A guerra civil e a história

(Pacheco Pereira, in Revista Sábado, 05/08/2021)

Pacheco Pereira

Em vários momentos da nossa história os portugueses mostraram como a frase salazarista sobre a bondade “dos nossos costumes” é completamente falsa. Estivemos em guerra civil durante anos no início do século XX, tivemos a nossa quota de assassinatos políticos na Monarquia e na República.


Há uma certa razão para a ideia que está na base da Wikipédia, uma enciclopédia feita a partir da lei dos grandes números – se milhares de pessoas participam na elaboração, correcção e melhoria de um determinado artigo, tenderão a corrigir-se umas às outras, até haver estabilidade no texto de uma qualquer entrada. O que acontece não comprova esta ideia ingénua, e isso é particularmente nítido nos artigos relativos às ciências humanas, embora também aconteça em matérias científicas. Se um artigo sobre a geometria de Euclides pode estabilizar-se e conhecer apenas pequenas melhorias, tendo os erros mais flagrantes, caso tenham existido, já há muito ficado para trás, o mesmo não se passa numa artigo sobre Maomé ou sobre José Sócrates. Artigos sobre a Covid, as vacinas, sobre o 5G, as alterações climáticas, não conhecem descanso e muitos deles têm de ser controlados por um esquema semelhante à peer review das enciclopédias tradicionais, ou dos artigos académicos.

A permanente introdução de teorias conspirativas, factos infundados, teorias não científicas, ataques pessoais, preconceitos políticos, politização e ideologização faz com que os artigos sobre matérias de ciências humanas – por exemplo, religiões, biografias, interpretações de eventos, sociologia, identidades nacionais, e história – estejam sempre a mudar em função do grupo de interesse que os coloca ou os altera, e têm de ser controlados para se manter um núcleo factual. E mesmo assim a maioria dos artigos nesta área são inaceitáveis pela investigação e devem implicar todos os cuidados. Na maioria dos cursos em universidades sérias é proibido usar a Wikipédia como fonte de um qualquer trabalho escolar ou de investigação.

Se isto é assim com a Wikipédia, imaginem o que a tribalização acelerada dos nossos dias conduz disciplinas como a História, que se tornam palco de uma guerra civil interpretativa ao serviço da propaganda política, e do conflito político e ideológico. Este processo tem vindo a dominar qualquer debate sobre factos históricos em Portugal, muitas vezes com a colaboração de autores e de académicos que não têm pejo de usar os seus trabalhos para legitimar posições políticas que precisam de novas formas de revisionismo para se legitimarem quando o seu lado tem uma “má” história.

Os temas do espelho
Os temas do espelho do tribalismo histórico são a ditadura, a guerra colonial, o 25 de Abril, a construção da democracia, o comunismo e o socialismo. Nalguns casos a guerra começa logo nos nomes, onde está ditadura coloque-se Estado Novo, onde está guerra colonial coloque-se “guerra do ultramar”. O 25 de Abril é o “golpe” do 25 de Abril, ou a “Abrilada”. A democracia é cada vez mais tratada como o regime da corrupção, e o comunismo e socialismo são-no sob a forma de “anti”.

Na verdade, nada disto é novo, se caminharmos para o início do século XIX, nas lutas entre absolutistas e liberais, existia a mesma dicotomia e a mesma posse de nomes. Mas aí a guerra não era apenas verbal, incluía a luta armada, terminologia actual, ou seja, as pessoas matavam-se umas às outras, nalguns casos com requintes de crueldade. Felizmente ainda não estamos assim, mas já estivemos mais longe. Exagero? Espero bem que sim, mas em vários momentos da nossa história os portugueses mostraram como a frase salazarista sobre a bondade “dos nossos costumes” é completamente falsa.

Estivemos em guerra civil durante anos no início do século XX, tivemos a nossa quota de assassinatos políticos na Monarquia e na República, andámos aos tiros uns aos outros nas incursões monárquicas, a implantação da ditadura foi dura e feroz, depois houve o Tarrafal, violências e torturas sistemáticas, uma guerra colonial com milhares de mortos, terrorismo esporádico à direita e à esquerda, até que tudo assentou para já. De facto, no meio disto tudo o 25 de Abril, mesmo com o PREC, foi manso.


