A única ditadura em Odemira é vivida pelos imigrantes

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 05/05/2021)

Daniel Oliveira

O pânico espalhou-se em Odemira. Não, não foi por causa da pandemia ou das vidas em risco. Não foi por causa das condições aviltantes em que vivem milhares de imigrantes. Custa a acreditar, mas foi por causa dos proprietários das casas do resort Zmar. Com base numa requisição temporária mal feita (porque não descriminava de forma clara o que estava a ser requisitado), mas que obviamente só iria ser aplicada ao que fosse gerido pelo empreendimento, espalhou-se a ideia absurda de que pessoas seriam temporariamente despejadas para dar lugar a migrantes em quarentena. Obviamente que ninguém acreditou realmente nisto, mas a incapacidade do governo explicar o que estava a fazer ajudou à confusão, que mais um bastonário ativista aproveitou de forma premeditada e nada inocente. A Zmar será apenas uma parte da solução para cem pessoas na parte não privada e gerida pelo empreendimento, de que o Estado é, já agora, o principal credor. É isto da “ditadura” no meio de uma pandemia.

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Também ninguém acredita que uma freguesia que vive uma cerca sanitária em maio será um destino turístico preferencial daqui a dois meses. Com o tempo ficou claro que a dramatização se prendia com a depreciação económica do resort e a possibilidade desta decisão afastar um possível investidor num projeto à beira da falência. Nunca foi a imaginada ocupação das casas de férias dos proprietários, como se percebe pela oposição depois do esclarecimento.

Posso compreender o sentimento dos proprietários com a possível depreciação do seu investimento ou a perplexidade perante uma comunicação desastrada, que já é apanágio do ministro Eduardo Cabrita. O tempo dirá se compreendo os métodos a que pretendem recorrer. Mas também compreendo que, em tempo de pandemia, o Estado tem de fazer escolhas que implicam injustiças que correspondem a prioridades. Não falta gente que foi brutalmente prejudicada por opções tomadas no último ano. Os donos de restaurantes, que vivem situações seguramente muito mais dramáticas do que os proprietários das casas de verão no Zmar, também sofreram as consequências da prioridade à saúde pública. Já para não falar de todos os que perderam o emprego.

O que me espanta não é a irritação dos proprietários nem o aproveitamento viral de pessoas que acordam todos os dias numa ditadura por não fazerem a mínima ideia do que signifique tal palavra. O que me espanta é a centralidade que o problema ganhou durante dias em comparação com o verdadeiro drama que estava a acontecer ao lado.

A explosão de posições públicas por causa da Zmar esbarra com o silêncio de anos perante o que está na origem do problema: a vergonhosa exploração de seres humanos sem lhes seja garantido o mínimo de direitos em troca do trabalho que contribui para a nossa economia. Não falem só do Estado. A dignidades daquelas pessoas só foi vista como um problema quando pôs em perigo a nossa saúde. Pelas autoridades e pelo conjunto da sociedade.

António Costa veio lamentar as condições inacreditáveis em que vivem estas pessoas. Onde estava Costa quando, a 24 de outubro de 2019, uma resolução do Conselho de Ministros veio legalizar, durante dez anos, a instalação de contentores no perímetro de rega de Mira, pondo tudo – a economia e o ambiente – à frente do direito a uma habitação condigna e tratando estes trabalhadores migrantes como material que se armazena? E durante todo o tempo em que nada foi feito pelo Estado para que estes migrantes encontrassem uma situação digna em troca do que dão ao país?

Sei onde estava Helena Roseta, que denunciou, como de costume, este abuso. Ou o Bloco de Esquerda, partido geralmente parodiado por apoiar as minorias mas esquecido quando alguém descobre as condições em que elas vivem (ficam as minhas desculpas se tiver esquecido alguma organização política, mas foi o que encontrei nos arquivos).

A Associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos Concelhos de Odemira e Aljezur revoltou-se contra a cerca sanitária. Onde estiveram este tempo todo, enquanto os seus associados não garantiam as condições mais elementares para os seus trabalhadores? Onde estiveram quando recorriam a imigração não legalizada que garante mão de obra mais barata e pactuavam com a ilegalidade? O que disseram perante as acusações de escravatura e tráfico de seres humanos? Onde estiveram quando, já em pandemia, a bomba relógio continuou ali pousada? O Estado e a lei só lhes interessa quando ficam a perder?

