Não tratem o PCP como um urso de peluche

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 27/08/2019)

A afirmação da entrevista de António Costa que tem consequências mais graves não é a exibição da sua animosidade contra o Bloco de Esquerda nem a demonstração da volúpia da maioria absoluta. É evidente que o PS definiu este tripé e não sai dele: exigir maioria absoluta, elogiar o PCP, atacar o Bloco. Com franqueza, tudo isso já se sabia. Não tinha sido tão esplendorosamente gritado aos sete ventos, mas era segredo de polichinelo e, em todo o caso, nesta entrevista só aparece de novo o frenesim político, ou a adrenalina eleitoral. Foi demais, como se viu. Costa levou três dias a justificar-se, o que é prova provada de que meteu o pé na argola. Mas as frases que, pelo contrário, demonstram uma estratégia mais fria, são as que se referem ao PCP, sob o manto diáfano de elogios desbragados.

Há quem, anunciando intimidade com os sentimentos profundos do primeiro-ministro, explique que se trata dos seus amores antigos, de um respeito histórico e até de uma devoção filial. Disso nada tenho a comentar. Ainda me surpreende que se utilizem conversas pessoais ou, pior ainda, simples interpretações psicologizantes, para analisar a ação pública de políticos profissionalíssimos que sabem que, neste negócio, o que parece é, ou que tudo o que dizem também é lido pelo significado literal e pelas implicações evidentes. A amizade entre o comentador e o político não devia dar carta de alforria para o justificacionismo.

O facto factual é que a geringonça é o primeiro caso de uma aliança negociada e assinada entre Costa e os partidos de esquerda, ressalvadas algumas manobras de curto alcance que fez no passado. O certo é que, quaisquer que fossem os seus amores e desamores íntimos, o atual primeiro-ministro foi candidato em Loures para tentar vencer uma maioria PCP e, mais tarde, enquanto autarca em Lisboa, não é conhecido nenhum pacto continuado com aquele partido, ao contrário do que acontecera com Jorge Sampaio. Fez o que achava que cumpria a sua escolha política e deve ser respeitado por isso. Assim, essa história de devoção mútua, agora confabulada, é uma ficção, injusta para o socialista (social-democrata desde muito jovem, como ele próprio explica com graça), que lutou sempre pelas suas cores, e falsa para o PCP, que tratou da sua vida.

Ora, o elogio do primeiro-ministro ao PCP tem outra leitura. Não é um estado de alma. É uma estratégia, aliás explícita: apresentar o PCP como um partido acessível e manejável, cordato e orientável. Fá-lo por duas razões também evidentes. A primeira é friamente instrumental, sugerindo um contraste com o Bloco, que seria rebelde. A segunda é criar uma ponte com o eleitorado do PCP, ou pelo menos limitar a sua área de expansão potencial. Essa estratégia foi prosseguida meticulosamente ao longo do último ano, nas negociações do Orçamento, nos debates quinzenais, até na questão da Lei de Bases da Saúde quando, com algum descaramento, o Governo assegurava (falsamente, ao que se sabe) que tinha o acordo do PCP para incluir na lei as parcerias público-privado. Não foi um arroubo na entrevista ao Expresso, tem pelo menos um ano que esta manobra é prosseguida meticulosamente.

Se isto vai ter um efeito eleitoral facilitando a votação no PS, ou prejudicando o PCP, está ainda por ver. Teve esse impacto nos processos eleitorais desde 2015, mas é tudo menos certo que agora se repita, estas eleições têm outro alcance. Há no entanto um efeito que merece atenção: estes elogios desvalorizam o sentido do discurso do PCP e pretendem torná-lo estranhamento ambíguo. Sempre que Jerónimo de Sousa enunciar a sua crítica dura ao Governo ou aos limites da ação do PS, às suas alianças com a direita na lei laboral, às insuficiências do programa económico ou à submissão às regras europeias, Costa responde, com condescendência, qualquer coisa como que “eu adoro a confiabilidade do PCP”. O subtexto é poderoso, sugerindo que todo o discurso crítico é um biombo e que, no fundo, o PCP não constitui uma alternativa e é por isso apreciado em S. Bento.

Tratar o PCP, deste modo, como um urso de peluche, é um insulto. E quem o faz sabe que é um insulto. Mais, é mesmo uma forma de agressividade que pretende agir no debate interno daquele partido.

