Se Messi vier para Portugal já pode tirar o cartão do cidadão no Alandroal

(Domingos Lopes, in Público, 12/08/2021)

Um país que não é capaz de assegurar este mínimo dos mínimos não cativa os seus cidadãos, antes lhes causa raiva face à impotência de obter documentos absolutamente indispensáveis em pleno século vinte e um.


Portugal deixou há cerca de um mês e meio a Presidência da União Europeia, a União mais avançada do planeta, diz-se.

No próximo mês de novembro, Lisboa vai ser capital do Web Summit. São aguardadas mil comunicações e participarão mil duzentas e cinquenta start-ups. No solo de Marte máquinas estadunidenses e chinesas escabulham o solo daquele planeta. Os multibilionários da Terra dão passeios aeronáuticos fora da gravidade e voltam.

No Alandroal, na Conservatória do Registo Civil, enquanto aguardava pela emissão de certidões de óbito e nascimento que não podiam ser obtidas online, um casal e dois filhos esbaforidos aguardavam a sua vez para tratar do cartão de cidadão. Tinham saído de Lisboa muito cedo para chegar a tempo de tratar dos cartões, pois em Lisboa não havia vaga em qualquer conservatória.

E como também precisavam de obter os passaportes dos filhos iam de escantilhão do Alandroal para o Entroncamento para tratar dos respetivos documentos, embora morassem em Lisboa. Percorreram mais de duzentos quilómetros e continuariam a volta a meio Portugal para o Entroncamento, mais cerca de cento e oitenta quilómetros, e regresso a Lisboa mais cento e vinte.

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Enquanto os robôs escavavam o solo de Marte, este casal gastou doze horas porque em todas as Conservatórias em redor de Lisboa até um raio de mais de cem quilómetros não aceitavam o encargo. A mim já me sucedera com o pedido do registo criminal no ano passado. Impossível obtê-lo em tempo útil. Consegui-o no Tribunal de Redondo a cento e oitenta quilómetros de Lisboa.

Os governos de Portugal deviam ter mais humildade e em vez de proclamar grandes avanços de modernidade serem capazes do mínimo dos mínimos – assegurar aos cidadãos a obtenção e renovação do cartão de cidadão. A causa desta situação tem a ver com a míngua imposta à função pública impedindo a entrada de novos funcionários para substituir os que saem.

Um país que não é capaz de assegurar este mínimo dos mínimos não cativa os seus cidadãos, antes lhes causa raiva face à impotência de obter documentos absolutamente indispensáveis em pleno século vinte e um.

Como o país fugiu para o litoral, os serviços tendo menos funcionários implodem e não é tida em conta a nova situação. Há nesta realidade algo de doloroso. Só que essa realidade impõe que se não desista e em vez de os cidadãos se atirarem aos seus compatriotas dos serviços, deviam com toda a prontidão exigir o cumprimento dos deveres do Estado.

Será que a tal bazuca contempla o reforço destes serviços para que os meios disponíveis sejam bem empregues e respondam a necessidades tão prementes como esta ou Bruxelas não deixa porque segundo a sua bitola ainda há funcionários públicos a mais?

No Cosmos, em Marte, máquinas comandadas da Terra prosseguem as suas pesquisas. Lisboa incapaz de renovar cartões de cidadão vai receber o Web Summit. Finalmente é conhecido o destino de Messi e os media respiraram de alívio, não fosse ele ficar sem cartão de cidadão.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico


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Não vale tudo

(Alexandra Leitão, in Expresso Diário, 29/04/2021)

Agora que toda a sociedade se vira para o Estado (e bem) para que resolva a crise pandémica e também a crise económica e social pós-pandémica, o momento favorece e valoriza este debate [sobre o papel do Estado]. A discussão acontece em cima de factos concretos, o que força os argumentos ao teste da realidade, isto é, ao que isto realmente significa no Serviço Nacional de Saúde, na escola pública, nos apoios que a segurança social tem multiplicado.


O anúncio recente da abertura de um equipamento temporário para alojamento de estudantes filhos de trabalhadores da Administração Pública suscitou uma onda de comentários nas redes sociais e em alguns órgãos de comunicação social.

Começaria por uma breve explicação da medida: os Serviços Sociais da Administração Pública (SSAP) têm por missão a proteção social complementar dos trabalhadores da Administração Pública, incluindo, em certas situações, dos seus agregados familiares.

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Assim, a utilização de um imóvel que já era propriedade dos SSAP para um apoio destinado aos filhos dos trabalhadores públicos que cumpram os critérios pré-definidos, dos quais ressaltam os baixos rendimentos do agregado familiar e residirem a mais de 100 km, corresponde ainda às responsabilidades do Estado enquanto empregador. Não é um privilégio, é mesmo uma resposta social para quem mais dela necessita.

E é o cumprimento da função social do Estado empregador, que deve dar o exemplo de responsabilidade social que todos os empregadores (públicos e privados) devem assumir. É também liderar pelo exemplo.

