Vai chegando o pós-covid

(António Guerreiro, in Público, 29/10/2021)

António Guerreiro

Quando a pandemia estava no auge, perguntava-se por todo o lado e de maneira insistente: “Como vai ser o mundo depois da covid-19?” Ao que uns — digamos, os guelfos — respondiam: “Nada deve ser como antes, devemos erguer barreiras contra o regresso à ordem anterior à crise sanitária, de modo a evitarmos o desastre, agora que ficámos a saber que afinal é possível suspender de maneira global e no mesmo momento um sistema económico que tinha o benefício do argumento da força irreversível, como o comboio do progresso que avança sobre carris e não pode ser desviado”. E os outros — digamos, os gibelinos — retorquiam: “É preciso relançar o mais rapidamente possível a produção, erguendo um plano de resiliência e lançando-nos na batalha da recuperação”.

Pouco mais de um ano depois, começamos a perceber que nem sequer é fácil decidir sob que condições podemos declarar que entrámos num tempo pós-covid. Em primeiro lugar porque o vírus, num certo momento, perde força nalgumas regiões e a sua difusão parece controlada, enquanto se dá o seu recrudescimento noutras regiões (mas algum tempo depois pode dar-se uma alternância). Em segundo lugar porque a passagem ao pós-covid não pode ser proclamada com base na experiência dos cidadãos, depende de decisões políticas e essas não se regem universalmente pelos mesmos critérios: há factores culturais que contam bastante e desde o início tornou-se evidente que ser de esquerda ou de direita é um factor que influencia fortemente a imposição das restrições e o seu levantamento. Em terceiro lugar porque os impactos da pandemia não são apenas sanitários, são também económicos e sociais. Há efeitos em vários planos e, por isso, em rigor, só podemos dizer que entrámos no tempo pós-covid quando todos eles estiverem controlados.

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Podemos então perceber que por enquanto, e talvez por muito mais tempo do que previmos a partir do momento em que surgiram as vacinas, não existe uma resposta clara quanto à definição do pós-covid. E há sinais de que as crises se vão encastrando umas nas outras. Que a crise sanitária potencie crises políticas, era previsível. Mas começa a ganhar forma uma crise um pouco obscura, com uma origem indefinida ou que ainda não nos foi explicada devidamente. De repente, instalou-se a ameaça de que tudo começa a faltar: primeiro, foram os combustíveis em Inglaterra e os chips para a indústria automóvel. Aí, as anomalias pareciam dever-se meramente a problemas logísticos. Mas agora, quando nos é dito, e isso se torna um assunto importante na Feira do Livro de Frankfurt, que começa a haver falta de papel para fornecer a indústria editorial, já estamos muito para além dos problemas logísticos (ou é o que parece a quem desconhece os meandros). E quando se começam a ouvir avisos públicos de que o próximo Natal será marcado pelo que vai faltar, há boas razões para pensar que estamos longe de alcançar o tempo pós-covid. De Espanha, tal como antes de Inglaterra (mas aqui o Brexit serviu de explicação), chega-nos a notícia de que faltam milhares de camionistas, e faltam carpinteiros, e faltam electricistas, etc. Por cá, estas faltas não são certamente menores, mas há algum cuidado em publicitá-las.

O que é intrigante para o leigo cidadão é porque é que passámos da abundância à falta de tanta coisa sem termos mudado de regime económico. É certo que houve o tempo de desaceleração da máquina produtiva (mas também da máquina consumidora) durante algum tempo. Mas isso não explica tudo o que se está a passar hoje. O regime da falta é o que de mais perturbante existe na regra económico-política em que vivemos, no coração do capitalismo globalizado. A falta era um problema do mundo periférico, subdesenvolvido, onde tudo o que sucede, fenómenos naturais, políticos ou sociais, se traduz em catástrofe.

A velocidade do tempo catastrófico também não é o mesmo em todo o lado. No mundo rico, ocidental, a catástrofe é sempre lenta, a não ser aquela que é causada por desastre naturais (por exemplo, um vulcão que entra em erupção na ilha de La Palma); no mundo pobre, a catástrofe chega sempre em grande velocidade.

Para o mundo rico, o tempo da catástrofe avança quase sempre de maneira gradual e progressiva. Por isso, começa por ser imperceptível. Tão imperceptível como o Messias que, na mística judaica, chega todos os dias mas ninguém dá pela sua vinda.



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A falta de médicos e os submarinos alemães

(Francisco Louçã, in Expresso, 09/07/2021)

A falta de médicos não se deve ao inconveniente da deslocação para o interior ou à inércia. 709 mil das 1058 mil pessoas sem médico de família vivem na capital. Faltam porque não há.


