Psiquiatra de férias

(José Gameiro, in Expresso, 04/06/2021)

José Gameiro

Confesso que quando me perguntam, naquelas visitas em grupo a algum local turístico, o que é que faço na vida hesito em dizer que sou médico e muito menos psiquiatra. Não se trata de vergonha, mas antes de ter sossego… Assim livro-me de ouvir aquela frase frequente, temos de ter cuidado com o que dizemos porque ele pode adivinhar o que pensamos.

A confusão entre os psiquiatras e os bruxos, pelos vistos, mantém-se. Nem sempre a resposta que dou é bem aceite, depende do sentido de humor dos interlocutores. Não se preocupem, estou de férias e só trabalho se me pagarem. Mas apesar de esconder a profissão, já me aconteceu um pouco de tudo. Crises psicóticas, tentativas de suicídio, perdas de conhecimento, ataques de pânico.

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Não era uma viagem em grupo. Só uns raros contactos com gente que falava inglês ou francês, nos hotéis. Começou em Hanói. Decidi, em vez de viajar de avião para Saigão, hoje Ho Chi Minh, fazê-lo de comboio. O chamado Expresso de Reunificação une as duas cidades, numa longa viagem de mais de 24 horas. Parecia prometedor. Uma carruagem-cama, básica, mas confortável a um preço irrisório, garantia de bom arroz a todas as refeições. Na estação de Hanói uma jovem canadiana pediu-me ajuda para comprar o bilhete, não se entendia com o funcionário. Acabou por ficar no compartimento ao nosso lado. Lá veio a pergunta sacramental. O que é que fazíamos na vida? Não lhe menti.

Mal o comboio arrancou encontrei-a no corredor a chorar. Era a história clássica, mas muito dolorosa, da viagem para esquecer um desgosto de amor. Dentro das sub-histórias deste tipo, também uma clássica. Paixão por um homem casado, mais velho, dois anos de relação com constantes promessas de abandonar a mulher e “subitamente” a senhora engravida e agora é que não posso sair de casa. Raiva, tristeza, ideias de suicídio, viagem para o outro lado do mundo, para tentar esquecer. Penso que terá sido a “consulta” mais longa da minha vida. A noite inteira a tentar apaziguar a mágoa de quem não conseguiu ver o que lhe foi acontecendo. Amiga para a vida, ainda hoje mantemos o contacto e está bem.

Mas o mais complicado estava para vir. Chegado a Ho Chi Minh, vieram logo à memória as recordações do fim da guerra e o tristemente célebre abandono dos americanos pelo telhado da embaixada. Visita obrigatória é o Museu dos Vestígios da Guerra, anteriormente denominado Casa de Exposições para Crimes de Marionetes e Americanos. É um hino à vitória, omitindo o morticínio que praticaram depois de entrarem na cidade, com a execução de muitos que tinham lutado contra o Vietname do Norte. Um dos ícones turísticos da cidade são as centenas de quilómetros de túneis, ao seu redor. Com entradas disfarçadas na vegetação, albergavam infraestruturas básicas para a guerrilha, incluindo pequenos hospitais. As tropas americanas e do Vietname do Sul nunca conseguiram ter a topografia completa da rede e sofreram pesadas baixas nesta zona.

Os guias divertem-se a demonstrar que a maior parte dos ocidentais não consegue lá entrar, pela pequena dimensão dos seus acessos. Mas há túneis “turísticos”… Foi num destes, com um corredor de cerca de 50 metros, que tudo aconteceu. À minha frente uma inglesa relativamente bem nutrida, parou de repente e começou a gritar. Vou morrer, vou morrer. E sentou-se no chão, ofegante e alagada em suor. Não era preciso ser psiquiatra para perceber que estava com um ataque de pânico. Impossível voltar para trás, pelo menos mais dez turistas nos seguiam.

