Erdogan – o Irmão Muçulmano que deseja ser califa

(Por Carlos Esperança, 22/03/2019)

Ergodan

Não basta deplorar a conduta de um fascista australiano de 28 anos, ligado à extrema-direita, abertamente antimuçulmano e anti-imigração, que deixou 50 mortos e 48 feridos no ataque a duas mesquitas da Nova Zelândia.

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Há um submundo de raiva e desespero que encontra protagonistas para atos de violência que surgem um pouco por todo o mundo. Há apenas duas décadas ainda era impensável a frequência e intensidade de ataques terroristas que ora surgem com inaudita crueldade, em contexto religioso.

Os governos europeus têm desprezado a laicidade, cedendo aos dignitários das religiões maioritárias, em troca de um punhado de votos. É difícil combater a pregação do ódio transmitido pelos livros sagrados quando o Estado abandona a neutralidade religiosa a que a democracia e a decência obrigam.

Erdogan, dissimulado e devoto, chegou ao poder com a bênção da Nato e dos países que viam no seu partido um homólogo das democracias-cristãs europeias. Fingiram ignorar o seu percurso político, assumindo reiteradamente as posições ideológicas e religiosas da ‘Irmandade Muçulmana’ e do Hamas.

A Europa ignorou que foi dos poucos líderes, mesmo entre os regimes muçulmanos da região, que apoiou Moahmed Morsi, ex-PR egípcio, oriundo das fileiras da ‘Irmandade Muçulmana’ que, depois de eleito, logo alterou o quadro legal, numa deriva teocrática que impunha a sharia.

O ditador que dispõe das maiores Forças Armadas de um país da Nato, fora dos EUA, e das segundas mais poderosas, depois do Reino Unido, e que alberga no seu território um enorme arsenal nuclear, depois de perseguir, prender, matar e demitir os defensores da laicidade nos Tribunais, nas Universidades, na função pública e nas Forças Armadas, está a seguir as pisadas de todos os ditadores islâmicos, com a herança de Atatürk já sepultada, ostentando o record mundial de jornalistas presos.

Quem não foi sensível ao genocídio dos curdos e aos atropelos aos direitos humanos, há de agora surpreender-se por Erdogan exibir, em comícios eleitorais, trechos do vídeo do atentado na Nova Zelândia enquanto induz o medo contra o “terrorismo cristão”.

Já houve terrorismo cristão nas Cruzadas, na evangelização e na Inquisição, mas há dois séculos que não existe, apesar das crueldades cometidas por cristãos, desde a invasão do Iraque e de numerosas guerras provocadas, até às atrocidades de Duterte e outros.

Há quem não distinga terrorismo religioso de terrorismo feito por crentes. Não há hoje, entre cristãos, organizações homólogas da al-Qaeda, do Hamas ou do Isis, que praticam terrorismo organizado em nome da fé e para a sua dilatação.

Erdogan pode estar em vias de ensaiar um novo califado, o que justificaria as posições dúbias face ao Daesh. A atitude turca quando do combate em Kobani (Síria) foi bastante reveladora das intenções de Erdogan.

Enquanto a Europa ameaça desunir-se, para gáudio de EUA, Rússia, China e Turquia, pode nascer um projeto turco (otomano). Erdogan esperará de que sejam superadas as divisões entre xiitas e sunitas para se afirmar como o muçulmano capaz de enfrentar a UE e os EUA e dominar o Médio Oriente onde a política ocidental tem sido incoerente, ineficaz e frequentemente criminosa.

Deus é grande! E perigoso.


Israel morreu

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 15/05/2017)

Daniel

Daniel Oliveira

É fim de semana e a praia está à pinha. Ouço, além do hebraico e do russo, todas as línguas do mundo. Aquela confusão poliglota é o melhor retrato da mistura israelita que a beleza das suas mulheres tão exuberantemente exibe. O contraste com Jerusalém é absoluto. Em vez do domínio asfixiante dos judeus ortodoxos, cujos bairros são, muito mais do que os dos árabes, bastiões de intolerância e conservadorismo, é ali que ainda se adivinha o que Israel já foi. Em vez do peso insuportável da história, onde as três religiões do livro se cruzam para mostrarem que são praticamente iguais e por isso não se entendem, é possível encontrar em Telavive os restos da esperança no futuro que o nascimento de Israel trouxe ao mundo.