Vale a pena por isso lembrar a história. Jerónimo de Sousa foi eleito secretário-geral do PCP substituindo Carlos Carvalhas, depois de um período que agora a historiografia oficial do partido designa por “desvio de direita”. Houve nisto uma evidente injustiça, na opinião de quem assina estas linhas, dado que Carvalhas, sempre fiel ao seu partido e inicialmente com o apoio de Cunhal (mais tarde retirado com fragor, como lembrou Domingos Lopes em entrevista ao “Público”), ficou acusado de inaugurar um processo de diálogos à esquerda, o “Novo Impulso”, que abriu o PCP a políticas unitárias – e a esquerda que não tem política unitária não tem caminho. Mas a história é como é, e Jerónimo triunfou claramente com o regresso a uma ortodoxia de autorreferência partidária. Talvez se possa intuir que só um dirigente nestas condições poderia ter conduzido este partido a um acordo como o da geringonça. Mas o preço é a existência de tensões internas e de resistências, que não as anedoticamente enunciadas por alguma imprensa, antes as que são expressivas e portanto pouco se manifestam em público, e que são radicalizadas por esta abordagem de Costa.

A estratégia condescendente, ou do urso de peluche, é prejudicial para toda a esquerda por isto: divide em vez de unir, cria animosidade partidária, dificulta discussões centradas sobre objetivos sociais e, acima de tudo, pretende enfraquecer um dos pilares importantes das respostas das esquerdas. Como aqui abundantemente defendi, continuo a pensar que medidas de esquerda exigem a ação tanto do Bloco como do PCP. São precisos os dois conjugados para melhorar a relação de forças com o Governo.

E, se a estratégia do urso de peluche resultar, os custos sociais serão profundos, em particular nos riscos de desagregação sindical ou de marginalização de sectores sociais que se reconhecem numa longa história política. Se é isto que fica da entrevista, é um sinal de alarme.

5 pensamentos sobre “Não tratem o PCP como um urso de peluche

  1. Desculpem lá, pás, mas por falar em ursos… 🙂

    _____

    Pedro Marques e Elisa Ferreira apontados para comissários. Portugueses reuniram com Ursula von der Leyen
    8/8/2019 | No Observador, há dias.

    Ursula preferiu Elisa para comissária
    27.08.2019 | No Expresso, hoje.

    Nota. Também a Ursula se rendeu ao Sex Appeal do Pedro Marques, em conclusão.

  2. Nota, prévia.

    Como os copys são longos, segue primeiro um comentário que fiz há tempos n’A Estátua de Sal sobre os resultados das recentes eleições europeias. No fundamental, acho, aquilo que designei como o «cinismo» de António Costa relativamente ao resultado do PCP está ali observado. O que o Francisco Louçã escreveu no Expresso online, ontem, concertado com o que o Fernando Rosas escreveu também ontem no P. (a versão integral do artigo constitui pois o segundo copy que farei, de seguida) parecem confirmar a minha asserção e ambos, inteligentemente, adensam as consequências da estratégia política jem marcha junto do eleitorado “flutuante” da Geringonça e perante uma direcção do PCP aparentemente manietada. Relendo o que o António Costa disse, confirmado pelas sondagens, os tipos do BE actuaram em tempo e fizeram-no bem. Entretanro, vi uma primeira e segunda reacções do Jerónimo de Sousa, posteriores à entrevista do Buda do Chiado ao Expresso, mas foram demasiadamente fraquinhas parecera-me para o que está em causa nesta espécie de OPA baratinha que o António Costa, com os seus truques e as suas manhas, lhes está a lançar. Os resultados das próximas eleições e a campanha eleitoral, se forem no caminho do que ditam as sondagens, confirmarão o que hoje parece ser claro.

    RFC diz:
    Maio 27, 2019 às 4:18 pm
    Notas, várias

    Ainda um dia direi algumas outras coisas, sobre-sobre, mas.

    1.

    […]

    2. Statement, um: o resultado do PCP é aritmeticamente mau, ponto. Não se percebe por isso, julgo mesmo que para os iniciados, o alcance do ataque à comunicação social sobre as alegadas «difamações» (o caso dos contratos em Loures da Ana Leal da TVI, o frenesim entre camaradas, nicks e perfis anónimos na merda do Facebook apanhados pelo Expresso?). Bilis à parte e manias da perseguição idem, no entanto, considero que se há frase completamente cínica na noite eleitoral ela pertence a António Costa. Cito-a, eu que, apesar de a ver citada, não a vi ainda esmiuçada por ninguém. Uma vitória, pá?…

    “Este resultado significa um voto de confiança no PS e assumimos este voto de confiança com humildade e profundo sentido de responsabilidade. É evidente destes resultados a derrota muito clara que o PSD e o CDS sofreram. E é também muito claro que os partidos da solução governativa que junta o PS, o Bloco de Esquerda e o PCP tiveram uma vitória na noite de hoje.”, cito.

