Tudo aquilo em que acreditávamos

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 08/02/2020)

Miguel Sousa Tavares

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Imagine que o primeiro-ministro de Portugal está a um ano de ter de enfrentar eleições legislativas e está preocupado com o resultado e a sua eventual não recondução. Imagine então que ele tem conhecimento de que o principal candidato ao seu lugar, o líder da oposição, no exercício da sua actividade profissional privada, tem negócios, digamos, com Moçambique. E que, entretanto, a Assembleia da República votou, no âmbito do Orçamento do Estado e por unanimidade, uma ajuda do Estado português ao Estado moçambicano, considerada urgente por razões de segurança interna deste. Agora imagine que o PM português, a quem compete libertar a verba aprovada pela AR, dá instruções ao embaixador de Portugal no Maputo para fazer saber oficiosamente às autoridades moçambicanas que só libertará o dinheiro se estas anunciarem publicamente que abriram uma investigação criminal ao dirigente da oposição portuguesa por suspeitas de prácticas de corrupção nas suas actividades empresariais em Moçambique. E que, perante o que entende ser a resistência do embaixador em passar o recado, o demite e substitui por outro, com o mesmo encargo. E que, mesmo assim, não conseguindo convencer o Governo moçambicano, lhe envia o seu advogado pessoal, com idêntica missão e numa forma de diplomacia paralela, à revelia dos Negócios Estrangeiros. E que, finalmente, já em desespero de causa, telefona pessoalmente ao Presidente moçambicano e põe as cartas na mesa: se ele quer, conforme lhe convém por razões internas, ser convidado para uma visita oficial a Portugal e receber a verba aprovada pela AR, tem de anunciar oficialmente a abertura de uma investigação criminal contra o líder da oposição portuguesa. Ela por ela.

Foi isto exactamente, passo por passo, o que fez Donald Trump com a Ucrânia e com o que era então o seu principal adversário democrata à eleição presidencial de Novembro próximo, Joe Bidden. Foi isto que conduziu ao terceiro processo de impeachment de um Presidente na história dos Estados Unidos, com fundamento em duas acusações: abuso de poder e depois, quando Trump assinou uma directiva proibindo todos os funcionários da Administração de testemunharem no processo, também de obstrução à justiça. Na primeira fase do processo, que decorreu na Câmara dos Representantes, de maioria democrata, os factos relativos ao abuso de poder — a chantagem sobre a Ucrânia — ficaram demonstrados acima de qualquer dúvida, em grande parte graças ao comportamento exemplar de testemunhas nomeadas para os seus cargos pelo próprio Trump: o embaixador substituto dos EUA na Ucrânia e o embaixador na União Europeia. Na segunda fase, que teve lugar no Senado, de maioria republicana, aconteceu o que se sabia desde o início: apenas um entre 54 senadores republicanos (dos 67 necessários) votou pela destituição do Presidente. Todos sabendo que ele era culpado das acusações; todos tendo por ele um indisfarçável desprezo; e todos conscientes de que votar contra um Presidente em alta em todas as sondagens era um suicídio político nas respectivas carreiras. Por todos, o senador Rand Paul resumiu o dilema: não tinha dúvidas de que o comportamento de Trump não era aceitável, mas competia aos eleitores julgá-lo nas urnas e não aos senadores no Congresso. Houve ainda quem fosse mais além e declarasse que destituir um Presidente tão popular como Trump era um acto antidemocrático, pois violava a vontade de uma maioria de americanos. Ou seja: conscientemente, o Congresso abdicava voluntariamente de uma das suas principais funções constitucionais, qual seja a de vigiar a legalidade dos actos do poder executivo. Desde que a actuação genérica de um Presidente tenha a aprovação circunstancial de uma maioria do povo, o que quer que ele faça, mesmo que contrarie a lei e a Constituição, está salvaguardado por essa aprovação. Adeus sistema de poderes e contrapoderes.

Pior do que isso, os mesmos senadores republicanos que há anos conduziram até final um processo de impeachment contra o Presidente democrata Bill Clinton, acusado de ter mentido sobre um facto que dizia estritamente respeito à sua vida privada — se tinha ou não mantido relações sexuais com Miss Monica Lewinsky —, agora, num caso que envolvia a segurança e a política externa dos EUA e o cumprimento de uma decisão do próprio Congresso, recusaram-se a ouvir testemunhas do Governo de Trump, porque sabiam que estas iriam corroborar uma verdade que não queriam ver mais esmiuçada. Julgaram assim contra a verdade que conheciam, contra as suas consciências, contra a vergonha pública, contra os fundamentos da democracia americana, contra o melhor da sua história e contra si mesmos, no futuro. Tudo para manterem os cargos que hoje têm. E ainda se sujeitaram a ter de ouvir, sem um estremecimento de terror, um dos advogados de Donald Trump defender perante o Congresso a tese jurídica de que é lícito tudo o que um Presidente fizer desde que ele considere que isso tem um interesse público, mesmo que o seu único fim seja o de favorecer os seus objectivos eleitorais. Adeus founding fathers, adeus democracia americana. The times they are a’changing.

A lição que agora recebemos de Washington é que a democracia deixou de ser aquilo que nos ensinaram desde pequeninos. A começar pelas boas maneiras e pela educação. A democracia já não é o governo dos melhores, dos mais bem preparados, dos que sabem escutar e aprender com as razões dos outros, dos que respeitam as leis fundamentais e sabem que elas têm de durar para lá de cada eleição, dos que amam o seu país mas também respeitam os outros, dos que não mandam os seus soldados morrer pela pátria para ganhar votos e satisfazer traumas pessoais.

