Casos e casinhos, ou como ser governado por uma casta

(Francisco Louçã, in Expresso, 30/12/2022)

Deixou de ser preciso demonstrar como se gera esta bolha de favorecimento, os factos falam por si,mesmo que seja notório que o Governo tem um medo instintivo desta evidência e prefira a vaga de demissões.


É demasiado fácil, embora verdadeiro, ver nesta vertigem de minirremodelações governamentais a prova do pudim da maioria absoluta e da impunidade dos governantes na escolha de gente que lhes chega medalhada pelo partido (Miguel Alves) ou pelo trânsito meteórico entre empresas (Alexandra Reis). Deixou de ser preciso demonstrar como se gera esta bolha de favorecimento, os factos falam por si, mesmo que seja notório que o Governo tem um medo instintivo desta evidência e prefira a vaga de demissões a uma polémica impopular. A declaração do primeiro-ministro sobre os “casos e casinhos”, essas maléficas inventonas das oposições, é deste modo engolida com fel em cada um destes episódios, que chegam a ser desconcertantes de tanta prosápia e cumplicidade. Deixando o nevoeiro sempre capitoso destes casos, proponho-vos a tese de que isto não é o resultado de erros ocasionais, é antes a prova da natureza do nosso regime social, o resultado de uma construção meticulosa de redes de poder, ou de como uma casta se incrustou no uso do Estado. Essa casta é o passado de Portugal e quer ser o nosso futuro.

UM PASSADO QUE NOS MORDE

Malgrado a polémica historiográfica, vou tomar como aceitável a tese de que a emergência da burguesia moderna se fez em Portugal, ao longo do século XIX, ancorada numa aliança entre o capital comercial e a propriedade fundiária, sob a tutela do Estado. Daí terá resultado um conservadorismo arreigado, expresso, nomeadamente, na frágil industrialização e na fantasia imperial, vista como uma protegida reserva de acumulação de capital. Ao chegar à segunda metade do século XX, este sistema radicalizou-se na Guerra Colonial, mas, entretanto, ia mudando por dentro, seja pela consolidação da fusão entre a banca e o imobiliário, com a urbanização e a primeira turistificação, seja pelo impulso europeu, sobretudo na finança. Como este processo foi brevemente interrompido pelo 25 de Abril e depois recomposto com uma nova concentração de capital, é útil estudar como têm sido produzidos os governantes.

Com dois colegas, João Teixeira Lopes e Jorge Costa, publicámos, em 2014, um livro, “Os Burgueses”, que estudava esses processos. Um dos capítulos dedica-se a uma investigação detalhada do perfil de todos os ministros e secretários de Estado de todos os Governos constitucionais até ao ano anterior, 776 pessoas (mas de 78 não conseguimos dados). Queríamos perceber como a hegemonia da burguesia sobre a economia e a reprodução social seleciona os governantes. E, para isso, observámos a sua trajetória pessoal, tendo registado que, se bem que uma parte deles tivesse chegado ao Governo vinda do Parlamento ou de funções públicas e sem ligação empresarial anterior, o facto mais notável era a passagem posterior para as chefias de empresas. Assim, se só 89 chegaram ao Governo vindos de administrações, quase metade dos governantes emigrou para o topo de empresas da finança (248) e imobiliário (95). Naturalmente, trata-se de cargos estratégicos: 170 desses governantes foram para grandes grupos económicos, 107 para os que gerem parcerias público-privado. Nestes casos, a casta foi formada pela cooptação económica que consolidou um novo estatuto social. O seu circuito fundamental tem sido partido-Governo-empresas.

OS OUTROS CAMINHOS PARA ROMA

Chegar ao topo destas empresas, seja como facilitador com o partido, seja para abrir uma nova carreira, não é de somenos. Quando, há anos, propus no Parlamento uma lei que determinava que os pagamentos aos administradores de empresas cotadas fossem publicados no relatório anual, e era difícil recusar que esta informação era um direito dos acionistas e do público, o presidente de um grande banco, cuja administração se fazia pagar um prémio de 10% dos resultados líquidos, veio indignar-se e garantir que, se a lei fosse aprovada, haveria uma revolta social. Para os beneficiados, com ou sem revolta, a promoção vale a pena.

No entanto, a formação de ligações de casta também segue outros caminhos. Há a corrupção e, se alguns casos têm sido investigados, ainda teremos de esperar pelo dia em que um qualquer Rui Mateus conte as ligações angolanas de financiamentos de alguns partidos e outras tropelias. O processo sobre os pagamentos do BES a Manuel Pinho arrasta-se em tribunal, bem como outros. Há ainda os vínculos do finan­ciamento declarado: em 2021, o IL recebeu dinheiro do CEO da EDP, que os Champalimauds e Mellos pagaram ao Chega e que o PS continua a receber donativos da gente fiel da Mota Engil.

