Passos, passado e futuro 

(Clara Ferreira Alves, in Expresso Diário, 23/02/2018)  

cfa

Clara Ferreira Alves

 

(Declaração de interesses: não sou sectário quanto a personagens. Não há autores proscritos. A dona Clara que, nos últimos tempos me tem desiludido com as suas intervenções macambúzias no espaço público, desta vez produz um excelente retrato do “passismo”. Um fresco de excelente traço e recorte literário. A dona Clara pode não saber, por vezes, onde anda e mostrar um pensamento que é uma amálgama ideológica sem coerência e de desiderato oculto. O que não pode dizer-se é que não saiba escrever. Escreve e escreve muito bem.

Comentário da Estátua, 23/02/2018)


Pedro Passos Coelho foi o autor da frase mais desastrosa da democracia e o seu rosto ficou, justa ou injustamente, conforme a ótica, associado a um tempo e um lugar de penas e expiações. E ninguém gosta que lhos recordem 

Pedro Passos Coelho nunca apareceu ao país como um daqueles predestinados da política, um daqueles que sabem que acabarão primeiros-ministros, só não sabem quando. A sua vida partidária e atividade política discretas desaguaram numa vida empresarial que mais tarde serviria de arma de arremesso. Daí, subitamente, saltou para chefe do PSD e, armado por uma obstinação que não o serviu historicamente, interiorizou e exteriorizou o discurso da austeridade e foi autor da frase mais desastrosa da democracia. Ir além da troika.

Passos Coelho, depois do desaire político e financeiro de Sócrates, e muito antes dos desaires judiciais do processo Marquês, acreditava piamente que Portugal precisava de uma regeneração do tecido económico e social e de uma revolução neoliberal que transformasse um país dependente e sujeito a resgates da Europa, com a cauda de humilhações, num país autónomo e, digamos, mais civilizado.

Ideologicamente, Passos foi um arlequim que serviu a dois amos, o partido de nome social-democrata e a ideologia ultramontana que de social-democrata nada tinha

O discurso que autorizava este pensamento que pedia emprestado às ideologias neoliberais americanas e aos discípulos portugueses que viram em Passos o motor revolucionário da direita, não era sustentado por uma ideologia partidária adquirida ao longo de anos nem por uma íntima convicção que se tivesse manifestado, também, ao longo de anos.

Ideologicamente, Passos foi um arlequim que serviu a dois amos, o partido de nome social-democrata e a ideologia ultramontana que de social-democrata nada tinha. Sabemos onde estava o coração de Passos. A bancarrota e o resgate serviram de pretexto para a revolução, e ancoraram-na em meia dúzia de princípios pragmáticos que qualquer político experiente saberia que poderiam tornar-se antipatrióticos. Nunca chegaremos a saber se a insensibilidade social do discurso do sucessor de um Sócrates subitamente guinado para a esquerda e um keynesianismo encenado, era sentido ou, também, encenado.

Nada indicava o homem que morava em Massamá e usava Massamá como simbologia redentora adequada ao desígnio coletivo, a frugalidade sem peneiras, como o político punitivo das nossas manias de viver acima das nossas possibilidades

No percurso pessoal, nada indicava o homem que morava em Massamá e usava Massamá como simbologia redentora adequada ao desígnio coletivo, a frugalidade sem peneiras, como o político punitivo das nossas manias de viver acima das nossas possibilidades. Não tinha dimensão ambiciosa e nunca se percebeu como isto era conciliável com a entrepreneurship. A ambição individualista capitalista, a do entrepreneur, é sair de Massamá, não é regressar a Massamá. Perguntem a Miguel Relvas. Mais, um dos ministros de Passos, Miguel Macedo, alvitrou que os portugueses não passavam de um bando de cigarras que deveriam começar a viver como formigas. E o dito Relvas, ministro fundamental, aconselhou os jovens portugueses a saírem da zona de conforto. Por grosso, estas duas frases, mais a frase ir além da troika, selaram o destino infausto de Passos Coelho. E não só.

A aliança programada com um lugar-tenente ubíquo e ambíguo, um falso Dr., e a perceção de que a carreira política de Passos era uma conjunção dos ofícios de Ângelo Correia (em princípio de carreira) com os de Relvas (em final de carreira) geraram a certeza nos eleitores de que Passos era um recetáculo de ideias e interesses alheios e que servia, além dos dois amos ideológicos, os propósitos negociais de uma geração dotada de uma pesporrência que raiava, no início da legislatura, a prepotência.

