Passos desnacionalizou o PSD 

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 23/02/2018)  

Daniel

Daniel Oliveira

 

(Ó Daniel, não sei se passas os olhos pela Estátua de Sal, mas quero daqui dar-te os parabéns por este texto que, de forma notável, faz uma análise político-ideológica do que foram os anos do pontificado de Passos, concluindo e apontando as razões pelas quais o PSD e a direita portuguesa não tem futuro. Excelente análise.

Comentário da Estátua, 23/02/2018)


Vivemos, no Mundo, na Europa, e por isso em Portugal, tempos de rutura que são sempre de clarificação. A direita que sobra na Europa, para além da xenófoba, é a do PPE, de que Passos está muitíssimo mais próximo do que Ferreira Leite ou Rui Rio. Passos afastou o PSD da sua matriz. Apenas europeizou a direita portuguesa.


Diz-se que Passos Coelho, chegado à liderança do PSD há oito anos, foi um desvio à matriz social-democrata do partido. A coisa não é assim tão simples. O PSD não é nem nunca foi um partido social-democrata. Esse espaço sempre foi ocupado, e até na sua versão mais moderada, pelo PS. O PSD era um partido estatista, o que não exatamente a mesma coisa. Há estatistas de direita, não há sociais-democratas de direita. O PSD é um objeto estranho e sem paralelo na Europa. Herdeiro democrático da base social de apoio da União Nacional, sempre representou os anseios e os medos da pequena e provinciana burguesia nacional. Sempre se disse que era o partido mais português de Portugal exatamente por representar o que em nós está mais distante do resto da Europa. Era, de certa forma, e apesar do seu europeísmo sincero, o partido menos europeu de Portugal.

É falsa a ideia de que o liberalismo de Passos foi consequência da intervenção da troika. Pelo contrário, a intervenção da troika é que serviu de capa para a aplicação da sua agenda

Quando Passos Coelho concorreu e perdeu contra Manuela Ferreira Leite, há dez anos, fê-lo em nome de uma nova elite intelectual mais liberal, mais urbana e talvez menos portuguesa. Na altura, penso que isso correspondeu apenas a procura de nicho de mercado. Mas essa opção foi-se sedimentando à medida que Passos se rodeou de jovens académicos sem grande experiência política e foi absorvendo as sebentas económicas da ortodoxia em voga.

Geralmente, o mais dogmático dos políticos é o que tratou tardiamente das suas leituras. Seja como for, é falsa a ideia de que o liberalismo de Passos foi consequência da intervenção da troika. Pelo contrário, a intervenção da troika é que serviu de capa para a aplicação da sua agenda. Isso foi evidente na forma muito diversa como Paulo Portas e Passos Coelho foram justificando cada medida de austeridade. O que um apresentava como uma cedência à intervenção externa o outro exibia como um processo de purificação dos piores vícios nacionais. E a adesão a esta agenda tem a prova irrefutável na proposta de revisão constitucional do PSD, anterior à sua chegada ao governo, um verdadeiro manifesto das convicções passistas.

Mais do que trair a tradição do PSD, que do ponto de vista ideológico tem uma identidade tão indefinida que não se pode sequer falar tradição, Passos traiu a base social de apoio do PSD, composta pela pequena burguesia, pelo funcionalismo público e por pensionistas

O facto dessa proposta de revisão constitucional ter sido posta na gaveta resultou da evidente desadequação eleitoral da agenda ideológica de Passos Coelho. Mais do que trair a tradição do PSD, que do ponto de vista ideológico tem uma identidade tão indefinida que não se pode sequer falar tradição, Passos traiu a base social de apoio do PSD, composta pela pequena burguesia, pelo funcionalismo público e por pensionistas. E só não foi punido de forma mais severa porque a troika acabou por servir de álibi e porque abandonou as medidas de austeridade no ano anterior às eleições, permitindo que a economia começasse a respirar um bocadinho.

A verdade é esta: o liberalismo económico não tem, nem no povo nem nas elites, qualquer adesão em países pequenos, com uma burguesia frágil e dependente do Estado e onde a maioria da população é pobre ou remediada. Portugal e um país culturalmente conservador mas socialmente de esquerda. Cavaco, o melhor símbolo dos limites da nossa direita, sempre o compreendeu muito bem. O discurso ideológico de Passos, que pouco ou nada tem a ver com o seu currículo profissional, é tão minoritário como o pós-marxismo libertário do Bloco. E é por isso que os neoliberais que o defendem tiveram de procurar guarida num partido sem qualquer tradição liberal. E a troika permitiu-lhes ir mais longe do que normalmente iriam.

