Jornalismo político e kremlinologia

(Pacheco Pereira, in Público, 04/09/2021)

Pacheco Pereira

O jornalismo político português dificilmente se consegue livrar dos seus defeitos genéticos em democracia e, por isso, é pouco informativo e pouco analítico, muito opinativo e pouco rigoroso. Explico-me, repetindo o que já escrevi há muitos anos, o jornalismo português veio de 48 anos de censura, o que é um lastro perverso, que afectou mais de uma geração de jornalistas e os seus leitores. O único jornalismo que sobreviveu à censura, deixando de lado os propagandistas e funcionários da ditadura, era um jornalismo de esforço, de militância, e vontade de exercer a sua  profissão nas piores condições e com todos os riscos. Era também neste contexto um jornalismo de oposição, que usava os interstícios da censura para levar aos portugueses informação sobre o seu país tal como ele era – pobre, desigual, reprimido, envolvido numa guerra injusta e sem fim, isolado internacionalmente, com uma governação mesquinha, interesseira assente na violência e na mentira. No Diário de Lisboa, no Diário Popular, na Capital, no Expresso, na Vida Mundial, nalguns jornais locais, e, num ou noutro caso muito isolado, na rádio e quase nada na televisão, de vez em quando lá havia informação. 

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Não havia verdadeiro jornalismo político, porque não havia liberdade. Foi preciso recomeçar depois do 25 de Abril, à medida que os “velhos jornalistas” iam sendo marginalizados e substituídos por novas gerações. Sobre este vazio surgiram então duas escolas de jornalismo político, uma genética, a outra como reacção à primeira, uma a do “jornalismo dos cenários” de Marcelo Rebelo de Sousa/Expresso, e a outra a do “jornalismo inventivo” de Paulo Portas/Independentehttps://2e66237b3dec6fcc9bd1f58c201752c2.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

A primeira escola teve um efeito de superficialização da actividade política e introduziu um estilo especulativo em que, como não é escrutinado, o público não percebe como muito pouco acerta na realidade e como muitos dos “cenários” nunca se realizam. Basta ouvir uma entrevista e ver as perguntas para se perceber como são dominados pelos lugares-comuns dos cenários. A seguir, o efeito de rebanho faz alastrar as mesmas questões, o mesmo estilo. A segunda escola acaba por favorecer o subjectivismo, a pessoalização, as amizades e os ódios, aponta alvos socialmente definidos, os de cima escapam à crítica, os de baixo são ridicularizados, introduz muita snobeira e jactância num sentimento de superioridade face àquilo que pensam ser a vulgaridade da democracia e dos políticos. O engraçadismo é filho desta escola.

Gerações de jornalistas formaram-se nestas escolas que ainda hoje dominam e deformam o jornalismo político. Apesar do bater no peito pela “independência” dos jornalistas, cada uma destas escolas teve na sua origem um mentor político, com carreira que dura já há várias décadas, e serviam e servem objectivos não só da sua carreira, como dos grupos a que pertencem, mais grupos do que partidos, criando um jornalismo político intencional, muito pouco independente e, do ponto de vista informativo e analítico, muito pobre.

 Dito tudo isto, um exemplo típico do modo como o jornalismo político português actua, principalmente o tributário da escola dos “cenários”, foi a redução do congresso do PS a um drama de “sucessão” que, verdadeiramente, não existiu. Apesar de se perceber que a ideia de uma sucessão a curto prazo é propugnada pelo Presidente, como se vê na capa do Expresso com o “recado”, apesar de se saber que pelo menos Pedro Nuno Santos pretende ser sucessor, e de também se saber que António Costa não o deseja, e de poder haver várias pessoas que também o queiram ser, toda a informação relevante sobre o assunto cabe nesta frase. Como foi possível gastarem-se horas de rádio e televisão, milhares de palavras online e no papel, sobre um não-assunto, em Setembro de 2021? Aplicando aquilo que faziam os especialistas na URSS, quando não tinham qualquer informação sobre o que se passava: usando os critérios da kremlinologia. Isto significava ver a ordem pela qual os dirigentes estavam sentados, o seu lugar nas listas, em que ordem falavam, como eram saudados, etc.

António Costa, que é mais esperto do que muito do jornalismo político todo junto, deu-lhes kremlinologia para se entreterem e eles assim fizeram. E tudo o que é relevante na actual situação política, as questões “duras”, principalmente a estabilidade governativa num PS sem maioria, e o Orçamento como o vê o PCP ficam onde quem tem de as tratar deseja que estejam, atrás do biombo.  


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4 pensamentos sobre “Jornalismo político e kremlinologia

  1. Tem razão o Pacheco Pereira, o jornalismo português (não só político) é absolutamente de latrina, mas também convém reflectir no modo como cada um de nós contribui para o sustentar… Por outro lado, repare-se bem nas alminhas que fazem os jornais e a informação televisiva e pergunte-se se o jornalismo que fazem é por opção ou porque simplesmente não sabem fazer melhor. Por outras palavras, pode por exemplo um Miguel Sousa Tavares ou uma Clara Ferreira Alves escrever um “Memorial do Convento”?

  2. Como é que alguém pode falar de liberdade de imprensa se ele próprio é militante de um Partido que tem por objectivo retirar a liberdade às pessoas? Tivesse o PPD força e lá iam as reformas, os salários, os feriados e tudo por aí fora. Ainda não estou esquecido do que me roubaram e depois vêm falar em Liberdade?. Só se for a liberdade dos ricos. A propósito, já pagou a Quota? Eu já paguei a minha quota até final do ano mas ao Partido Comunista que é o único que me assegura a Liberdade e que está do meu lado. O resto é a burguesia mais o Marcelo e o seu jornalismo cenático ou lá o que lhe chamam ou o jornalismo inventivo de uma pessoa que se dizia irrevogável e se revelou ser afinal um troca-tintas de baixo teor e depois para terem graça falam em Kremlinologia como se isso não fizesse parte de um passado que já está morto.

  3. Passando por estilos próprios, Portas e Marcelo conseguiram os seus objectivos de conquista do poder. Não me sinto tranquilo com um destes ex jornalistas na presidência, a querer passar da apresentação de cenários à encenação. Felizmente há limites constitucionais e separação de poderes.

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