Um estudo revelou esta semana que o número de pessoas sem médico de família voltou a passar o milhão, o que não acontecia desde há cinco anos. Aliás, o tema foi então um centro da luta política, dado que o Governo eleito em 2015 tinha assegurado que haveria médico de família para cada pessoa sem falta até 2017, um compromisso importante e que revelava a sua preocupação com o reforço dos centros de saúde. Promessa solene, contas feitas, fracasso total. Nunca terá havido menos do que 700 mil pessoas sem médico de família e agora a situação piorou.

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Como seria de esperar, a pandemia agravou a dificuldade, dado que exigiu muito mais do Serviço Nacional de Saúde, em condições de acesso mais difíceis. Entre março do ano passado e fevereiro de 2021, o número de consultas médicas presenciais nos centros de saúde terá diminuído em 46%, ou menos nove milhões de consultas, se bem que uma parte desse atendimento tenha prosseguido por via remota. No entanto, sempre que a consulta exige o contacto direto com os doentes, essa redução agrava os riscos de saúde. Esse impacto dificilmente podia ser minorado, nas condições em que pouco se sabia da doença e era preciso impor medidas prudenciais. Mas o desinteresse dos governos pelas condições estruturais do SNS agravaram uma fragilidade fundamental, que agora derrapou para números pesados.

A razão para a falta de médicos nos centros de saúde não é o inconveniente da deslocação para o interior, ou a inércia dos próprios profissionais. De facto, 709 mil das 1058 mil pessoas que não têm médico de família vivem na área de Lisboa e vale do Tejo. É na capital que faltam mais médicos. E faltam porque não há. Como se antecipava, este ano e no ano passado temos um pico de aposentações e os novos concursos ficam meio desertos, dado que os incentivos e a carreira assegurada a estes profissionais de há muito que não correspondem às necessidades do SNS. Já se sabia disso tudo.

Assim, é na gestão das capacidades profissionais que se revela a maior falha dos ministérios da Saúde (ou das Finanças, para ser justo não há ministra da Saúde que não saiba como resolver o problema). A evolução do número de médicos no SNS demonstra-o: ao longo de 2020, quando a pandemia explodiu, o serviço público foi sempre perdendo capacidade e em dezembro havia já menos 945 médicos do que em janeiro (foram recrutados alguns milhares de enfermeiras, mas ainda temos um rácio inferior ao da média europeia). Todo o ano de 2020, quando foram precisos mais profissionais para enfrentar o fluxo de doentes covid, foi um desastre, deixou-se andar. Entraram depois, só em janeiro, quase dois mil médicos que tinham terminado a licenciatura no verão anterior, iniciando então os seus estágios de especialidade. Entretanto, até maio já perdemos mais 400 médicos, tanto para a aposentação como para o privado. Todos os anos é assim e vai continuar a ser mês após mês. As promessas de novos concursos são entretenimento político.

A reforma estrutural que se impõe, e o nome aplica-se aqui, é de há muito conhecida: ir buscar médicos ao privado, oferecendo boas condições profissionais e criando carreiras com exclusividade que sejam a base do SNS. E, agora que vem uma “chuva de milhões” dos dinheiros europeus, como se diz, o Governo anunciou que a decisão sobre exclusividade é adiada. Será no dia de São Nunca, depois do almoço, para ser mais exato.


A maldição dos submarinos alemães

Quando foram vendidos submarinos alemães a Portugal, à Grécia e à Coreia do Sul, as evidências de corrupção incomodaram a agenda política de cada país e nos casos mais afortunados chegaram à barra dos tribunais.

Entre nós foi decidido arquivar o caso, bastou que na Alemanha houvesse quem fosse condenado por corromper autoridades portuguesas, era escusado incomodar os outros beneficiários do esquema.

Agora, a maldição dos submarinos alemães volta a assombrar a Europa, com a venda de seis unidades de Tipo 214 à Turquia.

O negócio já tinha sido assinado há uma dúzia de anos, mas o primeiro submarino chega brevemente e o Governo da Grécia reagiu violentamente, pedindo um embargo de venda de armas ao seu rival estratégico, o que foi liminarmente recusado. O contrato vale cerca de um quinto do total das exportações de armas alemãs numa década — é uma razão forte. E como a Grécia compra ­aviões franceses e duplica este ano os gastos militares (mas ainda assim são metade dos da Turquia), o negócio é bom para muitas potências.

O Governo turco sabe que dispõe de carta branca, Merkel protege a venda dos submarinos. Além disso, Erdogan até pode comprar ao mesmo tempo armas à Rússia, mas, como faz parte da NATO e constitui a sua frente no leste do Mediterrâneo, e para lá é terra incógnita depois da derrota da aliança no Afeganistão, é inimputável. Bem pode ameaçar, que até é pago para isso. A União Europeia já desembolsou seis mil milhões de euros pela contenção de refugiados e, na cimeira que devia ter discutido o embargo de armas, decidiu reforçar a dotação para Erdogan em mais três mil milhões. O Presidente turco faz o que quer, a Alemanha fica com uma parte do lucro, tudo corre bem. A NATO aguenta a guerra intestina entre pretensos aliados, a Síria sofre as incursões turcas, Chipre continua dividido… O que é que isto tem de anormal?