Os milionários sobem ao espaço
E muita gente critica-os por gastarem assim o seu dinheiro, mas eu tenho genuína inveja da forma como o gastaram. Subir até a altitudes quase sem gravidade, flutuar no espaço, experimentar novos engenhos espaciais, ver a Terra como um planeta do alto, tudo isto eu sempre desejei fazer. Mais: ir à Lua ou a Marte, também. Eles certamente também o desejam. Nenhum de nós o vai fazer, mas com pena. Haverá tempos em que passear pelo nosso sistema solar sem ser através de máquinas, poderá ser trivial, mas ainda há muito a fazer com máquinas, que com a actual tecnologia é a forma mais sensata e razoável e barata e eficaz. Voos tripulados têm um pequeno papel e poderão ser uma distracção com pouco valor científico. Enfim…

Tenho, no entanto, um prémio de consolação, o meu nome foi junto com muitos outros num disco duro na sonda Dawn para o grande asteróide Vesta. Já não está mal…

Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico


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Noites de verão

(José Gameiro, in Expresso, 18/06/2021)

José Gameiro

Há uma anedota clássica que se conta a propósito dos portugueses. Estavam quatro maduros, de diferentes nacionalidades, à beira de um precipício. Se se atirassem para uma rede de proteção, teriam um prémio chorudo. Todos o fizeram menos o português. Apesar de todas as garantias, não saía do mesmo sítio. Até que alguém lhe disse que era proibido e ele atirou-se…

Não sei fruto de quê, mas gostamos muito da pequena transgressão. Somos pouco frontais, grandes adeptos do ‘nin’, se alguém é mais direto é porque tem mau feitio. Temos fama de passivos, pouco interventivos civilmente, adoramos dizer mal dos políticos, é verdade que alguns se põem a jeito e são confrangedoramente fracos. Mas a maior parte tem todo o interesse em fazer o melhor que pode e sabe. A pandemia mostrou-nos quem era capaz de ser humilde e verdadeiro e quem falava do alto das suas certezas, muito incertas.

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Vem tudo isto a propósito do novo aumento de casos positivos de covid, na geração entre os vinte e os quarenta anos. Há uns dias alguém preocupado dizia-me: “Pergunta aí em casa se há ideias em como inverter isto, mas não vale oferecer uma bejeca a cada jovem que aceite fazer um teste… Seria bem pensado, mas politicamente incorreto…” Cá em casa, consigo ter muita informação direta do terreno, sobre o que se passa nos fins de tarde e nas noites longas da malta nova.

Alguém acredita, ou acreditava, que quando os bares fechassem cedo a malta dispersava? Ou que seria possível manter a distância social ou usar máscara num bar? Ou já não se lembram que um, não o único, dos objetivos de ir para a noite é o engate? Não se dão beijos na boca de máscara, não há toques com luvas… O que tem acontecido desde há semanas são encontros, festas, sunsets — não conheço um único jovem que diga pôr do sol — com dezenas de rapazes e raparigas que não podem ir para as discotecas e que têm de abandonar os bares quase ao início da noite. Se há fase da vida em que a imaginação é florescente é esta. Não têm faltado ideias para ultrapassar as proibições. Uma das mais originais de que tive conhecimento, foi alugar um barco e fazer a festa no mar, pela noite fora. Noite calma, sem serem incomodados pela polícia.

Com as discotecas fechadas, a necessidade premente de “abanar o capacete” e, ao fim da noite, tentar a sorte, tornava óbvio que a clandestinidade surgiria. E o resultado está à vista. Felizmente não muito grave em termos de internamentos e óbitos, ainda que estejam a aumentar, mas potencialmente severo em termos turísticos. No futebol foi possível fazer testes rápidos a todos os que quiseram e puderam assistir à final da Champions. Não me pareceu que fosse operacionalmente muito complicado. Claro que este tipo de testes vale o que vale, na sua incompleta fiabilidade. Mas a alternativa é pior.

Qual é a dificuldade em exigir às discotecas e aos bares, tal como acontece numa série de eventos, a testagem à entrada? Seguramente que se iriam encontrar alguns positivos, que seriam confirmados, ou não, com um PCR. O verão está a chegar, o cansaço dos jovens é evidente, o acatar as regras está já para lá dos limites. Para eles, viver sem música é impensável. Até estarem todos vacinados o verão acaba… Não entendo como é que no Natal alguns sugeriam o teste rápido para uma festa que dura dois a três dias, com os resultados que se conhecem, e agora não exigem o mesmo para umas horas… Nem pensem que os jovens vão desistir de se encontrarem nas noites quentes do verão. E cada vez que o fizerem vão-se lembrar do Natal e do futebol…


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A entrada dos drones na vida política nacional

(José Pacheco Pereira, in Público, 24/11/2018)

JPP

Pacheco Pereira

Está toda a gente indignada com o “falhanço do Estado” no caso da estrada que ruiu matando pelo menos cinco pessoas. E devem estar não tanto pelo “falhanço do Estado”, porque, para além de ser um falhanço, o falhanço é a regra. A excepção é as coisas funcionarem bem — ou seja, dito à bruta e sem rodriguinhos, Portugal é um dos países mais atrasados da Europa.