Sentei-me atrás dela e comecei a conversar. Que não havia problema, mais uns dez metros e já se veria a luz do dia. Nada. Só chorava. Estivemos assim uns dez minutos, uma eternidade. Atrás de mim outros começavam a hiperventilar. Sem outra solução resolvi dizer-lhe que era psiquiatra. Pediu-me a mão, não chegava à dela, mas agarrei-lhe o tornozelo, lá foi até à saída. Nessa noite jantámos no melhor restaurante de Ho Chi Minh, o Cuc Gach Quan. Que inglesa tão polite


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A invenção do verão

(José Soeiro, in Expresso Diário, 07/08/2020)

José Soeiro

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Tempo de liberdade e de disponibilidade para si – as férias finalmente. Mas não para todos. Este ano, chegados a agosto, uma parte dos trabalhadores não tem dias de férias para gozar, porque as suas empresas os obrigaram a despendê-los durante o período do confinamento, enquanto o lay-off não vinha. Para outros, as férias pagas são uma miragem que nunca tiveram o direito a saborear – há 800 mil trabalhadores a recibo verde e outros tantos trabalhadores informais para quem esse direito não existe. E há ainda os precários que perderam o emprego – não têm trabalho, é certo, mas poderemos chamar a um período de ansiedade, em que a ausência de atividade convive com a aflição da ausência de rendimento, um tempo de férias?

As férias de verão são, na realidade, uma invenção relativamente recente do ponto de vista histórico. Não existiram sempre, não existem ainda hoje em muitos países, e não caíram do céu. Enquanto estação, devemos o verão à inclinação do eixo de rotação da terra que nos traz, neste período, mais sol. Mas enquanto tempo social, enquanto interrupção parcial do “trabalho para outros”, enquanto tempo para nós, o verão é uma invenção e uma conquista do movimento operário, das greves e dos sindicatos.

Foi há pouco mais de 80 anos, em 1936, que a Frente Popular, em França, num governo que juntou socialistas, comunistas e radicais, reconheceu pela primeira vez no mundo as duas semanas de férias pagas aos trabalhadores. Esse reconhecimento não foi uma oferta generosamente outorgada por um Governo, por melhor que ele fosse. Foi um direito arrancado ao poder pela força de uma onda grevista que, pouco depois desse governo tomar posse, em maio desse ano, dinamizou uma enorme greve que começou numa empresa de aviação, que teve a solidariedade dos estivadores e que depois se alastrou a toda a sociedade, com a participação de mais de 2 milhões de trabalhadores, que então pararam.

Em junho de 36, contrariando a ambição dos patrões, o governo da frente popular fecharia a negociação de um acordo com os grevistas para lhes garantir não apenas as 40 horas sem perda salarial (num tempo em que a regra era ainda as 48 horas), mas também as duas semanas de férias pagas. Foi um momento histórico. Em Portugal, só depois do 25 de abril de 1974 se consagrou as férias como um direito anual irrenunciável, independente da vontade dos patrões.

Tantas décadas depois, o que temos?

Temos horários que se prolongam informalmente para lá das 40 horas, o tempo pessoal invadido por solicitações permanentes, a omnipresença de novas tecnologias, uma hiperconectividade que funciona como uma espécie de prisão. Temos, também, uma lei vinda de 2012, que cortou 3 dias de férias a quem trabalha, e que nunca foi alterada. Temos uma situação difícil pela frente, um mar de precários, de desempregados, de recibos verdes e de trabalhadoras informais que não têm férias pagas porque não gozam desse direito elementar que seria ter um contrato de trabalho.

Mas temos, também, memória – esse antídoto contra o fatalismo. E, como no passado, a imensa força da solidariedade e das escolhas coletivas por fazer.


O Algarve de Sophia por Pedro Sousa Tavares

(Pedro Sousa Tavares, in Diário de Notícias, \15/08/2018)

As férias algarvias de Sophia de Mello Breyner relembradas pelo neto, o jornalista Pedro Sousa Tavares.

O levante é sempre uma dádiva com os dias contados. Três, seis ou nove, assim o mediam os antigos, quando as contas ainda batiam certas. Pelo meio – na maior parte do tempo, para não mentir – é a nortada, sua némesis, quem dita as regras, levantando areia e guarda-sóis, tornando geladas as noites e, única virtude que se lhe reconhece, expulsando melgas e mosquitos para outras paragens….


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