Não foi Passos Coelho que afastou o PSD da sua matriz estatista e moderada. Foi a total dependência da política e da economia nacionais em relação ao que se passa na Europa, replicando em Portugal as suas clivagens ideológicas

Estou então a confirmar a verdade feita que disse que não era assim tão simples: a de que Pedro Passos Coelho afastou o PSD da sua matriz original. O erro da frase está no sujeito. Não foi Passos Coelho que o fez, foi uma mudança mais geral e que ainda mal começou. Aquela que levará o PSD a deixar de ser o partido mais português de Portugal. Porque, dentro da União Europeia e num mundo globalizado, já não há espaço para partidos especificamente portugueses e totalmente desligados das grandes famílias ideológicas europeias. A velha direita estatista e moderada que o PSD representava está tão condenada como o bloco central. Não porque não tenha base social e eleitoral de apoio. Tem muito mais do que o radicalismo liberal que Passos tentou representar. Mas porque não tem qualquer espaço de manobra na Europa nem parceiros políticos europeus. A direita que sobra na Europa, para além da xenófoba, é a do PPE, de que Passos está muitíssimo mais próximo do que Manuela Ferreira Leite ou Rio Rio. Não foi Passos Coelho que afastou o PSD da sua matriz estatista e moderada. Foi a total dependência da política e da economia nacionais em relação ao que se passa na Europa, replicando em Portugal as suas clivagens ideológicas. Nela, não há espaço para uma direita centrista e com preocupações sociais.

As dificuldades que Rui Rio vai sentir nos próximos tempos serão a melhor forma de ilustrar o que aqui estou a defender. Contra ele, estará a “inteligência” da direita portuguesa, nas suas dimensões mediáticas e académicas. E estará a agenda que a direita europeia tem para a uma economia periférica como a portuguesa. Não estaria a grande burguesia nacional, que nunca foi defensora de opções liberalizadoras. Mas essa, exatamente por via da abertura económica e integração europeia, foi dizimada. São hoje poucas as grandes empresas que estão nas mãos de portugueses. E a pequena burguesia da “província” vale hoje muito menos do que antes.

O velho PSD tem eleitores mas não tem, para o servir, nem o aparelho económico, nem o aparelho intelectual do passado. A tentativa de recentrar o PSD chocará com a barragem de uma comunicação social tomada pelos radicais neoliberais que o vêem como um retrocesso, com a oposição de uma direita europeia em total contraciclo com um qualquer liberalismo de rosto humano e com a fraqueza de uma burguesia nacional sem capital nem qualquer autonomia. Rio Rio é uma relíquia do passado.

A moderação é o estado natural da política quando se gere a continuidade. Não são esses os nossos tempos. Vivemos, no Mundo, na Europa e por isso em Portugal, tempos de ruptura que são sempre de clarificação e alguma radicalização, mesmo que passageira. Até os movimentos centristas, como o de Macron, são, na agenda económica e social, bastante radicais para o que era a norma europeia. O que Passos Coelho fez foi europeizar a direita portuguesa. E isto deixa a direita nacional numa encruzilhada: o partido mais português de Portugal não tem lugar na direita europeia e por isso é inviável; o PSD sintonizado com o neoliberalismo do PPE não tem lugar em Portugal e por isso é inviável. Como única a verdadeira identidade que resta ao PSD é ser a alternativa ao PS, será o caminho que o PS decidir fazer (também os partidos socialistas que optaram pelo centro estão a definhar) que acabará por determinar o futuro do PSD. Certo é que Passos não foi nem um acidente nem um desvio. Foi o inicio de um caminho que a troika ajudou a justificar e que Rui Rio apenas poderá tentar retardar. A sua primeira semana de liderança apenas nos dá um pequeno vislumbre das dificuldades que enfrenta quem caminha no sentido inverso ao deste tempo.

Um pensamento sobre “Passos desnacionalizou o PSD 

  1. …mais uma brilhante peça jornalística do Daniel Oliveira. Quero crer que só lhe terá faltado o detalhe de refereciar que uns passos antes de Passos, bem como outros pequenos passos que ainda por lá ficaram, serviram-lhe primeiramente de calçadeira, enquanto os últimos intentam vir a fazer-lhe de bengala. A teimosia compulsiva de PPC, essa sim, logrou operar a descrição de excelência deixada pelo DO quanto à vertigem que ocorre na Social-Democracia d’UE.

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