Longe das fronteiras do conflito (na medida em que alguma coisa é longe de outra naquele pequeno pedaço de terra), podíamos dizer: Israel é uma sociedade tolerante, democrática e cosmopolita. Para quem, como eu, tinha acabado de chegar do Líbano (passando pela Jordânia para contornar a fronteira eternamente encerrada), até se podia dizer mais: que, ao contrário da selvajaria privada libanesa, ainda sobram em Israel alguns traços socializantes que o sionismo original transportava. Um sonho comunitarista que, no imaginário israelita, foi substituído pela violência conquistadora dos colonatos. Imagino que é por esta fachada agradável que se ficam os que, contra todos os factos, ainda defendem o indefensável.

Só que nunca fui a Israel sem ir à Cisjordânia. Sem passar horas em autocarros ou táxis e assistir à praxe quotidiana de velhos a serem humilhados por soldados imberbes. Só que visitei as pequenas cidades cercadas, falei com os professores que nunca sabem se os seus alunos conseguem passar os checkpoints em cada manhã. Com os médicos que falam dos que morrem dentro de ambulâncias, parados durante horas pela arbitrariedade das autoridades israelitas. Só que falei com os agricultores que veem as suas colheitas serem assaltadas por colonos com a proteção ativa dos militares. E falei com uns corajosos jovens israelitas que servem de escudos humanos para que este roubo não aconteça. Sabem que, ao contrário dos palestinianos, os militares ainda os consideram humanos. Só que vi o resultado do roubo de água, das demolições e da ocupações de casas, como se uma qualquer autoridade divina desse a um povo o direito de roubar ao outro o que lhe pertence. Vi a sabotagem organizada de forma metódica e paciente para tornar um Estado palestiniano inviável. Mais do que isso: para transformar a existência quotidiana dos palestinianos sadicamente insuportável, numa estratégia planeada e prolongada de expulsão de todo um povo da sua própria terra. Só que falei com mães palestinianas num país onde uma quantidade absurda de jovens rapazes passaram por prisões israelitas. Só que falei com os próprios jovens, que crescem na impossibilidade de não odiarem aqueles que os humilham desde o primeiro dia da sua existência. E concluí que o milagre é não haver em cada jovem palestiniano um candidato a terrorista.

Só que falei com árabes com cidadania israelita, os que tiveram “direito” a continuar na terra onde sempre viveram e que na prática são tratados como cidadãos de segunda. “Os árabes israelitas são um problema ainda maior do que os palestinianos e a separação entre os dois povos deverá incluir também os árabes de Israel… por mim eles podem pegar no seu baklawa (doce árabe típico) e ir para o inferno.” O homem que disse isto em 2008 era ministro dos Assuntos Estratégicos. Chama-se Avigdor Liberman, é hoje ministro da Defesa e assinalou os 70 anos de Israel com o encerramento do corredor humanitário para Gaza. Compreende-se esta desconfiança. Foi Ze’ev Boim, político proeminente do Likud (partido maioritário que governa) entretanto falecido nos EUA, ministro da Agricultura, da Habitação e da Imigração de sucessivos governos, que disse que o terrorismo dos palestinianos tinha razões “genéticas”. Um nacional-socialista não diria melhor. Assim sendo, já se sabe que não se pode confiar num árabe, tenha ele a cidadania que tiver. Como não se podia confiar num judeu.

E tudo isto me leva a dizer que Israel seria uma democracia se não fosse quase tudo. Assim como a África do Sul era uma democracia para os brancos que se estivessem nas tintas para os negros.

Também estive duas vezes em Gaza, acompanhando delegações heterogéneas de responsáveis políticos europeus. E depois de estar em Gaza passa a ser insuportável estar deitado numa praia de Telavive. Porque só é possível amar Israel se nos dotarmos de uma extraordinária insensibilidade humana perante tudo o que está à sua volta. Quem entra em Gaza nunca mais olha para aquele país da mesma forma. A claustrofobia de um território com tamanho do concelho de Tomar onde se amontoam quase dois milhões de pessoas miseráveis é insuportável. Cercada por um muro, os medicamentos e alimentos só entram quando os israelitas querem. O que se produz também só sai quando e se eles quiserem, num território hermeticamente fechado onde o desemprego se aproxima dos 70%. Os bombardeamentos ou as expedições militares punitivas são frequentes, destruindo infraestruturas fundamentais para a sobrevivência das populações e matando quem esteja no caminho.