Escorado na Europa chantagista dos países do sul e numa desorientação do partido socialista que se anunciava definitiva, o partido do homem que levou Portugal à ruína, Pedro Passos Coelho esqueceu-se de que os portugueses não são radicais

Relvas e Passos Coelho, e os outros, convenceram-se erradamente de que o momento de aperto dos portugueses lhes autorizava uma arrogância que incomodava o parceiro de coligação, Paulo Portas. Ao contrário dos sociais-democratas, Portas assentava o discurso do partido dele na necessidade apelar a um eleitorado pobre e remediado, a norte, tanto mais que a democracia-cristã tinha uma forte componente de consciência social. Consciência social que o próprio presidente da República, Cavaco Silva, não renegava, apesar dos tiques autoritários. Escorado na Europa chantagista dos países do sul e numa desorientação do partido socialista que se anunciava definitiva, o partido do homem que levou Portugal à ruína, Pedro Passos Coelho esqueceu-se de que os portugueses não são radicais.

Somos um povo expeditivo e conformista mas também volátil nos sentimentos e com ódio às privações. Instituir a privação como doutrina de vida funcionou nos primeiros tempos, quando se achava que Portugal poderia ser expulso da Europa e que o dinheiro faltaria nas caixas multibanco. Com a passagem do tempo, Passos deveria ter percebido que estava a construir na areia. Em vez de reformar o Estado, aumentou os impostos. Em vez de fazer a revolução, vendeu o país. Em vez de privatizar com método, privatizou em leilão. E os nomes titulares dos negócios, Relvas e Arnaut à cabeça, começavam a aparecer por todo o lado. A pureza incorrupta de Passos Coelho, fomentada por uma existência modesta, genuína mas não suficientemente cosmopolita, manchou-se com a Tecnoforma e perdeu-se nos labirintos africanos.

Passos tornou-se supérfluo. E o modo inadequado e atrapalhado como geriu as autárquicas, responsabilizando-se por uma derrota do partido nunca vista, foram o golpe de misericórdia

Externamente, na representação soberana, o país parecia dobrado e humilhado aos desígnios da Europa de Schauble e ao poder financeiro e corruptor da família dos Santos. Com a partida de Vítor Gaspar para o FMI, e os episódios do obviamente demito-me de Portas, ficou a impressão de que tinha partido vencido o grande executor da purga austeritária. O Estado continuava por reformar. E a coligação não corria lá muito bem. Apesar destes obstáculos, e outros, incluindo a mudança da mentalidade da aceitação da privação, Passo Coelho teve a maioria relativa nas legislativas. É meritório. O que ele não esperava era que o cetro lhe fosse retirado das mãos por, novamente, um chefe socialista. Ao ir buscar o apoio maioritário às esquerdas e formar governo, contrariando a prática histórica do partido mais votado, Costa fez o que ninguém no PSD, dos ideólogos aos seus admiradores e amadores, conseguira prever. O choque foi brutal, para todos. Por essa altura, o PSD nada tinha de social-democrata, e, num movimento simétrico, o PS virara à esquerda aliando-se a um velho inimigo, o partido comunista. Costa teve sorte, a Europa mudou, a austeridade acabou, e a saída limpa permitiu um alívio. A saída não foi, nem poderia ser, limpa, mas a política é a arte da ficção. Há quem lhe chame spinning.

Estou convencida que Passos Coelho não tem futuro político, apesar de o designarem como sebástico candidato às presidenciais. Oito anos de Marcelo com Passos a seguir? Esqueçam. A inteligência de Marcelo gerará o seu sucessor, e nunca seria Passos

Afundado num ressentimento transformado em hostilidade e rancor aos socialistas, o PSD de Passos não soube fazer oposição. A oposição traduzida pela palavra “diabo”, veja-se a pobreza do conceito, consistia em desejar o apocalipse e a perda do país. A seguir ao resgate, viria a ameaça de novo resgate. Os portugueses começaram a achar que Passos e os seus exageravam e que não só não estavam acertados com a História como tinham sacrificado um povo a uma ideia normativa desnecessária. Passos tornou-se supérfluo. E o modo inadequado e atrapalhado como geriu as autárquicas, responsabilizando-se por uma derrota do partido nunca vista, foram o golpe de misericórdia. A impopularidade de Cavaco em fim de carreira não ajudou. A vitória de Marcelo menos ainda. O presidente Marcelo era tudo o que Passos quisera evitar. Não acertou, mais uma vez.