Outra coisa – que decorre do Estado Social que defendo convictamente – são as responsabilidades do Estado para com os cidadãos em geral, trabalhadores públicos ou não, e que se traduz na abertura de residências para todos os estudantes no âmbito do Plano Nacional de Alojamento no Ensino Superior, com o qual os SSAP podem também colaborar. Não esquecendo que a medida agora anunciada também contribui para aumentar a disponibilidade do alojamento a estudantes em Lisboa, ao criar uma primeira alternativa para 47 estudantes.

Como já dissemos, continuaremos a trabalhar no sentido de criar soluções noutras regiões do país, recordando, no entanto, que esta medida se aplica exatamente a quem é de fora de Lisboa.

A explicação é esta e é simples. Mas o assunto que motivou tantas e tão acesas – e até injuriosas – proclamações não é este. É outro. É ideológico.

Contra a Administração Pública, contra os seus trabalhadores, contra o Estado.

O mesmo preconceito ideológico que alimenta decisões que inevitavelmente resultariam num Estado mais fraco, envelhecido e desprovido de massa crítica, forçando-o a contratualizar com os privados tudo o que é importante: na saúde, na educação, no apoio jurídico, no desenvolvimento de projetos … em tudo o que é relevante.

Vamos, então, à discussão ideológica. Agora que toda a sociedade se vira para o Estado (e bem) para que resolva a crise pandémica e também a crise económica e social pós-pandémica, o momento favorece e valoriza este debate. A discussão acontece em cima de factos concretos, o que força os argumentos ao teste da realidade, isto é, ao que isto realmente significa no Serviço Nacional de Saúde, na escola pública, nos apoios que a segurança social tem multiplicado. É mesmo com isto que pretendem acabar, deixando apenas ao mercado a solução para tudo? O mercado terá soluções para quem as quer e pode pagar… e os outros, o que lhes acontece?

Para os outros, o mercado também tem solução: que o Estado pague aos privados para receberem esses “outros”, como acontecia no modelo dos contratos de associação, que se multiplicaram entre 2011 e 2015, custando mais de 150 M€ por ano ao Estado, enquanto a escola pública definhava durante todo esse período.

Não tenho nada contra a discordância política. É saudável, é a alma da democracia, as sociedades ganham sempre quando a troca de argumentos convida ao pensamento e a políticas públicas bem calibradas e fundamentadas. Quem me conhece sabe que nunca viro a cara a esgrimir argumentos. É meu dever justificar as escolhas que faço enquanto ministra e responsável política.

Mas não vale tudo. Não vale o insulto e a injúria. Isso não é discutir, isso não é democracia, isso não é liberdade. É, aliás, o oposto porque tenta vexar o interlocutor. É um caminho que visa intimidar — não trocar ideias. Nos últimos anos temos assistido em todo o mundo aos resultados a que estas práticas nos conduzem: à xenofobia, ao racismo, ao populismo, à demagogia, ao ódio, à violência, ao totalitarismo.

Em política, como na vida, não vale tudo.

(Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública de Portugal)


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Sem o bombo não há festa

(In Blog O Jumento, 23/10/2019)

Desde os tempos em que Miguel Cadilhe informou o país de que haviam 150.000 funcionários públicos a mais e Cavaco Silva criou listas de disponíveis com vista ao seu despedimento que todos os males dos país são provocados pelos funcionários públicos.

De vez em quando andam distraídos, com ciganos, africanos, gays, gagos e obstetras mas rapidamente voltam ao mesmo, o bombo da festa é sempre o funcionário público.

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Não há nada em Portugal que não desague no Estado e todos os incidentes e crises, sejam financeiras ou da saúde, depressa alguém prova por dois e dois que a responsabilidade é do Estado e não tarda um qualquer político descobre logo que tudo se resolve com mais umas pancadas no bombo.
Ganham demasiado, a média salarial de médicos e de engenheiros é maior do que a média se salários na fábrica de parafusos? Cortam-se nos vencimentos, congelam-se aumentos e promoções. É preciso mais dinheiro para a Saúde? A solução é óbvia, aumentam-se os horários de trabalho, exigem-se mais consultas por hora, multiplicam-se os truques para aumentar a produtividade.

O modelo deu resultado, mas está sucedendo ao Estado o mesmo que sucedeu ao burro que se habituou a viver sem comer. Descobre-se que o vencimento de um professor não dá para pagar duas rendas de casa mais os transportes para as deslocações, que os médicos estão cansados com tantas horas e urgências, que os enfermeiros estão a ir-se embora, que em muitos serviços do Estado a maioria dos funcionários estão à beira da reforma.

Depois de quase trinta anos de festa em que se entretiveram a bater no bombo chega-se à conclusão que o bombo está à beira de rebentar e sem bombo deixa de haver festa. Mais um par de anos deste oportunismo político, deste processo de difamação dos funcionários públicos e iremos ver muita gente pagar com língua de palmo o ter andando a encontrar falsos culpados e falsas soluções.

Os serviços de urgências fecham porque faltam médicos jovens, os pais manifestam-se nas escolas por falta de polícias ou de funcionários auxiliares, os alunos estão sem aulas por falta de professores, os emigrantes não se legalizam por falta de recursos humanos no SEF, é impossível renovar o cartão do cidadão porque nos registo não há quem o faça. Um pouco por todo o lado o Estado rebenta. Afinal o burro precisava mesmo de comer.


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