Zé Albino com rabo de fora

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 24/01/2022)

Daniel Oliveira

Passeia-se pela campanha, sorri muito, faz piadas, põe o gato Zé Albino nas redes. Desapareceu o Rio com opiniões. Quer sossegar o país. A política fica para dia 31 de janeiro. Mas, por vezes, volta o Rio genuíno. “Tirando os julgamentos políticos, em termos de eficácia, desde o 25 de Abril a justiça piorou”. Fora perseguições políticas, acha que a justiça era mais eficaz contra a corrupção, que os pobres tinham mais acesso, que era mais independente. Ou a eficácia resume-se à rapidez, o que é assustador. Promete uma reforma da justiça exibindo falta de critérios democráticos para a avaliar.


“nazizinho” de Rosa Mota gerou grande indignação. Ela é justificada. O uso do termo é mais do que lamentável. É inaceitável. Nazi, em Portugal, só conheço alguns marginais. As palavras têm memória e todos, a começar por aqueles que como eu fazem dela o seu trabalho, devem valorizar essa memória.

Mas, e vou usar um “mas”, quem o disse foi Rosa Mota. Não torna aceitável, torna o que é: uma palavra terrivelmente escolhida por uma pessoa sem qualquer experiência ou responsabilidade política. A única coisa que fez disto assunto é ter acontecido numa ação de campanha do PS, o que não o responsabiliza, porque obviamente não sabiam o que ia ser dito numa conversa informal. Mas embaraça-o. Costa demarcou-se da expressão, que é tudo o que podia fazer.

Imaginando que Rosa Mota não acha que Rui Rio é comparável a Hitler ou aos que o admiram, só posso esforçar-me para acreditar que procurava uma palavra para falar de um autoritário. E é pena que o tenha dito de forma tão inaceitável, porque, em vez de alimentar a polémica do dia, poderia ter lançado um debate importante sobre o percurso político de Rui Rio até se tornar no simpático dono do gato Zé Albino.

Estou à vontade, porque o escrevi (sem link, por agora), no início de dezembro, quando Rio limpou as listas de deputados todos os que eram críticos: “Diz o povo que para ver um vilão temos de lhe pôr uma vara na mão. E é por isso que os prefiro desarmados, para não ter surpresas. Com Rui Rio nem precisamos de esperar por surpresas. Os jornalistas sabem como o presidente da Câmara do Porto lidava mal com o escrutínio. Os agentes culturais portuenses sabem que relação tinha com a liberdade criação e de crítica (e com a cultura, já agora). Rio sempre viu qualquer tipo de contestação como uma contrariedade pessoal insuportável. Mesmo a sua obsessão com a justiça, que até parte de alguns pressupostos anticorporativos que acompanho, resulta mais da sua dificuldade em lidar com aquilo a que Cavaco Silva chamou de ‘forças de bloqueio’ do que de qualquer tipo de exigência democrática. Apesar de todos os traços estarem lá, não foi quando o PSD quase lhe fugia das mãos que reconhecemos o que só o Porto conheceu bem em Rui Rio. (…) Foi quando todos perceberam que se gastou o último cartucho da guerra interna que Rio tratou de uma purga sem concessões que ultrapassa largamente julgamentos de lealdade.”

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A isto acrescento a recusa em participar nos debates para as eleições internas do PSD – que deu aquela coisa ridícula de entrevistas paralelas entremeadas. Ou o apoio ao fim dos debates quinzenais, que trata como “gritaria”. Ou o facto de, como André Ventura, ter faltado ao debate final, com o qual se tinha comprometido. Ou o acordo com o Chega nos Açores. Ou a escolha de Suzana Garcia para a Câmara da Amadora. Só ignora os sinais quem se quer mesmo iludir.

Os seus colegas de partido, que uns dias antes da derrota interna teriam organizado uma revolta com a recusa de Rio em garantir o pluralismo, comeram e quase calaram. E o que faz um autoritário reforçar o seu poder não é a sua vontade, é a ambição ou o medo dos que lhe obedecem. Neste caso, não há medo. Há muitos oportunistas. Tudo o que disseram sobre o homem, durante seis anos, desapareceu perante a mera possibilidade de ter poder.