Estou convencida que Passos Coelho não tem futuro político, apesar de o designarem como sebástico candidato às presidenciais. Oito anos de Marcelo com Passos a seguir? Esqueçam. A inteligência de Marcelo gerará o seu sucessor, e nunca seria Passos.

Pode ser que o usem como conspirador ou patrono de conspirações, acenando-lhe com o putativo regresso ao trono da Buenos Aires, mas nunca se deve regressar a um lugar onde se foi feliz. Pode ser que o manipulem para, com malícia, destruir qualquer líder do PSD que não ele, mas ao deixar-se arrastar por miragens morrerá afogado nas areias movediças. A história move-se mais rapidamente que nunca e Passos é passado. O seu rosto ficou, justa ou injustamente conforme a ótica, associado a um tempo e um lugar de penas e expiações. E ninguém gosta que lhos recordem.

6 pensamentos sobre “Passos, passado e futuro 

  1. Com efeito é uma escrita escorreita todavia, continua a tentar deturpar a história recente quando fala
    na bancarrota de Sócrates, retomando a famosa lenga lenga dos pafiosos … talvez para agradar ao “boss”!!!

  2. Caro Estatuadesal, pode chamar-lhe um “excelente retrato do “passismo”. Um fresco de excelente traço e recorte literário.” que para mim não passa de um finório recorte literário em prol total do branqueamento de Passos Coelho.
    Mais uma vez a clarinha passa uma esponja sobre as malfeitorias da sua governação de castigo como purga sobre os portugueses e, claro (ou clarinha) estabelece a comparação com Sócrates, quem havia de ser. Só podia porque este em sua opinião e, pensa ela, na opinião pública anda por tão baixo que até Passos sai bem na comparação. E vai fala
    de Passos depois de anunciar o “desaire político e financeiro de Sócrates, e muito antes dos desaires judiciais do processo Marquês,” que “A bancarrota e o resgate serviram de pretexto para a revolução,”, revolução? quem está de fora até deve pensar que Passos era capa de fazer uma revolução que não fosse uma qualquer idiotice ao nível da sua capacidade intelectual. Mas, segundo clarinha não era uma nulidade até como traficante de influências mas sim era um simpático que apenas “não tinha dimensão ambiciosa” etc. e tal.
    Lindo lindo é “A pureza incorrupta de Passos Coelho” vivida na sua modesta casinha e a “Tecnoforma que não passou de uma pequena mancha (Pacheco já havia dito que os colados com “mancha” eram todos os que lidaram e apoiaram Sócrates. Para este falhado político Soares era o mais arguto e com mais visão dos políticos mas, no caso Sócrates, perdeu a visão e a argúcia políticas para ganhar uma mancha imposta pelo falido oráculo pachecal).
    Ainda vem creditar a Passos a “saída limpa” limpa e claro, clarinha lançar ao ar a ideia da ressuscitação de Passos como eventual PR de Portuga.
    Uma maravilha de política literária que nem Pacheco faria melhor nem se atreve a fazer actualmente ao amigo Rio.

      • Precisamente, governou segundo uma ideia medieval de castigo e punição por culpa moral de cunho religioso, isto é, segundo uma lógica política medieval-inquisitotorial.
        Prestes a completar-se o 1º quarto do Séc. XXI e séculos depois da má memória da Inquisição é imperdoável que alguém ainda possa ter, querer e tentar aplicar a um povo inteiro os métodos mentais ideológicos do dogma religioso.
        Mas o pior foi que o fez por elevada mediocridade e incapacidade intelectual de toda a espécie que o levou não só a adoptar o programa da troika como o aplicou em dose dupla desnecessariamente para cumprimento do seu ideário medieval vingativo.
        Alguém disse que o cadáver é sempre inocente e como tal é a catarse da vida. O Estatuadesal talvez, indo na conversa da clarinha, pense que Passos já é um cadáver e já se sente condoído mas a própria clarinha duvida dessa morte e desse cadáver.
        E eu penso que Passos, dado que mesmo medíocre chegou a PM ainda quererá ser novamente algo de importância. Ademais há-de querer completar a vingança sobre os portugueses que queria e estes não lhe deixaram. Vai andar por ai e será mais um cromo nacional a desfazer de tudo que se faça e a intrigar e mentir, seu artifício natural, para atingir seus fins escondidos.

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