(António Guerreiro, in Público, 26/08/2021)

Nos últimos anos, os comportamentos e ideias dos escritores e dos artistas no plano que diz respeito ao género, ao sexo e ao racismo têm sido o motivo de julgamentos, exclusões e execuções póstumas. Estas querelas e diferendos conduzem a uma questão que dantes era meramente académica, metodológica: pode-se separar a obra do seu autor? A resposta, com carácter de evidência, era: “pode e deve-se”. Assim, nem o anti-semitismo de Wagner (prosseguido aliás pelos seus descendentes e administradores da herança) nem o fascismo enlouquecido de Ezra Pound inibiram (a não ser em casos pontuais e localizados, como é o caso dos interditos a que foi sujeita a música de Wagner, em Israel) a canonização de ambos. As leis da recepção ditavam: o homem pode ter sido um energúmeno, mas se a obra é genial, isso só tem importância na narrativa biográfica.
Os “pecados” dos autores que mais pesam hoje são aqueles classificáveis em função de uma moral pública, politicamente definida, e dos seus códigos vigentes, cada vez mais estritos e vigiados. Mas, embora muito mais ocultos, há também os pecados privados, as sujas histórias de família. Recentemente, ficámos a saber (através de um artigo no Le Monde) que Galia Oz, filha de uma figura maior da literatura israelita, Amos Oz, que morreu de cancro em 2018, publicou um livro onde conta que o seu pai lhe batia, a insultava e a humilhava. Segundo o testemunho de Galia, as sevícias não ocorriam episodicamente, em momentos de cólera, mas eram rotineiras e requintadamente sádicas. Este livro tem alguns antecedentes conhecidos, embora pertença a um género muito difícil de cultivar: o testemunho de filhos e mulheres a quem os reles pais e maridos, mas digníssimos e geniais autores, infligiram sofrimentos intoleráveis. Um testemunho que pertence a esta série é o o de Sibylle Lacan, uma das filhas de Jacques Lacan, esse monstro da Escola Freudiana de Paris. Sibylle publicou em 1994 um pequeno livro que se chama Un père. Aí, conta como a sua vida se tornou um inferno criado por um pai inacessível e quase invisível, que no entanto conseguia impor a lei da sua espectralidade. A sua presença efectiva, não fantasmática, reduziu-se durante anos a encontros agendados com a filha Sibylle, num hotel de luxo parisiense, onde a paternidade era exercida burocraticamente e em tempo cronometrado.
E temos também o caso dos filhos “malditos” de Thomas Mann, Klaus Mann (que se suicidou em Cannes, em 1949) e a sua irmã “gémea”, apenas um ano mais velha, Erika Mann. Do clã Mann, foram eles que mais contribuíram para um retrato impiedoso do pai, olímpico escritor que não admitia ser perturbado na sua tarefa criativa e a ela submetia as regras da casa e as relações familiares. Klaus e Erika tornaram-se uns profanadores da ordem paterna, estabelecida em função desta missão: tornar-se o maior escritor alemão do século. Klaus publicou em 1926 um romance onde assumia a sua homossexualidade, embora já estivesse casado com Pamela Wedekind, filha do dramaturgo Frank Wedekind, de quem se divorciou em 1928. Muito mais apaixonada por Pamela do que o seu irmão, estava Erika, que no entanto casou em 1926 com um actor, Gustaf Gründgens, que era amante de Klaus. Em 1935, Erika contraiu um casamento branco, de conveniência, com o poeta inglês, homossexual, W. H. Auden, para obter a cidadania britânica. Seria muito mais longa, preenchida de sexo, drogas, escândalos e viagens aventurosas, a descrição da vida destes dois “malditos” gerados na família Mann.
Há um ensaio de Hannah Arendt sobre Brecht, incluído em Homens em Tempos Sombrios (Relógio D’Água) que parte da consideração de que os poetas, os escritores, raramente são bons cidadãos. Colocando a obra acima de tudo, nem sentem o peso de se portarem mal. Arendt não se refere ao tratamento pouco dignificante a que Brecht submeteu algumas das suas mulheres. O “pecado” de Brecht, segundo Arendt, é político e teve a sua manifestação mais pesada numa Ode a Estaline, que o poeta e dramaturgo acabou por apagar da sua obra.
Mas Arendt, ao contrário do que acontece em muitas “denúncias” a que temos assistido no nosso tempo, não pratica a mera condenação moral do autor. O que lhe interessa mostrar é que o erro em política acaba por corresponder a um erro na arte e que “a mentira política desonra a forma estética”. Prova disso é a fraca qualidade dos poemas e peças onde Brecht, contra os seus próprios princípios estéticos, cedeu à “falsificação ideológica”.