O bastonário da Ordem dos Advogados, que já como presidente de uma associação de senhorios e proprietários costumava ver a sombra do gonçalvismo em cada esquina, solicitou a intervenção da Comissão de Direitos Humanos da Ordem por causa dos proprietários do resort da Zmar. Com milhares de imigrantes amontoados, em condições inumanas, no meio de uma pandemia, a prioridade deste senhor está no resort. Só pode ser humor negro. Perante a sua indignação seletiva (quantas vezes vimos o bastonário envolver-se em casos de despejos ou abusos do Estado sobre pessoas mais pobres?), um grupo de advogados mostrou a sua indignação mais abrangente.

Não há comparação entre os valores que estão em conflito. A Ordem dos Advogados, a associação dos produtores e os órgãos de comunicação sabem-no perfeitamente. A razão para esta inversão de prioridades, inversamente proporcional à gravidade das situações e à relevância dos valores em causa, é estar instalado o sentimento calado de que aquelas vidas só servem para oferecer força de trabalho barata e garantir a nossa prosperidade. E é por isso que, em 2019, o governo decidiu tratá-las na lei como meros instrumentos de trabalho que podem ser armazenados em contentores.

Aquelas vidas não são agenciadas pelo governo (nunca os poderiam pagar), pelos advogados que Menezes Leitão realmente representa ou por alguma associação com acesso ao espaço mediático. São restos da humanidade, mão de obra para a nossa prosperidade. Para eles, os direitos humanos não existem e a democracia não conta. A tal ditadura de que estupidamente se queixam alguns privilegiados é o seu quotidiano.


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17 pensamentos sobre “A única ditadura em Odemira é vivida pelos imigrantes

  1. Como sempre uma no cravo outra na ferradura. Dá razão ao governo por um lado, mas critica os contentores, apesar de terem melhores condições que os apartamentos do Zmar, uma vez que têm ar condicionado. De acordo com a ligeireza que o BE costuma tratar os problemas como se os cofres estivessem sempre cheios, seria da mais elementar justiça na sua óptica, o Governo já ter construído 20000 casas para alojar os imigrantes.

  2. Meu caro cuidado com a cegueira ,pq um olho seu ,é vesgo e corre o risco de cegar ,pq só vê o que lhe convém…..e os imigrantes provocam-lhe “urticária” e é assim que mostra a sua VOX, mas creia ela si muove …….vergonha ……

  3. Nota. Então os velhinhos ó d’A Estátua, nomeadamente a senhora mãe do António Costa, o Daniel Oliveira e os outros desmiolados, os pornográficos defensores deste governo de m. parido pelo PS, os lambedores de tomates profissionais da blogosfera, nada, nem uma vírgula, não sentem medo, não têm a comentar, não lhes passou ao de leve pela cabeça, que aquilo que o desnorteado ministro Eduardo Cabrita fez hoje de madrugada em Odemira entrou ao pontapé no imaginário democrático dos portugueses como algo que só uma polícia política em ditadura seria capaz de fazer? Eu faço-vos um desenho: uma acção militarizada ordenada para as três da manhã, que mobilizou um dois ou três pelotões da GNR com cães, arrombamento por um carro (?) da bófia de um portão secundário do ZMar com manobra de diversão sobre o principal, para “instalar” à força umas dezenas de migrantes que tinham sido despertados sem aviso prévio depois da meia-noite, tudo isto e o mais que se vier a noticiar, tornam a partir de hoje as reunioes do conselho de ministros um ENCONTRO DE BANDIDOS.

    Demissões, inquéritos, tudo isto é impossível de acontecer sem que se retirem consequencias!!!