As redes de compromisso são as mesmas que levaram tantos ex-governantes a ocupar posição nas empresas das PPP. Por isso a defesa extravagante dos vistos gold, dos benefícios a não-residentes, de que a EDP não pague imposto pela venda de barragens, tudo merece ser visto à luz da casta que ocupa e ocupará estes lugares.

Alexandra Reis não inventou nada. Reclamou para si a regra que protege os gestores, se forem despedidos recebem tudo (há mesmo quem chame a isto meritocracia?). Passou da TAP para a NAV e desta para o Governo, tendo sido escolhida pela experiência brevíssima nestas empresas, aliás mal sucedida numa delas. Disso benefi­ciou, achando que começaria uma carreira política sem que alguém questionasse o privilégio daquele pagamento. Nisso cometeu o erro de exibir a arrogância da casta. Mas a regra não mudou nem mudará, pois não? Pois esperemos pelo próximo casinho.


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Vacas sagradas

(Daniel Oliveira, in Expresso, 04/01/2020)

Daniel Oliveira

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Augusto Santos Silva disse que a gestão em Portugal é “fraquíssima”. Todos os estudos o demonstram. Temos os gestores com menor formação da Europa (mais de metade não têm o ensino secundário) e o hábito de colocar os “primos” no Estado resulta de uma cultura nacional, fortemente presente no sector privado, e não de uma idiossincrasia da gestão pública.

Arriscar-me-ia a dizer que a qualidade média dos gestores evoluiu menos do que a qualidade média dos trabalhadores. E também isso ajuda a explicar porque é que as nossas empresas não conseguem absorver o brutal investimento público feito em formação.

O problema é que a afirmação do ministro ignora o contexto. E o contexto é uma realidade económica e monetária que desincentiva as exportações, uma estrutura empresarial composta por pequenas empresas sem massa crítica e gestão realmente profissionalizada e um pequeno grupo de grandes empresas concentrado na prestação de serviços pouco qualificados e protegidos da concorrência. Sobram umas ilhas de excelência que nos dão alguma esperança mas não chegam para contrariar esta realidade. Porque não são os gestores que definem a realidade que temos, é a realidade que molda os gestores que temos. Não é por acaso que os “empreendedores” que merecerem maior admiração mediática são distribuidores e importadores de bens alimentares, administradores de bancos falidos e CEO de empresas em regime de semimonopólio. E, no entanto, os gestores das empresas do PSI-20 ganham 52 vezes mais do que os seus trabalhadores. Em 2014 era só 33 vezes mais, mas a recuperação económica chegou aos gestores sem passar pelos “colaboradores”. Os mesmos que exigem contrapartidas para o aumento de um salário mínimo indigno. Os mesmos que desconhecem qualquer cultura de concertação social — não me esqueço de uma conversa que tive com um importante empresário que se orgulhava de nunca ter falado com um sindicalista. O episódio da funcionária do Pingo Doce da Bela Vista, obrigada a urinar na caixa porque não a deixaram ir à casa de banho, ainda é um lamentável retrato do nosso atraso. Mas, mais uma vez, relações laborais primitivas são um retrato de uma economia pouco qualificada. E se o futuro está no turismo de massas isto não mudará.

O problema da afirmação de Santos Silva é a habitual facilidade em tratar atrasos estruturais do país, com causas complexas e responsabilidades dispersas, como falhas de um grupo específico. Mas não é nada que não tenha sido feito em sentido inverso. Quando Belmiro de Azevedo disse que “o problema é que os atores políticos têm que ser de uma qualidade diferente da média atual” ou Alexandre Soares dos Santos acusou “todos” os políticos de só estarem “a pensar nas eleições” ninguém se indignou por estarem a denegrir injustamente os políticos. O que eles disseram é tão verdade e tão redutor como o que foi dito por Santos Silva. Porque em vez de se concentrarem nas debilidades sociais, económicas e políticas do país preferiram falar de um grupo específico. Num caso, causou polémica e acabou em pedidos de desculpa, no outro foram aplaudidos pelo desassombro. E já nem falo de todas as vezes que se sublinha, sem qualquer sobressalto, a falta de qualificação dos trabalhadores. Ao que parece, os gestores são as novas vacas sagradas.



Os contrapesos da democracia ocidental funcionam mesmo?

(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 15/05/2018)

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Diário de Notícias de ontem titulou na primeira página: “CEO ganham mais 40% em três anos. Trabalhadores ficam na mesma”. A notícia explicou que as empresas do PSI 20 aumentaram substancialmente no último ano os pagamentos aos seus quadros de topo.