A democracia agora é o governo da vontade popular instantânea, manipulada na sombra pelo Facebook, a Google e a Cambridge Analytica. Pelos novos Rasputines dos grandes do mundo, os Steve Bannon ou Dominic Cummings, gente que decide o futuro de milhões de zombies ou de inocentes, sem nunca se mostrarem à luz do dia, Mahdis habitando um território de trevas de onde desenterram os mais sinistros fantasmas da história apenas pelo prazer de brincarem aos grandes manipuladores, aos novos arquitectos da política, encarregues de destruir os alicerces de paz, de prosperidade e de vida política com regras de decência que levou decénios a erguer.

Não temos resposta para a ofensiva concertada deste Exército de sombras, desta nova Falange Negra. Estamos desarmados perante os seus métodos e a sua absoluta falta de escrúpulos, de educação e de respeito pela verdade — que, por princípio, nos recusamos a reproduzir e a adoptar como método de autodefesa. Estamos desarmados perante a inconsciência, a cobardia, a cumplicidade de tantos que deveriam estar na primeira linha de defesa da democracia em que foram criados e que juraram representar. E assistimos passivos ao interesse público ser roubado todos os dias — pela corrupção, pelo tráfico de influências, pelas privatizações, pelos negócios entre o Estado e os privados, pelas offshores e os Estados-lavandaria, que todos condenam de boca e cujos dirigentes todos os anos convidam para Davos. Acreditamos na Europa, mas não somos capazes de ter uma política comum sobre a imigração, sobre a defesa e segurança, sobre a coesão, sobre a taxação das grandes multinacionais que nos roubam e ainda espiam e manipulam todos os dias. Juramos defender o ambiente, mas na verdade ninguém dá o primeiro passo se não lhe pagarem muito bem para isso, porque uma verdadeira política de ambiente custa dinheiro e postos de trabalho e todos têm presente o sucesso da política ambiental predadora de Trump, que tanta popularidade lhe vale.

Perdi noites, estupidamente, a acompanhar o processo de impea­chment no Congresso dos Estados Unidos. Nem sei bem de que estava à espera, talvez de um milagre, talvez só de poder contar um dia mais tarde que assisti ao momento histórico em que uma das maiores e mais sólidas democracias do mundo tinha iniciado um processo de degradação, se não irreversível, pelo menos marcante. Ao seguir tudo aquilo, pensei que a “America first” de Trump é, de facto, a “America only” — como se estivesse sozinha no mundo, rasgando todos os tratados e acordos, indiferente a tudo o resto, podendo desprezar tudo e todos os que não lhe interessam ou não sirvam os seus interesses. E isso só está ao alcance de um país que é, em tudo o que significa poder, o mais poderoso do mundo. Mas havia outra coisa que os Estados Unidos, com todos os seus defeitos e virtudes, representavam para milhões de cidadãos do mundo: um exemplo de democracia. Dir-me-ão que continuam a sê-lo, pois que tudo aquilo que vi, tudo aquilo que Trump representa é a vontade do povo americano. É verdade, e é isso que é trágico. Mas podia ao menos ter visto uma coisa que não vi (e, se calhar, era disso que estava à espera): um esboço de escrúpulos ou de vergonha na cara dos senadores republicanos.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


9 pensamentos sobre “Tudo aquilo em que acreditávamos

  1. (…) Mas, senhor Miguel, surpreendido porquê??? Os USA ( a sua Democracia) que tantos exaltam, apenas, e digo apenas, porque o sufrágio existe, sempre foi ao longo da sua História, e da relação com os outros o culto praticado dos piores sentimentos que oprimem (outras nações) e impedem a harmonia, a paz e o progresso no Mundo. Qual é a surpresa??? América Only há muito tempo. Numa breve revisitação da História recente dos conflitos regionais os Usa, constatamos, são os manipuladores para a sua eclosão e os utilizadores finais da desgraça desses povos. Aquela país e a sua filosofia imperialista, impõe-se ao Mundo pela medo da sua força bélica. Jamais pelo exemplo enquanto Estado e Nação. Aprimoraram, com este momento, o chiqueiro que politica e eticamente já eram ao nível da corrupção, da tráfico de influências e da prepotência endinheirada. São o modelo para Brasil que conhecemos hoje, tecnologicamente mais evoluído e militarmente muito superior. Mas tb uma aberração política,com muita propaganda que insiste a iludir-nos de que ali existe, e funciona, uma Democracia.

    Espantar-se com o desfecho deste impeachment porquê ???

  2. > A democracia agora é o governo da vontade popular instantânea

    Estava a descrever tão bem a situação, com menos um pormenor ou outro, e zás, esbarrou ao zigzaguear de assunto como habitual: se fosse por vontade popular instantânea, o processo tinha sido muito diferente.
    Mas o America First não tem nada de novo, como também não é o único país a dar-se melhor a ser nacionalista (a Sra Merkel explica); o problema é ser America Only, que, bom, também não é a primeira vez, mas tinham propagandistas melhores.

    > um esboço de escrúpulos ou de vergonha na cara dos senadores republicanos.

    Hahahahahahahaha. A seguir vai achar que o comité Democrata tem vergonha do caucus de Iowa… Hahahaha.

  3. «Juramos defender o ambiente, mas na verdade…» Ninguém diz O Rei Vai Nú.
    O Ambiente que interessa à ANA, é espremer o movimento aéreo, mesmo que na Área Metropolitana de Lisboa,
    venha a ficar garantido o buraco negro que é hoje o Aeroporto de Lisboa…Outro, by Montijo beach, até com estudos ambientais a concertar entre a ANA e o ministro delegado por Costa.
    Como eles se entendem tão bem.

  4. Sr. Miguel, continue a ser o jornalista independente que é. Bem haja por ter escrito este artigo, que descobre as sombras que diminuem as democracias e q ue as irao destruir, senao forem paradas a tempo.

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