    3. Não vi ninguém ainda, mas alguém o fará provavelmente, que analisasse algo mais complexo que é o tipo de posição negocial intransigente mantida pela Fenprof, e por Mário Nogueira, estratégia que esteve na origem do ponto de ruptura, ou de fuga?, do governo do PS aquando da birra do PM e que organizaram, não esquecer, comícios de agit-prop durante a campanha eleitoral. Encurtou o eleitorado do PS, sim e esse era o objectivo, mas benificiou quem? Pois, parece-me que não foi nem o PSD, nem o CDS, acho que não foi o PAN nem… o PCP. CGTP pós-Arménio e PCP pós-Jerónimo: visto daqui estão numa embrulhada, camaradas.

    Sinal de alarme na Soeiro, e olhem qu’este é a sério!

    4.

    […]

    5. E, por fim, o PS. Statement, dois: 33,38 por cento e um milhão de votos não impressionam ninguém, ponto. Como nota fotogénica da noite diria que, para mim, foi algo confrangedor ver uma sala do Altis às moscas em que se distinguia uma série de anónimos e, apenas, o Duarte Cordeiro escarrapachado na cadeira a bater palmas, satisfeito e a entoar slogans. Intervenções da Ana Catarina “vitória clara” Mendes especializada em considerar-nos parvos, embora possamos adivinhar como as sondagens diárias que o PS faz deveriam estar pela hora da morte até à birra de Antonio Costa, apostamos?, discurso do Carlos César sempre a bater na tecla de quem acha que tem o Rei na barriga… dois pulpitos, dois gajos, tendo o Pedro Marques surgido amparado, mais uma vez, pareceu-me que em muletas, sexy e… sorridente.

    Mas, pergunta, e agora que fazer se se acabaram as bombas eleitoralistas, Marques Mendes dixit? Porque se acabou a dita pólvora e o que aí vem será comida requentada e este é que é o ponto, certo ou estou a ver mal a coisa?…

