NUNCA HOUVE TANTAS BOAS ALMAS

(In Blog O Jumento, 22/12/2017)
caridade
Os pobrezinhos, as crianças, os idosos, os sem-abrigo portugueses estão cheios de sorte, de repente percebemos que neste país há uma boa alma por metro quadrado, gente que vive para ajudar os outros, que cria instituições, que gere os dinheiros do Estado bem melhor do que os gestores que são funcionários.
É uma espécie de paraíso na terra, um mundo de imensa bondade, de gente fina, exemplar, de políticos dedicados. A economia social, ou, como alguns preferem designar, o terceiro setor é uma espécie de antecâmara do Céu, cheio de gente bondosa com lugar cativo no paraíso. Vivem para os outros, empregam-se nas IPSS para servir os outros, inventam IPSS para servirem os outros, uns fazem-no por amor a Deus, ou por impulso cívico.
Quanto a nomes seguem a veia criativa nacional, que sempre arranjou bons nomes para tudo, até para os navios negreiros a nossa criatividade não tinha limites, chamavam-se Amável Donzela, Boa Intenção, Brinquedo dos Meninos, Caridade, Feliz Destino, Feliz Dias a Pobrezinhos, Regeneradora. Nas IPSS até se repetem os nomes, há muitas Mão Amiga, desde o lar de crianças da IURD até uma IPSS de Vila Real de Santo António fundada como o patrocínio de uma deputada do PS, mas sobre a qual o PSD lançou uma OPA.
Os nossos pobrezinhos e todos os que sofrem são uns sortudos, não lhes faltam donativos empresariais, voluntários, políticos disponíveis para cargos não remunerados, especialistas a oferecerem-se para ganhar avenças, gente que dá o seu melhor. Padres, bispos, patriarcas, primeiras-damas, esposas dos donos das televisões, tudo gente voluntária e cheia de amor para dar, com sorte até são servidos por um Presidente que de caminho ainda lhes endireita o nariz do desenho, por estar muito virado para a esquerda.
Portugal não se pode queixar de ser pobre porque, pode ser um dos países mais pobres da Europa, mas não faz mal; com tanta boa alma é certamente o país onde os pobres são mais felizes, até duvido que com tanta mordomia e afeto queiram deixar de ser pobres. O que seriam dos pobres se um dia enriquecessem e deixassem de contar com todo este amor?
Portanto, nesta época natalícia devemos agradecer a toda essa gente bondosa que distribui afetos, atribui subsídios, oferece-se para servir jantares, que todos os dias se metamorfoseia em bondosas e graciosas borboletas, uma espécie de fadas madrinhas que voam sobre a pobreza distribuindo graças, abraços, subsídios e sopas quentes.

Défice de Europa

(Marco Capitão Ferreira, in Expresso Diário, 10/05/2017)

capitaoferreira

Dia 9, ontem, foi dia da Europa. Se não deu por isso não se preocupe, ninguém está para grandes comemorações e a coisa está reduzida, na melhor das hipóteses, a um inofensivo pró-forma. O que não vai mal com o estado do projecto Europeu, diga-se.

Se Schuman, cuja corajosa Declaração se fez precisamente num 9 de Maio, mas de 1950, cá estivesse para ver no que isto deu era capaz de se arrepender de alguma vez ter dito que “A Europa não se fará de um golpe, nem numa construção de conjunto: far-se-á por meio de realizações concretas que criem em primeiro lugar uma solidariedade de facto”.

Falar hoje, nesta Europa, neste tempo, de solidariedade de facto é coisa para pôr Gregos a rir – o que até é simpático, por estes dias não é como se tivessem muito do que se rir – e alemães também, mas por diametralmente opostas razões.

Falar de solidariedade é sujeitarmo-nos a um ou outro olhar desconfiado, provavelmente oriundo de uma Pessoa Muito Séria. São sempre solenes, compostas e graves, as Pessoas Muito Sérias, especialmente quando nos explicam que se pode arranjar uns milhares de milhões de euros para ajudar a Banca, mas é absolutamente imprescindível cortar pensões de umas centenas de euros.

Mas tergiverso, facto que trago à colação apenas para poder integrar o rarefeito olimpo de pessoas que já escreveram tergiverso (e vão duas, assim mesmo, sem mais nem ontem) num texto destinado a publicação.

A Europa de que Schuman falou, a Europa que acolheu a Alemanha e a Itália, vindas do mais repugnante e violento fascismo, no seio das nações civilizadas, praticando o perdão de que os católicos gostam de falar (e quase só falar), a Europa que abriu os braços a Portugal, Grécia e Espanha, ainda sob o peso de longas e brutais ditaduras que nos afastaram do desenvolvimento humano e económico, a Europa que não hesitou em tornar a queda do muro de Berlim num momento de celebração, ao invés de ter mandado contabilistas míopes explicar que a República Federal ia ter de empobrecer se queria a reunificação, a Europa, enfim, que tanto conseguiu, a Europa que prometeram à minha geração não é isto. Não pode ser isto.

Isto, meus amigos, não é nada. Dessa outra Europa, queremos mais. Desta, como está, queremos cada vez menos. Uma Europa que é capaz de criar um mercado comum mas não é capaz de, solidariamente, ter políticas sociais comuns é uma falácia que convém a alguns ir afirmando, mas que não passa disso mesmo.

Somos, hoje, 500 milhões de pessoas, 28 países (até ver), o maior PIB do Mundo, e o segundo maior PIB per capita. Temos um modelo de Estado de Direito Democrático consolidado. Somos capazes de tudo quanto quisermos ser capazes. Falta querer. E falta, acima de tudo, exigir nada menos do que o que podemos ter. Ou a Europa que nos prometeram ou um novo modelo de Europa, mas que garanta o essencial. Paz.

Espero, sou pai, acreditem que espero mesmo muito, que não tenhamos um dia de nos lembrar que na mesma Declaração, Schuman lembrou, referindo-se aos anos 30 e 40 que “A Europa não foi construida, tivemos a guerra.”. Só uma Europa unida pode resistir às instabilidades que possam existir, dentro e fora do seu espaço. Os populistas dos anos 20 e 30 já aí andam de novo.

Com o mesmo ódio, o mesmo asco ao outro, o mesmo apelo para as massas. Sejamos sensatos. Sejamos Churchill e não Chamberlain. Dava jeito.