Se ainda ao menos pedissem com maneiras…

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 09/03/2019)

Miguel Sousa Tavares

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1 Vejo na televisão a conferência de imprensa do presidente do Novo Banco, António Ramalho, a anunciar que vai pedir mais 1150 milhões de euros ao Fundo de Resolução e depois vejo-o a ser entrevistado na RTP. Tenho de fazer um esforço para me conter e não atirar com o que tenho mais à mão ao ecrã de televisão, que não tem culpa nenhuma de abrigar aquele sujeito. Mas o tom displicente, a indiferença com que ele anuncia como coisa banal que nos vai voltar a assaltar, depois de no ano passado nos ter já levado 800 milhões, é um insulto, uma ofensa gratuita de um senhor que brinca aos banqueiros com o dinheiro dos outros. Com o dinheiro dos outros bancos e com o dinheiro dos contribuintes. Que, descansado nas garantias que os seus patrões receberam na compra do banco, nem se dá ao trabalho de justificar as “imparidades” que usa para explicar a sua nova exigência e, menos ainda, justificar a sua impossibilidade de cobrança. E que até tem a lata de se gabar que, não fossem as tais “imparidades” e até teria fechado o exercício de 2018 com o astronómico lucro de 2,2 milhões de euros — numa altura em que toda a banca à sua volta, por meios talvez não muito prudenciais, acumulou lucros de centenas ou milhares de milhões.

Faz muito bem Mário Centeno em ordenar uma auditoria às tais imparidades e à necessidade de nova e brutal injecção de capital contingente no Novo Banco. À boca cheia comenta-se por aí que tudo isto é muito estranho e encaixa perfeitamente no perfil do “fundo abutre” que comprou o NB. Que os tais créditos ditos incobráveis poderão estar a ser vendidos ao desbarato a empresas de cobranças para assim limpar o passivo do banco, com a garantia de serem cobertos na totalidade pelo Fundo de Resolução — ou seja, pelos restantes bancos ou, na sua impossibilidade, pelo Estado, nos próximos 30 anos. E diz-se que seguramente o NB vai utilizar o tal capital contingente até ao limite negociado e até ao prazo fixado de 2025: 3,9 mil milhões. Vamos, pois voltar a ver mais vezes o senhor António Ramalho numa televisão perto do nós. É o homem do fraque. Parece que lhe devemos dinheiro, só não sabemos porquê.

Havia alternativa a esta venda? À data da Resolução, Carlos Costa garantia que sim: que se tratava de um “banco bom”, que começava justamente sem imparidades e capitalizado em quase 5000 milhões pelos contribuintes. Num par de anos, a coisa estava vendida e bem vendida e o dinheiro dos contribuintes de volta. Depois, ainda lá injectou mais 2000 milhões indirectamente, fazendo passar para o “banco mau” o resultado de um investimento financeiro no antigo BES — operação essa que haveremos de pagar um dia, com juros. Mas, fosse porque aquilo começou logo a ser mal gerido, fosse por outra razão qualquer, as tentativas para vender o NB foram falhando uma após outra. Hoje, Carlos Costa dá a entender que, afinal, a situação do NB, à data da Resolução por ele decidida com o apoio do governo de então, não seria assim tão boa. Porque avançou para ela, então? Porque, explicou ele há dias, “num fim-de-semana, não há tempo para perceber tudo”. Ou seja, avançou às cegas, atirou o barro à parede a ver se pegava. Não pegou. Oh, que pena, desculpem lá qualquer coisinha, foi com a melhor das intenções.

E, então, chegou este Governo e vendeu como vendeu à Lone Star, de péssima reputação. António Costa defendeu-se anteontem no Parlamento: não tinha alternativa. Ou melhor, tinha duas, ambas piores, segundo ele: ou liquidava o banco, lançando o pânico no sistema bancário e tendo de assumir as responsabilidades perante os depositantes até aos limites legais, ou o nacionalizava e, em vez de “emprestar” dinheiro ao Fundo de Resolução, com um limite temporal e material fixado em cerca de 3,5 mil milhões, o Estado teria de se empenhar para sempre, a fundo perdido e sem limites. À esquerda do PS a nacionalização continua a ser a solução preferida, mas, depois de todos termos assistido ao que deu a gestão pública da banca, quem é que ficaria sossegado com tal solução?

