Avançou, já não pode recuar

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 20/10/2015)

         Daniel Oliveira

                      Daniel Oliveira

Ao contrário das interpretações que li sobre a sondagem da TVI, ela confirma que António Costa tem espaço de manobra político para fazer o que está a fazer. Depois de supostamente trair sem vergonha o seu eleitorado, o PS não só não perderia votos como até subiria um bocadinho. Depois dos eleitores saberem da possibilidade de um governo de esquerda, as forças de esquerda que dele fariam parte manteriam a sua maioria e a direita continuaria sem votos e deputados para governar. Não são as sondagens que determinam a justiça de uma determinada escolha e devemos ser cuidadosos a tirar delas consequências políticas. Mas a verdade é que esta sondagem contraria a narrativa que os seus próprios divulgadores nos têm vendido. O PS não perde votos com esta escolha, os eleitores não dão maioria a Passos para a contrariar.

Tal como esperado, Cavaco Silva vai chamar Pedro Passos Coelho a formar governo. Na realidade, poderia tê-lo feito há algum tempo. Acho que o deve fazer. Como já escrevi, é a forma mais clara dos portugueses perceberem porque é que Passos Coelho pode não ser primeiro-ministro. A votação de uma moção de rejeição deixaria clara a sua minoria parlamentar e a existência de uma maioria de deputados, que representa a maioria dos eleitores, que não o quer como primeiro-ministro. Só ao ver os 122 deputados a rejeitar um governo fica claro para todos que falta a Passos Coelho o apoio maioritário do Parlamento, necessário numa democracia representativa em que o poder executivo dependa do apoio do poder legislativo.

António Costa não tem muitas escolhas pela frente. Ou chega a acordo com o Bloco de Esquerda e o PCP, para, no momento em que for rejeitado um governo minoritário de Passos Coelho, ter uma alternativa maioritária para apresentar, ou demite-se. O seu compromisso com os eleitores foi claríssimo: “É evidente que não viabilizaremos, nem há acordo possível entre o PS e a coligação de direita. (…) A última coisa que fazia sentido é que o voto no PS, que é um voto das pessoas que querem mudar de política, servisse depois para manter esta política.” Os passos que deu logo depois confirmaram que isto não foi uma frase solta. Se o PS não tiver uma alternativa para apresentar, está obrigado a viabilizar um governo de Passos, para que o país não fique ingovernável. Mas terá de ser aquele que defende a suspensão de atividades do PS, Francisco Assis, a garantir esse passo, que poderá levar à desagregação lenta do PS e a um provável crescimento do Bloco de Esquerda.

O Bloco de Esquerda parece ter dado já garantias suficientes para que o governo com apoio da esquerda possa avançar. É improvável que entre para o governo. Mas resta saber se consegue garantir um acordo de incidência parlamentar suficientemente sólido para que esta alternativa dê garantias mínimas de estabilidade. É do PCP que têm surgido informações contraditórias, é verdade que quase todas elas resultam de interpretações bastante livres feitas por uma comunicação social que desistiu, em todo este processo, de qualquer tipo de isenção. Mas a verdade é que, do PCP, não veio a clareza que, quando isto aconteceu com o Bloco de Esquerda, Catarina Martins transmitiu, dizendo que é ela que fala em nome do BE.

António Costa tem agora poucos dias para chegar a um entendimento com Bloco e PCP. A posição que cada um tomar nestes dias pode vir a determinar o seu próprio futuro. O Bloco já o percebeu e, quer haja bons resultados quer haja um fracasso por via de um recuo dos comunistas, tem todas as condições para ser premiado por isto. O PCP parece estar a vacilar. Mas é bom que perceba que não haver governo à esquerda resulta em mais anos de Passos Coelho e o PS obrigado a viabilizar esse governo. Desta vez o PCP não poderá dizer que foi o PS que se virou para a direita. E será ele o responsável moral e político por isto. Duvido que esteja disposto a pagar esse preço.

Quanto a Costa, não joga apenas, ao contrário do que se escreve por aí, o seu futuro político. O PS está perante uma escolha que determinará o futuro do partido e da nossa democracia. Um governo apoiado pela esquerda é um enorme risco. Mas um risco que vale a pena. É caminho nunca antes desbravado. Um caminho que implica uma clarificação política no PS que representa um enorme perigo para alguns interesses instalados. E isto explica o empenho que tantos têm emprestado ao combate a esta solução. Têm razão: a mudança do nosso sistema partidário, que permite governos de esquerda e impede que o PS esteja quase sempre refém do centro-direita, muda mesmo a política nacional.

O registo “abstenção violenta” não tem risco algum. O resultado é conhecido. Será, como foi por essa Europa fora, mais uns pregos no caixão do centro esquerda. Não me espanta, no entanto, que haja quem, no PS, não se importe de cumprir esse papel. Alguns deles (outros apenas terão a convicção de que este é o melhor caminho) não estarão especialmente preocupados com o seu próprio futuro político. Como sabemos, há sempre outros futuros. Será por isso interessante perceber se há quem, no PS, esteja disposto a violar a disciplina de voto (que é, no caso de moções de rejeição, confiança e censura, assim como nos orçamentos de Estado, um dever partidário cuja violação pode acarretar medidas disciplinares) para defender outros interesses. Sinceramente, acredito que os rostos mais importantes não iriam tão longe. E que a sobrevivência de um governo de Passos pelo voto de figuras de segunda linha compradas pela coligação tornariam a própria sobrevivência de um governo do PSD e do CDS num caso ético. É bom perceber que no dia em que os partidos deixarem de votar em bloco na viabilização de governos, o nosso atual sistema eleitoral e político torna-se insustentável. Nunca mais haverá um governo estável.

Vamos então por partes. Agora Passos forma governo. E formará um governo que mostre a unidade da direita neste momento de combate. Se PS, BE e PCP estiverem à altura dos seus deveres e chegarem a acordo sólido, fazem o que a democracia impõe: representam a maioria que neles votou, põem fim a um Governo que perdeu o apoio da maioria do país e garantem uma alternativa com apoio da maioria dos deputados. Se algum deles falhar, não resta a Costa outro caminho que não seja a viabilização de um governo minoritário de Passos, a demissão e a entrega do partido a um Assis qualquer, para tratar de gerir as abstenções violentas e o processo “pasokização” do PS. Mas que não se entusiasme quem, à esquerda, julgar que ganha alguma coisa com isto.

Os eleitores que votaram, na sua maioria, para correr com Passos Coelho, não perdoarão a quem puser os seus interesses partidários à frente da urgência deste momento. O caminho que se começou já não tem retorno possível. Quem recuar pagará o preço.

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