Se o PS quisesse fazer um tempo de antena contra Rio só tinha de ir buscar o que foi dito por tantos dos que agora o acompanham em arruadas. E seguramente encontrariam o que salta à vista: que Rui Rio é um autoritário, alguém que vive mal com a critica e a oposição. Antes foi a interna, se tivesse o poder no país seria a externa. 

Só que Rui Rio não está a ser escrutinado. Foi, até com excessos de parcialidade, enquanto a direita, sobretudo a passista, achava que o podia remover. Deixou de ser quando foi o que lhe sobrou. E a extraordinária incompetência tática de António Costa, que perdeu semanas a olhar para os partidos à sua esquerda, fez o resto. Rio passeia-se pela campanha, sorri muito – nos debates, na rua, nas entrevistas –, faz piadas, põe o seu gato Zé Albino nas redes e não diz nem mais uma palavra sobre as suas propostas.

Diz-se que é genuíno. Assim sempre o achei. Mas nesta campanha desapareceu o Rio com opiniões. Ele quer sossegar o país. E fá-lo com um sorriso, umas piadas e fotos do seu gatinho. A política, com a influência que o programa radical da Iniciativa Liberal teria nela, fica para dia 31 de janeiro.

Só que por vezes Rio não aguenta. Como Ventura, quer criar sururu. E saem-lhe as frases que o denunciam: “Tirando os julgamentos políticos, em termos de eficácia, desde o 25 de Abril a justiça piorou”. Não se pode falar de um deslize. Rio disse isto em 2016 e outras vezes.

Não estão em causa várias das críticas que Rui Rio faz ao estado da justiça – apesar de não ter autoridade para falar de julgamentos na praça pública quando, nas legislativas (Tancos) e autárquicas (Selminho), participou neles contra pessoas que foram posteriormente absolvidas –, mas o termo de comparação que escolheu.

Pondo de lado as perseguições políticas, Rui Rio acha que a justiça era mais eficaz a contra a corrupção de pessoas queridas ao regime, que os pobres tinham mais acesso à justiça, que ela era mais independente. Ou então, a eficácia resume-se à rapidez. E isso é bastante assustador. Até ignora que os julgamentos na praça pública não aconteciam, de facto, porque havia censura. Um político achar que a justiça de uma ditadura (não lhe chamo fascismo, porque Rui Rio já nos garantiu que isso nunca existiu) pode ser “eficaz” é um péssimo cartão de visita.

Não mudei de opinião sobre a perseguição de que Rio foi vitima na comunicação social, assim como sublinho que o escrutínio a que subitamente deixou de estar sujeito quando foi o que sobrou ao PSD. Também não mudei de opinião sobre o desastre que seria, para o PSD, o regresso dos passistas à liderança do partido. Aparentemente, os militantes do PSD perceberam isso – que a adoração de Passos Coelho é coisa da bolha. Apenas não me esqueci do que sempre disse sobre Rui Rio: que tinha e tem um perfil autoritário. E que na altura de ir a votos isso é muitíssimo relevante. Já para não falar da ausência de proposta política, subsistida por uma conversa de café, eficaz, mas sem conteúdo.

Rosa Mota não vai ser primeira-ministra. Rui Rio quer sê-lo. Por isso, aplico uma adversativa a Rosa Mota que não pode existir com Rui Rio. Ela não resulta do conteúdo, mas da relevância de quem diz uma e outra coisa. Rui Rio quer governar-nos e promete uma reforma da justiça no mesmo momento em que nos exibe a falta de critérios democráticos para a avaliar. Se isto fosse uma bizarria do momento, passava. Mas vendo como sempre se relacionou com a imprensa livre ou o desprezo com que olha para os debates ou a instituição parlamentar, é um perfil. Estou a dizer que Rio é um ditador? Não. Cavaco Silva ou José Sócrates também não o foram. É um autoritário da cabeça aos pés. Como muito bem sabem todos os seus colegas de partido.

Tudo o que estou a dizer foi dito por aqueles que a ele se opuseram no partido. Agora, preferem calar-se. Não serão diferentes de todos os que sabiam quem era José Sócrates (não falo dos crimes de que é acusado, mas do seu perfil) e acharam que valia a pena não falar do assunto porque os levaria ao poder ou afastaria quem não gostam (ler Sebastião Bugalho). Se Rui Rio perder, voltarão a dizer o que diziam. Se ganhar, terão de engolir os princípios. E achar que, sim senhor, antes do 25 de abril é que a justiça era mais eficaz. 


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