    • Acrescento mais pormenores: aparentemente foram 40 os operacionais do Corpo de Intervenção da GNR, armados forteolmente, que foram deslocados para Odemira, num dos grupos errantes cercados pela polícia que se deslocaram a pé pelas ruas da vila de Odemira vêem-se crianças e mulheres, este grupo foi alojado ns pousada da Juventude. E não haveria à sua espera nem água nem comida, disseram na reportagem da RTP! Sobre o ZMar: famílias inteiras deslocadas, não lhes terá sido dito para onde iam quando os a acordaram, migrantes obviamente assustados. Moradores permanentes, para além da dezena que permaneceu junto ao portão principal, foram acordados durante a madrugada pelo barulho da polícia enquanto os “bungalows” eram ocupados. Disse antes que o Eduardo Cabrita era desnorteado mas permito-me clarificar: é um gajo perigoso sem capacidade para medir as proporções, tem de ser demitido.

      • […]

        «Não sei se o governo poderia ter agido melhor, é possível. Mas agiu corretamente.

        A lei permite medidas excepcionais em circunstâncias excepcionais.», porra!

        Adenda. Ó d’A Estátua; atura-o tu que é para isso que tens o dom digno de um verdadeiro discípulo do padre Cruz, dono de uma misericordiosa paciência, e explica por aqui ao fascista em palavras simples que o Supremo Tribunal Administrativo deu hoje razão ao advogado de mais de uma centena de proprietários do ZMar que tinha apresentado uma providência cautelar contra os termos em que o Eduardo Cabrita fez a requisição civil. Ou seja, compreender isto é meridianamente claro, o governo do PS fez de facto o que a lei… não lhe permitia, ponto. O resto, e a esta hora da tarde, são larachas e bolas atiradas para o pinhal sobre os milhares de migrantes explorados nos empreendimentos agrícolas dependentes do Perimetro de Rega do Rio Mira localizados abusivamente em pleno Parque Natural do Litoral Alentejano (estas são outras questões, se calhar mais importantes, em que uma grande parte DESTE GOVERNO nomeadamente o ministo do Ambiente-com-o-seu-ar-de-pintas-mafioso está completamente atolado em merda até ao pescoço) Aliás, é assim que se traça uma personalidade política que cabe perfeiramente naquele ENCONTRO DE BANDIDOS em que está transformado o Conselho de Ministros como eu artisticamente o defini: pura e simplesmente desapareceu, o cobardolas.

        • Caro RFC.

          Eu estou do lado dos trabalhadores imigrantes de outras raças, contra os interesses das negociatas de especuladores imobiliários.

          Quem está a defender os interesses de capitalistas branquinhos como a neve és tu.

          Fascista é a puta que te pariu.

          • Nota. E moderar quem ou o quê, exactamente? A partir de hoje faço um favor: dá mais trabalho mas corrijo, para o destrinçar do tipo da sopa de balBruegas, pois este é um burro-fascista composto, ou, se vier no sentido contrário, fascista-burro. E ensina-lhe o aeiou pro bono, em vez de estares a curtir as bonecas.

            • Caro RFC.

              Eu sou fascista por defender que numa situação de emergência os imigrantes paquistaneses possam ser temporariamente alojados nos imóveis fechados dos teus amigos capitalistas ?

              Como eu disse, fascista é a puta que te pariu.

          • Telegrama.

            Epá, ó d’A Estátua deixa-te de galar as bonecas do Instagram e escreve isto que eu te vou ditar:
            O caríssimo RFC, Amigo Ilustre do João Miguel Tavares, e meus amiguinhos comuns, está a dizer-te que és um fascista-burro, ou um burro-fascista, porque nos teus comentários demonstras à so- e à saciedade, que és BURRO QUE NEM UMA PORTA! Além de que, e até isto não sabias, ontem era o Dia Internacional do Burro…

            Manda sempre!

            Assinado: Arthur

            _____

            Adenda. Obrigado, Arthur. Pergunto se alguém tem o número de telefone do João Manzarra, pode ser necessário (não se faz surf na Zambujeira, curtem-se as vagas de Peniche qu’o importante é bombar)…

            🙂

  4. “Moradores permanentes, para além da dezena que permaneceu junto ao portão principal, foram acordados durante a madrugada pelo barulho da polícia”
    De facto só em horríveis ditaduras é que acordam pessoas durante a madrugada. Ditadores nem o sono alheio respeitam.