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O crescimento da má educação

(Pacheco Pereira, in Público, 26/06/2021)

Pacheco Pereira

O incremento da rudeza, brutalidade, má educação tem sem dúvida que ver com a pandemia, que põe as pessoas fora de si. Vão para a rua e olhem com atenção. Não é um espectáculo bonito.


Não sei bem como lhe chamar. “Má educação” é um termo muito ambíguo, “incivilidade” demasiado intelectual. Vou ficar-me pela “má educação”, que sempre diz mais do que incivilidade. Depois é uma matéria que é irrelevante para muita gente e demasiado importante para alguns. Há brutos e há flores de estufa. É uma matéria que não é sentida da mesma maneira quando se é mais novo ou quando se é mais velho. E é de difícil tratamento objectivo, não há um padrão que permita definir o que é “boa educação” ou “má educação”. Depois, há atitudes que para uns são condenáveis, para outros normais ou indiferentes. Há locais onde a “má educação” é a regra, como é o caso das brigas entre condutores. À segunda troca de palavras vêm os insultos mais grosseiros. Outra palavra, “grosseiro”, outra ainda “rude”, que fazem parte deste grupo de caracterizações de alguma coisa sobre a qual a maioria das pessoas tem opinião, mas que ninguém é capaz de teorizar, muito menos medir. Vicente Jorge Silva provou desta complexa confusão quando chamou a uma geração de jovens estudantes “geração rasca”, e provocou um efeito de revelação, eles eram mesmo “rascas”, ou uma caterva de críticas pelo atrevimento do julgamento.

Dito tudo isto, parece-me, pela medida mais empírica e subjectiva que se tem nestas matérias, que a má educação, agora sem aspas, está a crescer. Há cada vez mais pessoas a tentar passar à frente nas bichas de supermercado, nas filas das vacinas, nas filas para entrar em lojas ou restaurantes. Pode-se dizer que isto se passa porque há mais filas. As restrições da pandemia geraram um mundo de filas e consequente perda de tempo e isso irrita as pessoas. Por isso, as passagens à “má fila” ou as estratégias para fazer de conta que se está indevidamente à frente de alguém são cada vez mais comuns. Experimentem protestar. Das duas, uma: ou o protesto é colectivo e a fila que foi ultrapassada protesta toda em uníssono e o prevaricador é posto na ordem, ou quem protesta é olhado de alto abaixo como um excitado pelo seu direito individual à ordem de chegada.

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Reparem como num multibanco, coisa que há cada vez menos, alguém leva um monte de papéis para processar, ocupando a caixa durante muito tempo sem consideração pela fila que está atrás. Ou como quem faz cargas e descargas de forma mais caótica e fora de horas, ocupa uma fila de trânsito, reage com veemência afirmando o direito de quem “está a trabalhar” e todos os outros a preguiçar e, por isso, pode parar onde quer, e como quer e durante o tempo que quiser. Não pede desculpa, nem acelera as entregas, nada, acaba e parte para outra como se nada acontecesse. O mesmo quando um carro impede a saída de outro e o que era o obstáculo acha que não tem de se justificar e tira o veículo prevaricador com maus modos.

Já não me refiro sequer a jovens famílias que acham normal as suas crianças andarem aos encontrões e a jogar a bola com total desrespeito pelos que estão num jardim ou parque a descansar, a ler, ou simplesmente desejam estar sossegados, e no intervalo em que estão a comer, estão a jogar à mesa, os adolescentes e os adultos ao telemóvel, num espectáculo de uma peculiar sociabilidade zero. Percebe-se como isto é absolutamente normal para os pais e mães e experimentem chamar a atenção de que é suposto as suas criancinhas serem controladas para não incomodar terceiros e vão ver a fúria e os impropérios com que afirmam o seu direito a que “ninguém se meta na sua vida”.

O incremento da rudeza, brutalidade, má educação tem sem dúvida que ver com a pandemia, que põe as pessoas fora de si, obrigando-as a suportarem-se demasiado perto dentro das casas confinados. Há demasiadas desgraças, que depois vêm cá para fora. Estas atitudes comunicam com a violação das regras de saúde, com o laxismo, com a indiferença face aos outros. Nestes dias de recuo no confinamento pagamos demasiado caro esta incivilidade, esta má educação, porque ela vai direitinha ter com estes comportamentos que todos podemos observar. Os que furam as filas não mantêm qualquer regra de diferenciação social, os que deixam os pequenos selvagens à solta estão-se marimbando para usar máscara.

O problema é que a má educação é uma forma de agressividade cujos alvos são os mais fracos, os mais bem-educados, os mais velhos, os que têm menos defesas. Vão para a rua e olhem com atenção. Não é um espectáculo bonito.


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