Um presidente de uma comissão executiva nestas empresas cotadas em bolsa, sujeitas à revelação pública das remunerações dos seus administradores, recebe em média um milhão de euros por ano e, também em média, essas remunerações são 46 vezes superiores aos salários médios dos seus trabalhadores. Há três anos essa diferença era de 33 vezes.

Lembro-me de, quando a crise financeira de 2008 disparou a partir dos Estados Unidos da América, ter corrido pela comunicação social norte-americana uma verdadeira campanha contra as remunerações excessivas dos executivos dos conselhos de administração e contra as diferenças salariais injustificadas nas grandes empresas.

A ira da opinião mediática, de jornalistas, políticos, académicos, economistas, ideólogos da esquerda e da direita virou-se contra o deus da expansão financeira anterior: a ganância.

A caricatura, trágica, da situação deu-se quando a gigantesca empresa financeira AIG, à beira de um colapso que, a acontecer, levaria milhares de pessoas e de empresas ao desastre, acabaria por ser salva com a entrada de 85 mil milhões de dólares vindos do banco central dos Estados Unidos.

Acontece que, logo no início do ano seguinte, os quadros superiores desse conglomerado receberam 1200 milhões de dólares em prémios de gestão.

Este escândalo e muitos outros semelhantes, que rebentaram em todo o Ocidente afetado pela crise desses anos, fizeram ecoar múltiplas promessas de aperto dos sistemas de controlo, vigilância, supervisão e regulação, não só do mundo financeiro mas também das grandes empresas dominadoras do mercado nos mais variados setores da atividade económica. Prometeu-se: da crise que levou milhões ao desemprego e à falência nasceria uma nova ética nos negócios.

Quando a crise chegou a Portugal e estoirou, colateralmente, com, à nossa medida, potentados anteriormente intocáveis como o do BES, foi escrita na pedra por todos os governantes relevantes desse tempo e do tempo atual a promessa de aplicação de mecanismos de contrapeso aos excessos dos “donos disto tudo”.

O brutal aumento de impostos e o congelamento salarial e das pensões que puseram ordem nas contas do Estado e ajudaram muitos bancos a sobreviver à tempestade tinham um álibi moral: serviriam, também, para que no futuro os abusos não voltassem a acontecer.

Escreveram-se regras mais apertadas. Aplicaram-se novas regulamentações europeias. Planearam-se novas vigilâncias para a gestão dos bancos, complementares e alternativas ao Banco de Portugal. Prometeu-se reforçar o poder efetivo da CMVM, a “polícia” das empresas cotadas na bolsa portuguesa. Achou-se ser possível pôr a concertação social a moderar os excessos das administrações.

A realidade é esta: passado o pior da crise, os absurdos voltaram. Na Jerónimo Martins atinge-se o topo da bizarria, batem-se recordes e Pedro Soares dos Santos, o CEO, ganha 155 vezes mais do que a média salarial dos trabalhadores dos supermercados Pingo Doce.

Explica o DN que lá fora o fosso salarial entre trabalhadores e o topo da administração das grandes empresas cotadas em bolsa ainda é maior do que em Portugal: 190 vezes nos EUA, 150 vezes na Alemanha, 130 na Suíça e 60 em Espanha. Isto em 2016, antes da recuperação recente das economias deste países que, provavelmente, suscitou um aumento do fosso entre gestores e trabalhadores proporcionalmente semelhante ao que se registou em Portugal.

Não me parece ser reivindicação revolucionária exigir que as diferenças salariais nas empresas sejam limitadas a um valor eticamente defensável.

Imagino, por exemplo, que António Mexia (EDP) ou Soares dos Santos (JM) se, em vez de mais de dois milhões de euros por ano, ganhassem “apenas” um milhão continuariam a ter qualidade de vida e dinheiro para as despesas…

O problema de fundo é este: nenhum contrapeso deste nosso sistema supostamente democrático impede os poderosos dos negócios, em Portugal e lá fora, de se autorremunerarem de uma forma excessiva, comparativamente com o que aceitam pagar aos seus trabalhadores.

Nem os reparos dos supervisores, nem as recomendações dos provedores, nem as manifestações dos sindicatos, nem os apelos dos dirigentes das associações patronais, nem as promessas dos políticos, nem as revelações escandalosas da comunicação social, nem a censura pública, nem os insultos no Facebook… Nada! Eles não querem saber e ninguém consegue impedi-los de fazer o que querem.

Temos, portanto, um problema sistémico e uma garantia: na próxima crise global, hipocritamente, voltarão a ser feitas promessas lindas de que “nada voltará a ser como dantes”… Pois.