(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso, 18/01/2020)

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Isabel dos Santos diz hoje que a Justiça angolana é iníqua mas não levantou um dedo quando Luaty Beirão foi preso por ler um livro. Tomás Correia é investigado há cinco anos mas só é alvo de buscas um mês depois de sair do poder no Montepio. Rui Pinto está detido e vai a julgamento por 93 crimes mas ninguém que ele denunciou está nos calabouços. Sim, “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”, mas só se a justiça for justiça. Não se pretende atacar a Justiça, pretende-se defender a lei. Porque os mesmos que enchem o coração com a palavra “democracia” raramente levam à boca a expressão “Estado de direito”. Uma não existe sem o outro. E sem Estado de direito ficamos entregues a barbárie.
De todas as acusações que Isabel dos Santos fez na entrevista à RTP, a mais grave não é a de perseguição política. Parece claro que o novo regime em Angola quer comprometer o anterior, apurando casos de corrupção, desvio de verbas e utilização do Estado para interesses particulares. Não há mal em querer destapar indícios de cleptocracia num Estado que tem elites ricas e um povo pobre. A acusação grave é outra, a de que a Justiça está ao serviço da política. Nenhum regime persegue a equidade com uma Justiça manipulada, mesmo quando a sua manipulação nos parece benevolente. Seja em que país for.
O título deste texto é uma citação de “A Morte de Danton”, que Georg Büchner escreveu depois da Revolução Francesa. É um texto prodigioso, em cena em Lisboa no Teatro Nacional D. Maria II, numa encenação de Nuno Cardoso. Nela conhecemos a história de Danton, que criou o Tribunal Revolucionário esperando salvar inocentes mas acabando ele próprio na guilhotina. “Fui eu que alimentei as crias da Revolução com os corpos desmembrados dos aristocratas”, diz ele agora vítima, “foi minha a voz que, como um furacão, enterrou debaixo das vagas de baionetas os esbirros do despotismo”. Agora é ele a vítima. Como explicou Bronislaw Baczko no livro “Como Sair do Terror”, a revolução cresce na exigência de mais radicalismo: os líderes da revolução vão caindo porque aparecem outros mais radicais que os denunciam e substituem. Hoje a ‘revolução’ é outra mas, perante a carga de escândalos bancários, de casos de corrupção e de sacas de impostos, a opinião pública permanece aparentada do “Minotauro que todas as semanas precisa da sua ração de cadáveres, não vá ele devorar quem os fornece”.
Pegamos nas canetas como se fossem espadas, nas lanternas como se fossem archotes e nas pedras como se fossem pedras. Está certo. Mas nenhum de nós pode tomar o lugar de um sistema de Justiça independente e defensor da Lei, ou remeter-nos-emos a um ímpeto coletivo devorador. “Quem quer que afronte o povo com a espada morrerá pela espada do povo”, escreveu ainda Büchner em “O Mensageiro de Hesse”. Não é isso que queremos.
Foi para proteger os oprimidos dos opressores e estes da ira dos oprimidos que se criou o Estado de direito; para que ninguém vivesse com medo do poder de quem governa e manda, seja na guerra, nos impostos ou na ordem de prisão. Esse Estado faz-se do primado da Lei e do equilíbrio de poderes independentes. Há medo na Turquia onde se detêm críticos de Erdogan e onde não se pode dizer para lá das fronteiras o que se suspeita do lado de cá, que o golpe de Estado de 2016 foi uma encenação para reforçar os poderes de Erdogan. Há medo no Japão, onde a mirabolante fuga de Carlos Ghosn trouxe à tona uma estatística impossível, como escreveu o “Financial Times”, de uma taxa de condenações em 99% dos julgamentos.
Este é o ponto primordial: a Justiça tem de ser acessível, independente e resistir a todas as pressões, sejam elas as demoras infindáveis dos processos ou as condenações desproporcionais de ‘poderosos’, que na verdade são sempre ex-poderosos. É isso que nos deixa a cofiar o queixo com as buscas desta semana ao Montepio: os casos estão há anos nos jornais, sabe-se agora que o processo foi aberto em 2015 e só há buscas depois de Tomás Correia ser finalmente empurrado para fora do Montepio? Já escrevi dezenas de vezes o que penso de Tomás Correia, se me perguntarem se deve ou não ser julgado eu respondo sem pestanejar, mas a minha resposta não interessa, interessa a do sistema judicial. Admitir que foram as influências da maçonaria que o protegeram de uma queda anterior é estarrecedor. Também Rui Pinto deve ser investigado, ele próprio admite a justificação. Mas o denunciante tem toda a razão quando questiona por que razão não são também investigados todos aqueles cujas práticas suspeitas ele ajudou a denunciar. Como é arrepiante observar que os lesados do BES ou do Banif estão a desistir de processos contra o Estado porque não têm forma de suportar as custas elevadíssimas judiciais.
Não basta a um sistema judicial ser forte, ele tem de ser corajoso. Corajoso na investigação dos poderosos e na renúncia à pressão de uma opinião pública com fome desenfreada de cabeças no espeto, até porque ela própria está exposta à manipulação, no limite contra si mesma. Só assim o sistema é respeitado. Só assim a justiça é Justiça. Porque, como diz Danton, “onde acaba a legítima defesa começa o assassínio”.
Bem.
Se a única maneira de haver um pingo de justiça é quando coincide com outras agendas…
Mais vale pouca que nenhuma.