Toda a história do BES/Novo Banco é uma história tenebrosa que, contada, custa a crer. É um pesadelo labiríntico em que, quando se julga que já se viu tudo e já nada de pior pode acontecer, saltam novos demónios do armário e quando se pergunta se não é possível matar de vez o monstro a resposta é não: estamos condenados a viver com ele e os seus caprichos para sempre. E esta é a história de toda a nossa banca: não sabemos geri-la, não sabemos regulá-la, não sabemos fiscalizá-la. Olhem, por exemplo, para o pequeno Montepio do pequeno Tomás Correia: olhem, basta olhar. Aquilo vai acabar mal, só pode acabar mal. Já se percebeu há muito tempo, mas o homem lá continua, a tratar de se tornar impune no futuro, a tratar da vidinha e a proteger-se com uma legião de notáveis amigos, enquanto cá fora ainda se discute quem é que tem competência para o fiscalizar! Durante anos venderam-nos a tese de que ter uma banca nacional era essencial para garantir o apoio às nossas empresas e o financiamento da nossa economia, que, no fundo, era uma forma de garantir a soberania económica. Pagámos muito cara essa soberania económica! E hoje, que tirando a coutada do senhor Tomás Correia, já não resta nenhum banco privado português, não fosse o fardo do que resta de dinheiros públicos na Caixa e no NB, dormiríamos todos muito mais descansados: porque os outros bancos são todos estrangeiros, e se perderem dinheiro é lá com eles.

2 Não sei que preclaro espírito do Governo se lembrou de preconizar a criação de um tribunal, que começou por ser anunciado “especial” e depois passou, mais prudentemente, a “especializado”, para julgar os crimes de violência doméstica. E não sei se a proposta terá surgido na hora da sesta para apanhar os ministros todos a dormir, porque, com tantos juristas na sala, não se entende como é que alguém não matou logo ali o devaneio, dizendo: “meus senhores, vão ler a Constituição”. Porque, de facto, chamem-lhe especial ou especializado, a Constituição, e muito bem, não permite a criação de tribunais diferenciados para o julgamento de certos tipos de crimes. E não foi apenas a memória dos cobardes Tribunais Plenários da ditadura que tolheu a mão ao legislador constituinte. Basta pensar em como seria a composição de um tribunal desses — por exemplo, de um tribunal para julgar crimes de violência doméstica: os juízes seriam escolhidos ad hoc ou submeter-se-iam a um concurso? E seriam aceites por que outros critérios que não políticos e ideológicos? E por quem? E quem os classificaria e de acordo com que critérios?

São disparates destes, feitos sem pensar, que dão aos juízes argumentos para poderem dizer que a política se quer intrometer naquilo que é da Justiça, limitando a sua independência. A pior coisa que se pode fazer numa situação de guerra, como aquela que efectivamente vivemos nesta matéria da violência contra as mulheres, é começar a disparar em todas as direcções sem antes ter um plano concertado de batalha.

(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)



De resolução em resolução …

(Ricardo Cabral, in Público, 14/06/2017)

cabral

Apesar de elogios e auto-satisfação (e.g., p. 3 e 4 deste relatório), a União Bancária não vai bem. Numerosas intervenções na banca europeia, sobretudo nos países do sul, e a aplicação de várias medidas de resolução são disso sinal.

A segunda maior medida de resolução de sempre acabou de ser aplicada, na semana passada, ao Banco Popular, de Espanha, e agora é o Liberbank, outro banco espanhol, que está sob ataque especulativo, com o regulador a proibir a venda de acções a descoberto. Outros dois pequenos bancos italianos estão também sob pressão, mas protegidos pelas palavras e pela acção do ministro das finanças italiano, alguém que, até agora, não se tem deixado intimidar, nem pelo BCE nem pela DGComp.

Em Portugal, desde 2014, todos os bancos de média e grande dimensão foram afectados pela União Bancária, sob a ameaça permanente, subliminar ou explícita, da aplicação de uma medida de resolução, ou mesmo através da aplicação de tal medida: Millennium BCP, BPI, BES, Novo Banco, Banif, CGD, Montepio e Banco Popular e até o Santander Totta.