    1/2

    • O centro da questão

      Estou de acordo com o que o
      primeiro-ministro, António Costa,
      quis significar acerca da questão
      central que se coloca nas próximas
      eleições legislativas: saber se o
      Partido Socialista tem ou não
      maioria absoluta (ver entrevista ao
      Expresso de 24/8/2019). Dito de
      outra forma: perceber se à
      esquerda (só nela existe essa
      possibilidade), há ou não força
      social e política para impedir a
      governação absoluta do PS. E esse
      é, na realidade, o centro da
      questão neste pleito eleitoral.
      O PS e António Costa são
      prudentes na formulação do seu
      apetite por ir ao almejado pote da
      maioria absoluta. Disfarçam-no,
      todavia, sob uma série de
      eufemismos que mais descobrem
      do que ocultam a ânsia afogueada
      de lá chegar. Sabem que a
      evidenciação do propósito é
      eleitoralmente muito embaraçosa.
      Ninguém esqueceu no país que as
      duas maiorias absolutas do
      cavaquismo e a do PS de Sócrates
      se traduziram no abuso absoluto.
      Um partido governante com
      maioria absoluta, ensina-nos o
      nosso historial recente desse tipo
      de situações, acha-se dispensado
      de falar às pessoas, de prestar
      contas à cidadania, de negociar e
      de debater dentro ou fora do
      Parlamento as suas decisões, anula
      facilmente o contraditório, tende a
      controlar os media em proveito
      próprio, ilude com muito maior
      facilidade a fiscalização possível
      dos seus atos, fomenta quase
      inelutavelmente o compadrio e a
      corrupção a todos os níveis.
      Ninguém se esqueceu em Portugal
      que as maiorias absolutas
      pretéritas do PSD e do PS
      significaram arrogância e
      autoritarismo, privatizações
      obscuramente negociadas dos
      sectores estratégicos da economia,
      ataques devastadores ao emprego
      e aos direitos do trabalho,
      corrupção e promiscuidade
      atravessando horizontalmente a
      banca, os negócios e a política,
      tudo a desaguar no colapso
      financeiro, na troika e no
      memorando de entendimento com
      ela preparado por aqueles dois
      partidos, a magna carta da
      austeridade.
      É, pois, natural que na citada
      entrevista António Costa tente não
      dizer claramente ao que vem,
      ainda que o propósito seja
      evidente: regressar a uma maioria
      absoluta e declarar guerra
      preventiva a quem a possa política
      e eleitoralmente obstaculizar. Para
      esse efeito, e partindo da evidência
      que as direitas estão impotentes
      para assumir tal risco, o
      secretário-geral do PS debruça-se
      sobre as esquerdas. E, num
      exercício não isento de alguma
      desfaçatez, não hesita em destratar
      os parceiros de ontem (que, afinal,
      viabilizaram a governação
      socialista e as suas benfeitorias),
      agora reduzidos pelo
      primeiro-ministro ou a muletas de
      apoio ou a adversários a
      neutralizar. Com paternal
      condescendência, António Costa
      passa um atestado de “bom
      comportamento” ao PCP, o que
      não pode deixar de soar como algo
      insultuoso aos ouvidos de um
      partido fortemente empenhado
      em demarcar-se do PS e do seu
      Governo. E assim, reduzido, aliás
      injustamente, ao estatuto de
      parceiro menor e obediente. Ao
      contrário, o Bloco de Esquerda é
      eleito adversário preferencial,
      implicitamente apontado como
      força política suscetível de
      congregar os apoios dos muito
      defensores da “geringonça” que
      não desejam o regresso de uma
      maioria absoluta do PS. E por isso
      Costa despeja-lhe os anátemas de
      partido “inorgânico”, sequioso de
      mediatização e inseguro nos
      compromissos: ninguém diria que
      durante uma legislatura o Governo
      contou com a sua colaboração para
      existir e atuar como Governo…
      Não só por isso as acusações são
      algo surpreendentes, pois parecem
      obnubilar o sentido das realidades
      do primeiro-ministro: quando fala
      da sede mediática, estará a
      esquecer-se do secretário-geral do
      PS que se dedica por estes dias a
      percorrer de norte a sul a EN2 para
      aparecer, não só ao “meio-dia”,
      mas em todos os noticiários de
      todas as televisões, como o
      improvável “amigo do interior”? E
      quando na referida entrevista
      insinua a insegurança dos
      compromissos, não ocorrerá a
      António Costa que foi o Governo
      do PS, pressionado pelos grandes
      interesses ou pelos patrões, que à
      última hora deu o dito por não dito
      relativamente a compromissos
      formalmente assumidos no
      Parlamento em casos como a
      tributação das rendas da energia, a
      TSU dos patrões, a legislação
      laboral ou a Lei de Bases da Saúde?
      Nem se diga, como sugere António
      Costa ao Expresso, que o risco de
      recessão económica enfatiza a
      necessidade de um Governo
      “seguro”, isto é, de maioria
      absoluta. O certo é que não há
      nada de menos seguro para o
      emprego, para os direitos de quem
      trabalha, para os pensionistas,
      para o Estado social, do que um
      governo de maioria absoluta do PS
      ou da direita a gerir uma eventual
      crise. Pela simples razão, como a
      história recente da Europa
      demonstra (em França, na
      Alemanha, na Itália, em
      Espanha…), que nada de essencial
      separa a austeridade dos partidos
      socialistas no poder da dos
      governos da direita. Afinal, foi o
      Governo do PS e do eng.º Sócrates
      que chamou a troika e se entendeu
      com ela. O Governo PSD/CDS
      agravou o que já fora começado. Se
      há situação em que o
      condicionamento à esquerda da
      governação se torna mais urgente e
      necessária, é precisamente para
      enfrentar com equilíbrio e justiça
      social uma situação de crise.
      Dito isto, devo dizer que me
      confesso apoiante da experiência
      política que foi a “geringonça”, a
      despeito das suas limitações e
      incompletudes. Desejaria que o
      Governo a sair das próximas
      eleições pudesse levar a cabo
      muito do que não foi feito no
      domínio dos direitos do trabalho,
      na resposta à urgência climática,
      no reforço dos serviços públicos
      essenciais, na recuperação
      nacional de setores estratégicos da
      economia, na melhoria das
      condições salariais e do nível de
      vida. Para que tal aconteça,
      entendo ser indispensável dar dois
      passos. O primeiro, não haver
      uma maioria absoluta de nenhum
      partido, designadamente do PS. O
      segundo, constituir as forças à
      esquerda do PS como garantia
      eleitoral e política da
      continuidade, aprofundamento e
      alargamento de políticas de justiça
      social no sentido das que estes
      partidos viabilizaram na
      legislatura agora finda.
      Veremos se é possível criar uma
      relação de forças que permita ir
      por aí. Afinal, o povo é quem mais
      ordena.

      Historiador e fundador do Bloco de Esquerda

      Fonte: P., 27.8.2019, p. 11.

      2/2

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