Tudo nos transporta para Varsóvia, no início dos anos 40, onde os melhores líderes do sionismo socialista perderam a vida. Depois de ter combatido a polícia judaica, a ZOB (organização onde se juntavam sionistas de esquerda) foi a principal força no levantamento do gueto. Os seus líderes morreram do mesmo gesto derradeiro que leva muitos palestinianos a caminharem até à fronteira de Gaza esperando o tiro fatal que será celebrado por um militar israelita a quem explicaram, desde que nasceu, que do outro lado não está um humano. “A grande marcha do regresso”, que já custou a vida a dezenas de palestinianos da Faixa de Gaza, é um grito pelo direito a uma vida com dignidade. Ou, pelo menos, pelo direito a não ser recordado apenas como vítima.

Penso que foi depois de visitar Gaza que Mario Vargas Llosa, escritor e ex-candidato presidencial da direita peruana, reviu drasticamente a sua posição sobre Israel: “É extraordinário como integraram pessoas com diversas línguas e culturas. O trágico é que se transformaram num país colonial”. Conheci, numa outra viagem que fiz a Israel, um pouco desse país que Vargas Llosa elogia. Foi pouco depois de mais uma guerra com o Líbano e na cidade que mais a sentiu: Haifa. Haifa é no extremo norte do país. Sendo uma das cidades onde vivem mais árabes com cidadania israelita, é conhecida pela paz relativa entre judeus (desde os anos 90 muitos são de origem russa), árabes muçulmanos e árabes cristãos. Na sede de um movimento pacifista de mulheres judias e árabes que se batiam pela igualdade de tratamento dos respetivos grupos no processo de reconstrução ouvi de uma ativista judia mais velha um resumo simples do processo de ocupação: “Isto é como um queijo suíço, Israel fica com o queijo, a Palestina fica com os buracos”. E explicou porque não havia grandes razões para otimismo. A única vez que ela tinha visto muçulmanos, cristãos e judeus juntos foi quando os seus respetivos líderes religiosos se manifestaram contra uma marcha LGBT em Jerusalém. Só o ódio a terceiros os parece conseguir unir, resumiu.

Foi entre estes militantes do quase nada que sobra da esquerda Israelita, cada vez mais cercada por uma unidade nacional baseada no intolerância xenófoba, que mantém no poder a aliança sinistra entre um crápula como Benjamin Netanyahu e um neofascista como Avigdor Liberman, que encontrei os mais corajosos resistentes. E entre eles os mais ousados eram, sem qualquer dúvida, os refuseniks, jovens conscritos que enfrentaram a prisão e a rejeição social generalizada por não aceitarem a prestar serviço militar nos territórios ocupados. Cada vez mais insignificante, ainda havia, da última vez que lá estive, um Israel que resistia. Mas já nem os intelectuais que dantes se manifestavam em nome do respeito pelos direitos dos palestinianos abrem a boca. Pedem timidamente a paz, em declarações ocas de sentido e intenção. Israel é uma sociedade cada vez menos crítica, pluralista e aberta ao diálogo e à diferença. O cerco que fez aos palestinianos acabou por cercar os israelitas.

Sim, em Israel ainda há liberdade de expressão e de imprensa. O que torna tudo isto mais assustador. Foi possível instalar a desumanização do outro com uma repressão mínima dos israelitas. A responsabilidade é, neste caso, mesmo coletiva. O mal banalizou-se com pouquíssima resistência. Instalou-se até fora de Israel, perante a imposição da ideia absurda de que um povo que foi vítima do maior crime da história não pode, ele próprio, participar num outro crime. Esta ideia de que qualquer povo é portador de uma qualquer excecionalidade ética foi a base para os piores crimes cometidos contra os judeus. Foi até a ideia de que os judeus seriam feitos de uma massa diferente de todos os humanos, com as suas maravilhas e misérias, que serviu de argumento para os tentar extinguir. A condescendência com as políticas criminosas do Estado de Israel é filha do antissemitismo. Vive dos mesmos enganos.

