(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/10/2020)

Santos Silva, que não dá um passo sem se coordenar com o primeiro-ministro, tornou explícito o apoio a Marcelo. E insinuou que Ana Gomes, que foi candidata do PS a inúmeros cargos, é uma “extremista”. Na exigência de reserva aos ministros, o objetivo de Costa nunca foi amarrar o Governo a qualquer neutralidade, foi impedir que quem não tem a opinião do primeiro-ministro a contrariasse.
Há uns tempos, António Costa fez uma declaração extraordinária: “Os membros do Governo devem ter em relação às presidenciais um particular dever de reserva, tendo em conta a relação com o próximo Presidente da República, com quem teremos de conviver muito tempo”. A frase foi dita depois de Pedro Nuno Santos, que Costa não desejaria ter como sucessor mas que é o que mais apoios soma neste momento, ter afirmado que se não houvesse um candidato da área do PS votaria noutro de esquerda. Pois bem, há uma candidata da área do PS.
Este recado de Costa foi triplamente extraordinário.
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Extraordinário porque reescreve a História. Nela, podemos ver como o PS apoiou Manuel Alegre contra a reeleição de Cavaco Silva, quando estava no governo, em 2011. E isso não tem mal nenhum. Cooperação institucional não é o mesmo que cooperação eleitoral. Mal seria que o partido que está no governo não pudesse apoiar um candidato diferente do que está na Presidência. O raciocínio até é contrário ao espírito constitucional do nosso sistema semipresidencial bastante mitigado.
Extraordinário porque transforma os membros do governo em meros prolongamentos do primeiro-ministro, mesmo na atividade política e partidária que ao governo não diz respeito. Dá a António Costa o poder de silenciar todos os militantes do PS que estejam no Executivo. Mas os ministros só têm dever de reserva em questões que fazem parte da atividade do governo. Não ficaram, enquanto militantes e dirigentes de um partido, limitados nos seus direitos. E muito menos estão impedidos de discordar da opinião pessoal (não foi decidida em nenhum órgão partidário) do seu líder. O Governo não é uma ala do partido.
Extraordinário porque é uma posição sonsa. Este apelo veio depois do próprio António Costa ter feito o número que se conhece em frente à Autoeuropa e que correspondeu a um apoio quase explícito à candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa. Já escrevi sobre o erro histórico a que corresponde este gesto, que atira parte da direita democrática que se opõe a Costa para os braços de André Ventura, deslocaria o centro do debate para a direita e deixaria parte do eleitorado socialista órfão. Mas o que está em causa é, depois de impor o apoio informal a um candidato fazer de forma desastrada, à margem do partido e não correspondendo a nenhuma estratégia coletiva, tentar silenciar qualquer outra posição.
As declarações de Augusto Santos Silva, que não dá um passo sem se coordenar com o primeiro-ministro, ajudam a aclarar as coisas: “Se Ana Gomes é uma boa candidata? Na minha opinião, sim. Se Ana Gomes é uma boa candidata para ter o apoio do PS? Na minha opinião, não”. Isto, por si só, não seria um problema. As pessoas podem ser boas candidatas para uma coisa e não para outras. O que é grave é o critério que o ministro dos Negócios Estrangeiros insinuou para excluir Ana Gomes: “Na minha opinião não devemos combater extremismos com outros extremismos, polarizações com outras polarizações. Gostaria que o combate contra os extremismos fosse feito pelo grande arco daqueles que são moderados”. A isto, Pedro Nuno Santos respondeu com duas críticas de natureza diferente. Uma política, outra processual.
A política: “As pessoas não servem para o PS para fazerem umas coisas de vez em quando, para serem candidatas, para serem eurodeputadas, para serem candidatas à câmara municipal, para serem membros do secretariado nacional e depois de um momento para o outro passarem a ser vilipendiadas porque não lhes dá jeito.” E tem razão. Santos Silva insinua (que é ainda pior do que o dizer claramente) que aquela que o seu partido apresentou como candidata a inúmeros cargos é uma “extremista”. Apesar de o ter representado, sem qualquer oposição do próprio Santos Silva, até agora. Além de incoerente, é uma declaração insultuosa para uma camarada de partido.
A questão processual é ainda mais relevante. Diz Pedro Nuno Santos: “Quem decide quem o PS apoia são os órgãos do partido. Ponto. Não é o Governo, não é nenhum membro do Governo, é mesmo o Partido Socialista que decide quem apoia e quem deixa de apoiar.” Na sua entrevista à TVI, Santos Silva expressa de forma inequívoca o apoio a Marcelo Rebelo de Sousa. E isto quer dizer que decidiu, a poucos dias do Conselho Nacional do PS, e sendo membro do Governo, antecipar-se à decisão dos órgãos do PS no apoio a um candidato específico. Sabendo-se a sua enorme proximidade a Costa, fica claro que, na exigência de reserva aos ministros, o objetivo nunca foi amarrar o Governo a qualquer neutralidade, foi impedir que quem não tem a estratégia do primeiro-ministro a contrariasse. O que, não estando em causa um assunto do Governo, é revelador de uma cultura, digamos, cavaquista.
