A literatura ou a vida

(António Guerreiro, in Público, 20/12/2019)

António Guerreiro

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Num texto sobre a lista de livros do ano que escrevi para esta edição do Ípsilon, falo da existência quase clandestina de alguns livros, por determinações das regras do mercado e das contingências da recepção crítica. Mas falo também de uma clandestinidade auto-infligida (algo que se passa quase exclusivamente no campo da poesia), que foi praticada, por exemplo, durante alguns anos, por Joaquim Manuel Magalhães.

Podemos entrever nalguns gestos deste tipo um desencantamento com aquilo a que chamamos “a vida literária”; mas pode ser também, noutros casos, um jogo com a coisa literária, com os leitores e o “meio”, ou uma reivindicação exacerbada da autonomia da obra. O “caso” que me suscitou algumas considerações foi o de Jorge Gomes Miranda, sobre o qual já me tinha muitas vezes perguntado: “O que é feito deste poeta, que deixou de publicar?” (pergunta que faço também relativamente a outro poeta: “O que é feito de Paulo Teixeira?”). Evidentemente, esta pergunta supõe um hábito muito do nosso tempo, toma como modelo o escritor que publica todos, ou quase todos os anos, acompanhando a aceleração do nosso tempo. Ficar hoje meia dúzia de anos sem publicar, mesmo que já seja autor de uma obra volumosa, é ficar condenado ao desaparecimento público. Um escritor com a publicação escassa de um Flaubert é, no nosso tempo, uma singularidade que raramente ajuda o reconhecimento. É verdade que existem casos como os de Salinger, que com o seu romance, Catcher in the Rye, se tornou um escritor de culto e passou ele próprio à clandestinidade, como quem não quer ter nada a ver com a vida literária nem com a função-escritor, como um criador que se ausenta da sua criação. Porque é que nos fascinam estas figuras como Salinger ou como Maurice Blanchot? Este último neutralizou-se completamente na vida civil, depois do Maio de 68, em nome da literatura. É difícil imaginar outra actividade, artística ou não, em que a “impessoalidade” seja vista como a mais alta exigência, em que a obra, no fundo, aniquila o seu autor.

O escritor francês Romain Gary, que se suicidou em 1980 com 66 anos, publicou livros com diferentes pseudónimos, sem nunca revelar a identidade que lhes correspondia. Assim acabou por ser o único escritor da literatura francesa que conseguiu a proeza de ganhar dois prémios Goncourt: um, atribuído a um romance assinado pelo seu próprio nome, e outro por outro romance assinado por um tal Émile Ajar, que durante muitos anos não se soube quem era. Neste tipo de mistificações, Romain Gary não foi o único génio.

Em Itália, encontramos ainda na primeira metade do século XX um outro modelo de escritor: o escritor que nunca escreveu, mas que é considerado pelos outros um seu par e que alcança um prestígio e uma autoridade extraordinárias. É o caso de Roberto Bazlen, que nasceu em 1902 em Trieste e morreu em 1965 em Milão. Foi ele que serviu de matéria a um romance de Daniele del Giudice, O Estádio de Wimbledon, que saiu com um prefácio de Italo Calvino. Sobre Roberto Bazlen, ou Bobi Bazlen, como era mais conhecido, escreveu Roberto Calasso no prefácio ao livro onde foram reunidos postumamente os escritos de Bazlen (afinal, ele tinha escrito alguma coisa; e uma das coisas que escreveu intitula-se Notas sem Texto) : “Na antiga querele entre o homem do livro e o homem da vida, Bazlen representava o homem do livro que está todo na vida e o homem da vida que está todo no livro”. Estas palavras muito lúcidas ajudam-nos a perceber certas atitudes dos escritores que parecem não conformar-se às exigências e aos protocolos da sua arte:

Há uma antiga e inextinguível inimizade entre a literatura e a vida, e ora se dá a primazia a uma, ora se dá a primazia a outra, ora se sacrifica uma, ora se sacrifica a outra. Quando as duas vivem em perfeita harmonia e são feitas uma para a outra, devemos suspeitar que nem a vida nem a obra são muito interessantes.

Este conflito não tem fim, existe em todos os tempos, e não são as regras actuais da edição e de legitimação dos livros que alteram significativamente as coisas. E é em função dele que temos de compreender os gestos enfáticos ou discretos de quem passa ao silêncio ou ao quase-silêncio. 


Livro de Recitações

“Com medidas como esta, o PS faz um favor à extrema-direita”
Manuel Alegre, sobre a prevista subida do IVA das touradas para a taxa de 23%, in Expresso, 16/12/2019.

Faz parte do argumentário em curso, agora utilizado nas mais variadas circunstâncias: fazer algo que vai contra a vontade e as aspirações do adversário político, não um adversário político qualquer, mas aquele que é visto como um perigoso intruso no território democrático, é cooperar com ele. Assim, o feminismo pode tornar-se o maior cúmplice do machismo, tal como a homossexualidade pode tornar-se uma promotora da homofobia e o anti-racismo uma atitude que só desencadeia o racismo. Manuel Alegre acrescenta a esta longa lista de incitamentos à imobilidade para não acordar o inimigo uma adenda cómica: do seu ponto de vista, aumentar o IVA das touradas é contribuir para a emergência da extrema-direita. O que é que este raciocínio supõe? Que as touradas são um espectáculo que tem um lugar de pertença na extrema-direita (o que é manifestamente exagerado).