 

Israel morreu. Foram os seus muros, os seus guetos e as suas purgas que o mataram. Era a esperança da humanidade. É a tragédia que nos lembra que a impunidade cria o monstro. É uma das maiores deceções da humanidade.

Israel fez um longo percurso numa tensão permanente entre diversas correntes do sionismo. A vitória definitiva e inelutável da sua versão revisionista só poderia terminar aqui.

Quando Menachem Begin, antigo líder do grupo radical Irgun, responsável pelo atentado ao Hotel King David (o terrorismo é sempre uma questão de perspetiva) e que viria a ser o líder histórico da direita israelita, visitou Nova Iorque em 1948 não foi recebido apenas com aplausos. Uma carta assinada por Hannah Arendt, Albert Einstein, Sidney Hook e mais 24 judeus era clara na sua avaliação do Herut, partido que daria origem ao Likud, chamando à atenção para o comportamento desta ala radical para com os árabes, que o massacre de Deir Yassin tão bem ilustrara: “Entre os fenómenos políticos mais perturbadores de nossos tempos está o surgimento no recém-criado Estado de Israel do Partido da Liberdade (Tnuat Haherut), um partido político próximo na sua organização, métodos, filosofia política e apelo social dos partidos nazis e fascistas”. (ver AQUI). E foi o Likud e forças ainda mais extremistas que acabaram por determinar o que Israel é hoje.

 

O Estado de Israel nasceu de um sonho de liberdade e de segurança. O sonho era legítimo e o nascimento do Estado não o discuto. Nenhum Estado teve o direito natural a nascer e todos eles se afirmaram com guerras, crimes e ocupações. O problema é aquilo em que Israel irremediavelmente se transformou. O objetivo de expulsar os palestinianos da sua terra passou a ser constitutivo da identidade do país. O sonho de liberdade acabou num estado xenófobo, militarista e profundamente corrupto. Israel perdeu a alma. “Os nossos corações endureceram e os nossos olhos enublaram-se”, escreveu, em 2009, o jornalista israelita Gideon Levy nas páginas do Haaretz.

Perderam-se também os palestinianos. Outrora a elite dos árabes, tolerante e laico por força de viver num lugar de passagem e de encontro, o povo palestiniano foi deformado por 70 anos de opressão. Entalado entre o ódio e o colaboracionismo (diz-se que o cimento para a construção dos muros que os cercam foi vendido por empresas palestinianas), já nada de bom ali pode nascer. A última tentativa foram umas eleições livres boicotadas por uma “comunidade internacional” que não gostou dos resultados. Não perceberam que a vitória do Hamas contra a Fatah não correspondia a uma adesão ao radicalismo religioso, a que a maioria dos palestinianos sempre foi insensível, mas sim à punição de uma liderança corrupta. Foi a mais básica exigência cidadã que aplaudimos em qualquer democracia ocidental. E com este boicote, imposto pelo mesmo Israel que financiara o nascimento do Hamas para fragilizar Arafat, os palestinianos perceberam que também a democracia lhes estava interdita.

 

Israel nasceu com o apoio das forças mais progressistas no mundo, dirigido por homens e mulheres que sonharam viver numa pátria de liberdade. É hoje governada por um corrupto que depende de forças de extrema-direita e tem como maior amigo Donald Trump. Israel morreu. Foram os seus muros, os seus guetos e as suas purgas que o mataram. É uma tenebrosa prisão em que a vítima envelhecida repete muito do que aprendeu com o carrasco na sua juventude. Israel era a esperança da humanidade. Hoje é a tragédia que nos lembra que qualquer pessoa, povo ou Estado cometerá os piores crimes se nada fizermos para o impedir. Que a impunidade cria o monstro. Israel é uma das maiores deceções da humanidade.

Jerusalém: mais uma vez, Trump é a consequência  

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 07/12/2017)  

Daniel

Daniel Oliveira

A transferência da embaixada norte-americana de Telavive para Jerusalém não se limita a deixar o mundo islâmico irado. Dizer as coisas assim é virar o mundo de pernas para ar, fazendo parecer que há um grupo de muçulmanos hipersensíveis. Ao reconhecer Jerusalém como capital israelita, coisa que nenhum Estado do mundo ainda tinha feito, reconhece-se a anexação de toda da parte oriental e retira-se aos palestinianos o direito à mesma pretensão. Esta pretensão dos dois Estados não é um pormenor para qualquer solução pacifica, por mais improvável que ela seja.