    • Nota. Freitas, dois conselhos: não sejas ridículo; e, não sendo ridículo, sentir-te-ás menos atraído pelas ridículas figuras que são o Eduardo Cabrita e a Marianinha Vieira da Silva que, para não destoar dos seus mestres, está quase graduada na arte da Mentira. O estar a salvo de ver o seu domicilio invadido por forças policiais, durante a madrugada, é im direito que ficou consagrado na Constituição. E foi-o, exactamente, devido ao modus operandi da PIDE durante o Estado Novo. Que tu, os socialistas de merda que formam este governo do PS, os velhinhos da blogosfera que, desconfio sinceramente, de experiência vivida guardam poucas, ou nenhumas?, memórias…, que, a esta gente, nada os preocupe sobre os contornos de uma invasão da propriedade alheia efectuada pelo Corpo de Intervenção da GNR às três/quatro da manhã diz o suficiente sobre o que tens nos miolos. Que tenhas passado um ano em estado de emergência, com limitação de direitos constitucionais, e tenhas tido como MAI um alucinado ministro chamado Eduardo Cabrita seria motivo mais do que suficiente para que um dirigente, um ministro, um deputado que fosse!, alguém do PS, elevasse a sua voz e dissesse que o Costismo vai nu.

      #shameonyou

  5. Apenas quero dizer: ACORDA PORTUGAL SERÁS GRANDE QUANTO QUISERES , deste a conhecer novos mundos ao mundoSou pacifista, sempre fui e sempre serei com quase 69 anos

    • Sou o critico mais feroz do dani, principalmente em questões de racismo e imigração, que o considero um teórico da conspiração quando inventa perseguições racistas inexistentes o que apenas atiça ao ódio racista em Portugal.

      Mas quando tem razão tem e neste texto está 100% correto.

      Como tal e como não poderia descrever a situação melhor do que ele o fez, faço minhas as palavras do dani.

      “A explosão de posições públicas por causa da Zmar esbarra com o silêncio de anos perante o que está na origem do problema: a vergonhosa exploração de seres humanos sem lhes seja garantido o mínimo de direitos em troca do trabalho que contribui para a nossa economia. Não falem só do Estado. A dignidades daquelas pessoas só foi vista como um problema quando pôs em perigo a nossa saúde. Pelas autoridades e pelo conjunto da sociedade.”

    • Caro Patricio.

      Se é pacifista, informo-o que Portugal deu novos mundos ao mundo, não só mas também pirateando, saqueando e conquistando militarmente parte deles à medida que os ia descobrindo.

  6. Não sei se o governo poderia ter agido melhor, é possível. Mas agiu corretamente.

    A lei permite medidas excepcionais em circunstâncias excepcionais.

    Era necessário alojar aqueles imigrantes em condições seguras.

    Havendo no local habitações de turismo vazias e sem qualquer hipótese de serem ocupadas nos tempos mais próximos devido à pandemia é lógico e justo que o governo tivesse alojado lá essas pessoas.

    Seria desprezível alojar essas pessoas em tendas de campanha quando existem “bungalós” vazios ao lado.

    Já basta a forma como esses imigrantes foram até agora tratados em Portugal, continuar a fazer o mesmo seria criminoso.

    Agora é que o estado está a cumprir as suas OBRIGAÇÕES para com aqueles imigrantes.

  7. O resort Zmar está FALIDO e cheio de dívidas ao estado que praticamente já é dono daquilo.

    Além disso tudo aquilo cheira a esturro e a ilegalidade, são construções em reservas agrícolas e naturais, são pessoas a viver em casas licenciadas para habitação turística temporária, todo o empreendimento cheira à aldrabice e corrupção do costume.

    Não está a ser tirado nada a ninguém, não passa de uma medida de emergência provisória e os imigrantes foram alojados em casas de turismo que não estavam a ser usadas.

    Este choro convulsivo pelos interesses capitalistas mais duvidosos numa situação em que é preciso alojar TEMPORARIAMENTE pessoas em risco é um NOJO.

    Ainda mais nojento para quem, na esquerda, está sempre a caluniar o povo Português a inventar falsas perseguições racistas.

    Mas depois em casos concretos de defesa dos interesses EFECTIVOS dos imigrantes de cor pôe-se do lado da “liberdade” do capital contra os imigrantes.

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