As cerimónias do adeus

(Baptista Bastos, in Jornal de Negócios, 13/01/2017)

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A morte de Mário Soares também coloca um ponto final numa história que muitos rancores e ódios criaram e disseminaram. Não podemos, nem desejamos, nós, os de aqueles tempos ominosos, viver mergulhados e obcecados pelos nossos ódios pessoais.


Diga-se o que se disser ou o que for dito, Mário Soares representa, com Álvaro Cunhal, um tempo e um propósito de transformação da sociedade que marcaram o século. Fixam e delimitam uma época que desapareceu. Outras propostas têm surgido e, embora ainda embrionárias, correspondem a novos tipos de ansiedade e de esperança. O mundo muda quase sempre para melhor. Este novo tipo de proposta social, no qual vivemos, durará o tempo necessário à sua dissolução, e a experiência no-lo diz que a sua transposição será muito difícil e extremamente pesarosa. Mas as coisas são como são, e a História é uma deusa cega.

Soares surgiu num tempo de grandes confrontos e de imensas esperanças. O ideal comunista sobressaltava e estimulava as sociedades saídas de duas guerras e dizimadas pela miséria e pelo terror. Em Portugal, quarenta anos de fascismo aterrorizavam populações inteiras e a batalha contra essa monstruosidade foi demorada e custosa, tanto mais que as forças e os apoios internacionais ao salazarismo eram díspares e numerosos, a começar pelas democracias europeias. Está por escrever e estudar os malefícios, naturalmente atrozes, que os apoios internacionais ao regime fizeram ao nosso povo e ao seu desenvolvimento. A batalha pela liberdade está por escrever, em todos os seus capítulos e o Partido Comunista, admita-se ou não, desenvolveu e tem um papel importante e meritório nesse confronto desigual. Está por escrever o martírio que essa luta suscitou, e por conhecer o número trágico de heróis e de heroínas chamados à responsabilidade de intervir e de interferir.

Mário Soares tem um papel importantíssimo nessa luta desigual. É preciso não esquecer que, em nome de uma falaciosa defesa dos “valores ocidentais”, as democracias europeias apoiaram, auxiliaram e patrocinaram, durante quase cinquenta anos, o regime português. O PCP, ilegalizado e perseguido, constituiu uma força poderosa contra o regime, e, não poucas vezes, Mário Soares como advogado, foi defender, nos sinistros tribunais plenários, os presos políticos do salazarismo. Uma época por estudar e muitas vezes ocultada na imprensa e nos comentários afins. Não devemos ter receio. A História é uma deusa cega, mas também nos ensina que o poder da vontade dizima a escatologia da mentira e do embuste.

A morte de Mário Soares, creio, põe fim a um tempo e a uma época repletos de grandes actos de coragem e de tenacidade. Ele próprio foi um herói desse tempo, independentemente dos juízos de valor que tenhamos. Não podemos, nem devemos esquecer, em nome da moral e da verdade, constituídas por uma longa época, os anos atrozes em que tivemos de lutar contra quase tudo. Podem crer que sei do que falo e do que oculto.

Mas a morte de Soares também coloca um ponto final numa história que muitos rancores e ódios criaram e disseminaram. Não podemos, nem desejamos, nós, os de aqueles tempos ominosos, viver mergulhados e obcecados pelos nossos ódios pessoais. As coisas não desaparecem por milagre, e esses tempos desgraçados vão permanecer, ainda por muito tempo, naqueles e seus descendentes que sofreram a amargura de não os deixarem ser livres.

Cinquenta anos de mágoa não podem nem devem ser metidos na gaveta. Somos seres éticos e políticos e não podemos deixar que as circunstâncias do momento absorvam a coragem e a tenacidade de uma luta desigual, e nunca abandonada, que causou o desespero de muitos milhares de famílias. A época actual é um turbilhão intenso da subida de outros valores e entendimentos. Mas a História não se fixa, somente, nesses momentos. Se a memória nos livros é ocultada e aparentemente desaparecida, a memória dos homens, essa, é absolutamente inapagável. Aguardemos, com paciência e tenacidade, que tudo aconteça como normalmente tudo acontece e vai acontecer.

 

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