Repito: Portugal é um dos países mais atrasados da Europa, em que as infra-estruturas estão envelhecidas ou nunca foram modernizadas, não existem onde deviam existir, em que faltam serviços essenciais por todo o país, com mão-de-obra muito pouco qualificada, com patrões muito mal preparados, com baixa produtividade, com uma administração burocrática que não promove o mérito, e é corrupta e clientelar, com instituições de regulação que não regulam nada, com inspectores que não inspeccionam nada, com um território que não tem qualquer policiamento fora das cidades, com escassez de meios para tudo e abundância de desperdício por todo o lado. Podia encher o jornal todo e ainda dava para muita edição.

Comparem estatística a estatística e, de novo, salvo raras excepções, Portugal fica num mau lugar. Um país com tanto atraso estrutural gera inevitavelmente má governação a nível local e nacional, porque falta massa crítica para fazer melhor. E falta pressão para que tal aconteça. Por isso temos o Estado que temos e somos, por regra, tão mal governados. As desigualdades são talvez a melhor marca desse atraso.

Mudou muita coisa nos últimos 40 anos? Mudou, claro, e muita para melhor, mas o atraso era enorme e hoje continua grande. Como dizem os saudosistas do salazarismo, havia muito ouro no Banco de Portugal, mas o preço desse ouro entesourado era uma elevada mortalidade infantil e analfabetismo, a exploração dos mais pobres, uma guerra e uma ditadura.

O 25 de Abril fez muito para retirar o país do seu atraso, através desse valor intangível da democracia, mas está longe de ter conseguido dar a volta a muito do atraso atávico do país. É como com as chuvas de 1967, que mataram em Loures, mas apenas molharam em Cascais.

Mas não se iludam: a maioria dos portugueses pode protestar muito, nos cafés antigos, e nos cafés modernos que são as redes sociais, mas, com excepção dos seus imediatos interesses, não quer saber muito disto é até colabora participando na pequena corrupção, na fuga aos impostos, nos pequenos truques quotidianos com o ambiente, a qualidade dos alimentos, as obras na casa, etc., etc. Só se preocupa com a pátria pelo futebol e de resto manifesta uma indiferença cívica total.

Porque os portugueses são maus ou um caso perdido? Não, nada disso, são como todos os povos, só que pagam o preço do atraso do seu país, tornando-se, pelas suas atitudes, parte desse atraso. O que é que se espera de pessoas pobres, sem grande educação formal, vivendo uma vida dura, acantonadas num diálogo cívico miserável, que é o que se passa nas redes sociais, sem poder e com muitas dependências para exercer o pouco poder que tem, sem conhecer os seus direitos, numa sociedade e com uma política que faz tudo para os embrutecer?

Mas foram eles que permitiram a negligência criminosa daquela estrada? Não, não foram. É sempre em primeiro lugar o governo. Mas, a sua quota-parte de responsabilidades está na sistemática falta de protesto cívico, de punição pelo voto de autarcas e governantes que tão mal gerem os dinheiros públicos, e por muitas vezes fecharem os olhos ao facto de a gestão ser tão má que deixa cair pontes e estradas, como é má gestão fazer um pavilhão gimnodesportivo que custou milhões e depois deixam estar fechado a degradar-se, mas que queriam muito para a sua terra. Ou quando nem querem ouvir falar do encerramento de pedreiras ilegais ou fábricas pirotécnicas, porque dão emprego onde não existem alternativas. Por todo o país fora, até um dia em que as coisas correm mal.

E também não tenham ilusões: este caso só teve a cobertura mediática que teve porque os cenários eram espectaculares para a televisão, e os drones tornaram muito barata a filmagem aérea. Se as mesmas cinco pessoas morressem numa curva de uma estrada contra uma árvore, mesmo que a curva devesse estar há muito sinalizada e houvesse quem tivesse chamado a atenção para a incúria face ao perigo, as notícias não duravam um dia, nem havia debates, nem ia lá o Presidente, nada. Era um não-caso. Só que, aqui, aqueles gigantescos buracos eram magnífica e dramática televisão, e é por isso que temos um “caso”. Os drones entraram definitivamente na vida política portuguesa.