Haverá militantes do PS na candidatura de Ana Gomes, que também ela é militante do PS e concorre contra o candidato da direita democrática e conservadora. A sua candidatura é o lugar natural de muitos socialistas, sejam quais forem os cálculos táticos do primeiro-ministro. E a não ser que o PS decida apoiar formalmente Marcelo, só pode ser pacífico que lá estejam. O que inclui ministros, que respondem ao primeiro-ministro no exercício de funções executivas, não no exercício da sua militância. E é importante para a democracia manter as coisas separadas.
Nota. Daniel Oliveira, …?
02.10.20, eu.
Discordo daquilo que me parece o essencial, daqui a pouco comento o que (não) diz o Paulo Pedroso
02.10.20, eu.
Adenda.
Ia eu a dizer o seguinte: quando se começaram a revelar no Expresso os ficheiros do Luanda Leaks, que expunham a forma como o casal entre a princesa Isabel dos Santos e o Sindika Dokolo foram construindo o seu império empresarial, nomeadamente as suas crescentes ramificações em Portugal durante o longo consulado do JES em Angola através da aquisição posições estratégicas na Galp em parceria com os Amorim, Efacec, parceria com a Sonae, Millennium e BIC, construído em cima do cadáver do BPN e que serviu de lavandaria durante anos a fio para ela e para as elites e generais do MPLA, o facto só veio confirmar aquilo de que se sabia.
Suspeitou-se, acertadamente, que uma personagem como o Rui Pinto estava, mais uma vez, por detrás da pirataria que levou à infiltração das bases de dados (do casal, dos escritórios de advogados portugueses, da Sonangol, eu sei lá). E nesse momento tornou-se claro, para mim, que uma vaga de fundo que se sentia no ar no sentido de a Ana Gomes avançar com uma candidatura independente perdera simplesmente a… putativa candidata Ana Gomes.
E tem que ver com o seu perfil: durante anos exerceu a actividade política na sombra da actividade do Rui Pinto então em fuga.
Estou sem bateria, já concluo.
02.10.20
Adenda da adenda.
Não por acaso, o Luís Pedro Nunes ontem à noite, na SIC N e no mediocre Eixo do Mal, conseguiu deixar boquiabertos o Daniel Oliveira (um pormenor: mesmo face à proeza do túnel do Metropolitano espatifado pela augusta pessoa do Fernando Medina com as suas obras de fachada, o moço não perdeu a oportunidade de lhe dar uma lambidela em directo e daquelas, porno!), o gordinho desmiolado, com a aquiescência da outra escritora, SIC, bacana, SIC, com o mantra de que a Ana Gomes, por amar perdidamente e jurar pela virgindade do Rui Pinto antigamente, representaria exactamente o contrário do Estado de Direito com que se auto-define enquanto candidata…
Concordo com o mantra mas discordo sobre a reflexão para chegar lá, como meridianamente se percebe.
Ora, o que o Paulo Pedroso não se importa de dizer ao Observador e exuberantemente o demonstra é que, dentro dos mecanismos e dos limites que os órgãos democráticos do Estado de Direito dispõem (e ainda que, em face do que interessa no momento dizer, é que só estes, sublinhado!, têm à partida legitimidade, patine e gravitas, acrescentaria eu) para eliminar, SIC, a sempiterna e familiar corrupção em Portugal.
Errado, falso, a sombra que paira sobre a Ana Gomes não lhe confere este histórico como já disse. Aliás, e para resumir, o mesmo raciocínio poderá ser acrescentado sempre que o Paulo Pedroso se referir à anunciada candidatura: há sempre um mas, mas isto e mas aquilo, perante o qual a socialista Ana Gomes não o perfil que ele diz existir para além das suas lentes ou das suas lunetas.
Nota. Sobre a diabolização das fugas de informação, a coisa é tão excêntrica face aos casos concretos que conhecemos mais recentemente em Portugal, que já dei para esse peditório por alturas do processo da Casa Pia exactamente. Em última análise consiste sempre, o dito, em apontar o dedo, condicionar e condenar à fogueira, doentiamente, alguns jornalistas inoportunos bem identificados da imprensa popular por se limitarem a fazer o seu trabalho, como se vê nos lugares do estilo aliás.
No fundamental é.
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Nota. No Ouriq, a entrevista do Paulo Pedroso está no Observador.