Sendo um público defensor das touradas, em que lugar se situa então Manuel Alegre? Resposta óbvia: no mesmo lugar onde se situa a sua poesia, num flirt amoroso com as ideologias que ele diz combater.

Ler a Guerra e Paz num ecrã de telemóvel

(José Pacheco Pereira, in Público, 27/07/2019)

Pacheco Pereira

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Costumo dizer, bastante a sério, que dou um prémio a quem for capaz de ler a Guerra e Paz de Tolstoi num ecrã de telemóvel. Não é num tablet, nem num ecrã de computador, é num ecrã de telemóvel comum. Já que circula por aí, nestes tempos de deslumbramento com os devices, que é indiferente ler-se num livro ou num ecrã de telemóvel, o que conta é ler-se, eu penso que este desafio mostra que não é bem assim. Existe aqui um problema? Penso que sim, penso que há limitações objectivas nos nossos sentidos que precisam de “espaço” para ler, e acima de tudo precisam de uma forma especial de tempo, tempo lento, para ler determinados textos, em particular ficcionais. A não haver problemas colocaríamos os livros de Tolstoi, de Thomas Mann, de Musil, de Proust, só para citar autores contemporâneos, num limbo do esquecimento, onde, em bom rigor, já estão, por serem grandes de mais. Eu sei que o problema não vem só do tamanho, vem de mudanças culturais mais profundas e mais complicadas que estão a acentuar novas formas de ignorância. Mas, admitindo que já está tudo muito mal, não vale a pena agravar-se por modismos.

O teste da leitura da Guerra e Paz (em bom rigor já deveria ser de outra obra, visto que, ao se saber o título, já tínhamos concorrentes a irem ler na Wikipédia uma cómoda síntese…) teria de ser controlado. Durante o tempo da leitura o telemóvel não teria acesso nem à rede, nem faria telefonemas, e o concorrente aceitaria ficar isolado enquanto não acabasse de ler o livro, sobre o qual seria a seguir interrogado. Admito que possa haver quem fosse capaz de fazer o sacrifício, se o prémio fosse elevado, mas, mesmo assim, não provaria nada, visto que o mero bom senso diz-nos que tal seria absolutamente excepcional. Se aceitarmos que a leitura migra para os pequenos ecrãs como se não se perdesse nada pelo caminho, então teríamos de admitir que um número significativo de grandes obras da literatura mundial deixaria de ser de todo lido. Todos sabemos que já é assim e nem foi preciso chegar ao telemóvel, mas escusamos de agravar uma tendência para a indigência cultural que já está bastante instalada nos nossos dias.

Para exorcizar os lugares-comuns habituais, que se têm de repudiar como se fosse um mantra, não tenho nenhum fetichismo dos livros, nem do papel, nem saudades do cheiro, ou do pó, dou-me bastante bem com computadores, tablets e telemóveis. E se houvesse hipnopedia, como no Admirável Mundo Novo, também experimentava com a Enciclopédia Britânica. Não uso algumas das coisas que hoje são triviais, não tenho Facebook, por exemplo, mas é por razões de princípio quanto à privacidade e porque não me faz falta nenhuma. Mas não tenho a mais pequena saudade das máquinas de escrever, agora que escrevo num processador de texto e por aí adiante.

Hoje há muita gente deslumbrada com as novidades tecnológicas que acha três coisas perigosas: uma é que estes processos são inelutáveis e temos de aceitar tudo que as grandes empresas nos querem vender e que a moda nos faz comprar; outra é que elas são inócuas nas mudanças sociais que ajudam a implementar; e, por fim, que criticar estas tendências é uma atitude passadista.

A leitura é um adquirido civilizacional tão frágil como todos os outros. Não vive sozinha, vem em pacote com o modo como as sociedades evoluem, com a economia, a política e a religião, incrusta-se na educação para o bem e para o mal, e acompanha as grandes tendências dessa coisa intangível que é a “mentalidade”, a “visão do mundo”, aquilo que os alemães, que têm as melhores palavras para a filosofia, chamam Weltanschauung.

A leitura é bem mais do que a leitura ficcional — é saber ler as legendas das séries televisivas, um grande progresso, se a fasquia for o analfabetismo, mas, se olharmos para a frente, o modo como lemos pode tornar-nos mais ricos ou mais pobres. A leitura mudou muitas vezes na história, mas de um modo geral para melhor. Só que hoje tudo nos atira para a superficialidade, a preguiça da rapidez, o comodismo do pensamento débil, mesmo com diploma universitário. E havendo mais gente que lê, o que é muito positivo, existe também o movimento inverso, para ler pior.

É um movimento social, e nem tudo o que muda é positivo do ponto de vista, chamemos-lhe assim, civilizacional. Tudo nos atira para um presente assente no consumo e nos placebos, melhor ainda no consumo de placebos, de substitutos de Ersatz de vida, de sexo, de relacionamentos humanos, de saber transformado em soundbites, de gente sem verdadeiro poder. O problema da presentificação da vida, que é o grande negócio das empresas de tecnologia, retira qualquer densidade de que se faz a cultura, a favor de um tempo e um modo de não-pensar. Se a expressão não estivesse tão maltratada, é do “ópio do povo” que estamos a falar. E ler com espaço, silêncio e tempo, sem aquela febre ruidosa dos telemóveis em que pouco mais se diz do que “estou aqui” e “tu estás aí”, não faz parte do mundo de Tolstoi que não queria que houvesse escravos. Nesse mundo, de facto, a Guerra e Paz não serve para nada.

José Pacheco Pereira interrompe a sua coluna em Agosto. O Ruído do Mundo regressa em Setembro