Qualquer negociação para este conflito tem cinco temas essenciais: as fronteiras dos dois Estados, sendo as de 1967 a base inicial da negociação; os colonatos, que ou têm de ser desmantelados, já que se encontram em território que em nenhum caso é israelita, ou implicam permuta de terras; os refugiados, que ou têm o direito de retorno das terras de onde foram expulsos ou poderão ser compensados; a segurança, que para não ficar nas mãos dos israelitas tem de corresponder a um controlo das alas mais radicais pelos próprios palestinianos; e o estatuto de Jerusalém, que ambos os Estados reclamam como sua capital e cuja ocupação da parte oriental pelos israelitas é ilegal. Qualquer negociação séria e sustentável passa pelo equilíbrio entre estas várias questões. Se se fecha uma, torna-se mais difícil encontrar solução para as restantes.

Esta é a primeira razão pela qual o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel mata qualquer solução para este conflito: porque é umas das peças fundamentais para a negociação entre os dois Estados. E mesmo que o resultado dessa negociação viesse a permitir este reconhecimento, os moldes teriam de ser negociados ao mais ínfimo pormenor, tendo em conta a importância que aquela cidade tem para várias religiões, conseguindo garantias sólidas de acesso de todos a locais sagrados. Só o total analfabetismo histórico e político de Donald Trump permite que desconheça o vespeiro em que acabou de dar uma paulada. Pelo menos desde 1929 que pequenos acontecimentos naquela cidade, sobretudo relacionados com o acesso a espaços sagrados, chegam para iniciar conflitos que duram anos.

Como podem os EUA querer ser árbitro de uma negociação quando são eles mesmos a declarar unilateralmente o seu resultado? Não podem. Mas, para ser honesto, já não podiam. É importante recordar que a decisão de fazer a transferência da embaixada norte-americana de Telavive para Jerusalém já foi tomada em 1995 e tem força de lei. Apenas se dá ao poder executivo a possibilidade de, a cada seis meses, adiar a decisão. É o que têm feito, sucessivamente, exibindo a absoluta hipocrisia da posição dos EUA neste conflito, já que eles próprios reconhecem a irresponsabilidade das suas decisões.

Tenho-o escrito várias vezes e repito: os EUA são os principais responsáveis pela crise do Médio Oriente. Ao tornar o debate sobre Israel num tabu interno – ao pé da fúria que cai sobre quem se atreva a criticar Israel o famoso “politicamente correto” é uma brincadeira de crianças –, a proteção política, militar e financeira dada àquele Estado tem sido incondicional.

Os EUA permitem, apoiam e por vezes até incentivam a violação constante de leis internacionais e regras básicas de relações com outros Estados. Israel transformou-se num Estado inimputável, que ocupa território, expropria terras e casas, expulsa pessoas, constrói colonatos em terra que não é sua e cerca povoações com muros, sabendo sempre que nada lhe acontecerá. Foi essa sensação de inimputabilidade que o levou a ultrapassar todos os limites até qualquer solução razoável ser impossível. A partir daqui, a crescente radicalização dos dois lados tornou-se inevitável.

É falsa a ideia de que Donald Trump está a agir ao arrepio da política norte-americana para o Médio Oriente. Não é preciso outra prova: Trump limitou-se a aplicar uma decisão que era adiada de seis em seis meses. O apoio incondicional a todas as invasões, ocupações, expropriações e crimes não nasceu com Trump. É filho do tabu que foi imposto à sociedade norte-americana (e europeia, mas com menor eficácia), em que qualquer debate sério sobre Israel se transforma numa acusação de antissemitismo, insultando, antes de tudo, a própria memória do povo judeu. O que Trump está a fazer, talvez por ser mais ignorante do que os seus antecessores ou por ser um sociopata sem qualquer preocupação pelas repercussões dos seus atos, é levar a sério a retórica dominante na política norte-americana. Ele não é a exceção, é a consequência. Exceção tentaram ser, sem qualquer sucesso, Jimmy Carter e Barack Obama. Um continuou ao longo da vida, o outro desistiu à primeira resistência.