Sinal de que estava tudo mal antes e que agora finalmente o sector começa a ser reequilibrado? Ou, sinal que os “checks and balances” não são apropriados e que os poderes públicos concedidos ao BCE e ao Conselho Único de Resolução, no âmbito da União Bancária, são excessivos?

A banca em Portugal (e também na zona euro) está a ser reinventada de um dia para outro e, em consequência, não obstante rácios de capital crescentes, o crédito ao sector privado tem continuado a cair em Portugal, não obstante a “elevada” taxa de crescimento da economia. Em consequência, a banca nacional está a contribuir para travar o crescimento da economia nacional.

É fundamental a existência do instrumento de resolução bancária, mas não deve, não pode ser utilizada pelo supervisor – como na prática foi – como mecanismo de pressão e arma de “destruição maciça” para ameaçar bancos existentes, para ameaçar políticos, para promover fusões e aquisições a preço zero e para promover política industrial na zona euro.

Com efeito, a directiva europeia de resolução bancária não é adequada: em vez de ter como objectivo primeiro preservar actividade económica e prevenir crises bancárias, os seus objectivos parecem sobretudo políticos: a medida de resolução é a medida de primeiro recurso parecendo que procura encontrar e punir culpados e assegurar que o Eurosistema – principal credor da banca da zona euro – não sofre quaisquer perdas nas suas operações de política monetária. O actual desenho da resolução bancária, firmemente sob a mão do BCE, que é simultaneamente credor e supervisor, contribui para precipitar e acelerar a corrida aos depósitos de bancos em situação difícil.

A resolução bancária é um instrumento que beneficia de uma excepção ao regime normal de falência e liquidação de empresas, porque é reconhecido o papel crucial de um banco numa economia de mercado. Tem de ser, por conseguinte, um instrumento de excepção, porque de facto se situa nas ”franjas” do estado de direito democrático. Implica factos consumados: expropriação de propriedade, encerramento de empresas, despedimentos e redistribuição de riqueza, sem que as partes afectadas com a medida de resolução possam defender, previamente, os seus direitos, nomeadamente, fazendo-se representar em Tribunal.

A forma como a medida de resolução foi aplicada ao Banco Popular foi “assustadora”. Em comparação com o BES e com o Banif, nem sequer foram criados bancos de transição ou novos bancos. Pura e simplesmente foi “tirada” a propriedade a uns e “transferida” para o Santander … por um euro.

Fácil para o supervisor e Conselho Único de Resolução que assim resolveram o Banco Popular e não têm mais … “chatices”. Mas o que distingue, então, a sua acção do modus operandi de Estados que não são estados de direito?

O Banco Popular desaparece. Cerca de 3000 funcionários perderão o seu emprego e haverá encerramento de balcões. Haverá menos concorrência no mercado bancário espanhol e português. As comissões cobradas irão previsivelmente subir. E, devido à forma como os bancos estão obrigados a limitar o risco de crédito que têm junto dos seus clientes empresariais, alguns destes clientes, que antes possuíam crédito com o Santander e com o Popular, terão de procurar outro banco, porque provavelmente será ultrapassado o limite de crédito no banco conjunto. Vidas e actividade económica que, de um dia para outro, sofrem uma reviravolta completa, determinada pelos reguladores.

E o problema é que o sinal foi dado. O Banco Popular não estava numa situação financeira robusta. Mas, mesmo que estivesse, a mensagem na zona euro parece ser: a única maneira de escapar à resolução é tornar-se num banco gigante, demasiado grande para falhar, como o Santander, ou o Deutsche Bank. De contrário, se um banco na zona euro for atacado pelos mercados, o fim é certo.

Se continuarem a ser aplicados cegamente os mesmos critérios, o Banco Popular terá sido, apenas, mais um de muitos a cair depois de um ataque especulativo e uma corrida aos depósitos. Um remake do que acontecia nas crises bancárias de outrora, em que corridas a bancos precipitavam a sua queda!

Mas embora todos sejam iguais, há sempre uns mais iguais que outros! Por isso, é natural que sejam alterados os critérios, discretamente, para assegurar que a resolução de bancos não vire “a linha de montagem” que tem sido desde a nova legislação sobre a União Bancária na zona euro. O problema é que essa alteração já virá tarde demais para países como Portugal.