualquer resultado e pouca vontade de descer à cave dos grandes esforços para dar tudo por tudo para um entendimento mesmo que ele seja preciso.

Um dos dois será o próximo primeiro-ministro de Portugal. Têm-se apresentado extremamente calmos e diria até pouco combativos. Irritados, e até fraticidas, estamos nós todos.

Mas vamos ao osso: existe a possibilidade de estarmos num Portugal diferente do de 2015 (um Portugal que, mesmo assim, deu a vitória a Pedro Passos Coelho. Uma vitória que não lhe serviu de muito. O sistema permite o que foi feito. E bem). Parte dos portugueses pode ter-se fartado da geringonça de esquerda e pode mesmo acreditar que Bloco e PC são extrema-esquerda e que, se não fosse o entendimento de 2015, o Chega não teria crescido tanto.

Tem de se admitir esta hipótese e tem de se tirar conclusões sobre ela. Talvez António Costa não acredite que o anúncio da vontade de entendimento à esquerda beneficie o PS. Rui Rio certamente não acredita que não desmentir a possibilidade de um entendimento com o Chega (que aliás já fez nos Açores) o prejudique.

Ambos concluem que este é o estado a que chegou o eleitorado português. Não quero acreditar que tenham razão. Uma coisa é certa: ainda não houve eleições. Tudo pode acontecer no domingo e, deste tudo, o melhor para a esquerda será que ganhe, e no seu conjunto, e que António Costa seja o próximo primeiro-ministro. Acredito que será também o melhor para o país. Digo que esta direita (que traz consigo a Iniciativa Liberal, partido que é contra a existência de um salário mínimo nacional, e eventualmente o Chega) não é o melhor para ninguém ou será para poucos, alguns do costume.

O contributo que cada um pode dar, para que a noite de domingo não seja outro desgosto, vai para além do voto. A esquerda deve combater a direita – e tanto há para recordar das consequências da última governação de direita em Portugal – e não combater-se entre si. A guerra deve acabar.

O mais à esquerda a que conseguimos chegar, a melhor defesa das propostas fundamentais para os portugueses, será num entendimento com um governo socialista. Qualquer voto à esquerda tem a utilidade de contribuir para essa solução, são todos úteis. Os partidos já o disseram. António Costa ontem afirmou finalmente que chegou o tempo de dar força a quem ao longo da vida se dedicou a erguer pontes. Este foi o momento de viragem. O Partido Socialista precisa da esquerda e o contrário também é verdade. Não vai haver nenhuma maioria absoluta. A posição de isolamento do Partido Socialista apenas o tem desfavorecido.

No domingo vamos jogar snooker, um jogo que traduz a lógica atual de participar num sufrágio eleitoral. Uma pessoa chega lá e o que pretende é dar uma tacada seca e certeira – uma daquelas que produzem o “plock” do taco que acertou mesmo no centro da bola e com força. Reparem que neste jogo nunca se dá uma tacada na bola que queremos que entre no buraco. Bate-se na bola branca de forma a que essa bola bata no sítio certo da “bola objectivo” de forma a entrar lá dentro. Há aqui umas série de regras – matemáticas e da física – que se devem dominar para então se tentar jogar. Já as dominamos.

Já consentimos a normalização de desgraças a mais. Que não seja normalizado o nosso desentendimento. Ele não é uma luta política, é um atirar as culpas de fim de relação.

Esse passado trata-se em terapia.

O futuro trata-se em eleições.


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