Para além dos seus fins

(António Guerreiro, in Público, 09/08/2019)

António Guerreiro

CENA 1 – As estradas deste país são corredores abertos, com vista aberta e limpa – limpíssima –  para ambos os lados. Têm bermas largas, que entram pelo território dentro, pelas terras, florestas, pinhais, montados, formando um segundo corredor sanitário. Árvores, arbustos, pasto: tudo foi tratado como matéria inflamável e, portanto, muito perigosa. Solução: limpeza rasa e extermínio.

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Por ali, já não entra fogo e todas as negligências pirogénicas dos condutores serão neutralizadas. Outro espaço de limpeza total é o que é desenhado pelas linhas eléctricas de alta tensão: lá em cima, há apenas umas linhas a cortar a paisagem, sustentadas por gigantes estruturas de ferro (os postes); mas cá em baixo, as linhas desenham um larguíssimo corredor  anti-fogo de terra plana. Se calculássemos a superfície devastada e os malefícios causados à vida selvagem por todas as limpezas securitárias  que pretendem uma imunização total contra a catástrofe chegaríamos à conclusão de que o processo imunitário é, em si mesmo, monstruoso e acaba por realizar exactamente aquilo contra o qual foi posto em acção: a devastação, a esterilização, a perda da biodiversidade. Neste mundo desenhado por uma biopolítica das catástrofes, faz-se tudo para que ninguém morra queimado, mas o tudo que se faz implica afinal uma disfunção que traz consigo uma forma de morte lenta. 

CENA 2 – Uma lei que pretende evitar todos os favorecimentos nos negócios das empresas com o Estado, inibindo quaisquer trocas – por exemplo, sob a forma de prestação de serviços – entre detentores de cargos públicos e os seus familiares, criou idealmente um perímetro de transparência e imparcialidade totais, na administração dos dinheiros públicos. Aplicada com toda a sua exigência de rigor, esta lei das incompatibilidades, como muitas outras leis, cria injustiças tão grandes como as que visa impedir e torna-se, em certos casos, um factor de entropia.

Traço comum a estas duas cenas: em ambos os casos, vai-se mais rápido do que a sua sombra e mais longe do que julgávamos alcançar. De tal modo que o êxtase do movimento resulta na inércia. E tudo aquilo que parecia destinado a crescer e desenvolver-se segundo regras de equilíbrio tornam-se afinal excrescências, como as metástases cancerosas. A catástrofe está no processo de evitar a catástrofe; a opacidade e disfuncionalidade estão nas leis da transparência e da promoção da funcionalidade. No seu tempo, o sociólogo francês Jean Baudrillard deu a este processo o nome, muito grego, de hipertelia: hipertélico, dizia ele, é o que vai para além dos seus próprios fins. Ora, esta passagem da finalidade à hipertelia, tal como acontece nas duas “cenas” descritas, é a regra em que vivemos: na economia, no conhecimento, na informação, na comunicação. Parece que tudo se aplica a ultrapassar os seu próprios limites e a reverte-se no seu contrário. Quem acha que a dialéctica explica tudo, encontra aqui uma resistência: a hipertelia, o regime em que tudo segue o destino dos extremos, é o fim da dialéctica. Baudrillard foi até mais longe: neste regime, toda a política seria substituída por uma transpolítica. Hoje, essa intuição foi confirmada com toda a evidência. As figuras da transpolítica emergem neste modo de gestão de um mundo que tende para os extremos, onde tudo passou a funcionar para além da sua finalidade. Transpolítica é, por exemplo, o delírio da exigência ética erigido em ideologia. Não é este desequilíbrio que sentimos na política actual, nos discurso políticos com os quais estamos confrontados? Paralelamente, temos a trans-economia, isto é, a passagem do crescimento à excrescência. A trans-economia é a transcendência da economia pelos seus próprios simulacros, o que faz com que ela se desenvolva contra nós e contra si mesma, como todos sabemos.

Voltando às nossas duas cenas exemplares, a da prevenção dos fogos e a da prevenção dos favores que canalizam os dinheiros públicos em direcções determinadas por critérios ilegítimos:  o delírio da hipertelia é como a exagerada especialização dos objectos técnicos, que acaba por os tornar não-funcionais.


Livro de Recitações

“Empatia”
Palavra de largo espectro semântico que faz hoje parte de um idioma criado e difundido pelos media.

A passagem da palavra “empatia” de um uso técnico e erudito para um uso corrente, induzido pela linguagem dos media é um daqueles fenómenos que podia ser estudado por uma sociologia linguística. Em tempos, havia a “simpatia”, a “antipatia” e a “apatia”. Quanto à “empatia”, que a maior parte dos falantes desconhecia, fazia parte da linguagem dos conceitos, quer da psicologia, quer de uma outra área completamente diferente: a Estética. Na verdade, foram alguns teóricos da Estética, de língua alemã, que, desde o final do século XIX, tornaram a “empatia”  uma questão importante da experiência estética. Seja-me permitido dizer que o actual uso imoderado da palavra “empatia” me provoca alguma irritação, ao ponto de, talvez injustamente, ter desenvolvido uma suspeita em relação ao sentimento que assim é designado. A empatia liberta por todo os lados um cheiro a torpor, a um movimento de identificação acrítica com tudo e mais alguma coisa. Nas suas manifestações mais visíveis, é uma fonte do kitsch.

A história do rato e do psicólogo

(António Guerreiro, in Público, 10/08/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

Na semana passada, assistimos em Portugal a dois fenómenos extremos: um, foi o excesso de calor, parecia que a Terra tinha saído dos eixos e tudo chegara a um ponto de extenuação; o outro foi a saturação do espaço público pela proliferação de artigos, crónicas, reportagens, opiniões, comentários, que escorreram como o caudal de um rio, sobre os negócios do vereador do Bloco de Esquerda em Lisboa.

Chegou-se ao limite em que o caso do vereador era uma protuberância tão dilatada que pensámos que ela iria parir. Mas não, era apenas uma manifestação espectacular da obesidade do sistema. Não há nenhuma prova de que estes dois fenómenos extremos tenham uma causa comum ou qualquer relação um com o outro, a não ser que os incluamos na vaga ideia de extenuação por excesso e num conceito muito alargado de poluição.

Não menosprezo a justiça imanente que assistiu aos dois fenómenos extremos e a punição que em ambos se cumpriu (um consenso científico diz-nos que o homem é tão culpado das alterações climáticas como da compra de bens imobiliários). Mas gostaria de mostrar aqui o paradoxo que consiste em as coisas, ao chegarem a um nível excessivo, se anularem ou começarem até a produzir o seu contrário. No segundo fenómeno extremo a que me refiro, esse paradoxo é potenciado pelas manhas incontroláveis da reversibilidade.

A reversibilidade é uma figura que explica o modo de funcionamento de alguns sistemas actuais. Foi isso que nos ensinou o sociólogo Jean Baudrillard, com uma forte pulsão especulativa, e que até chegou a ter um andar em Alfama. As histórias de reversibilidade, escreveu ele, são sempre as mais divertidas, como a do rato e do psicólogo.

Nesta história, o rato conta como condicionou o psicólogo a dar-lhe um pedaço de pão cada vez que accionava um dispositivo da gaiola. Talvez seja precipitado transpor para a história do vereador, tal como ela se desenrolou na semana passada, um semelhante fenómeno de reversibilidade, mas uma saturação fatal, até à náusea, desviou o sentido das palavras e das frases que sobre o assunto se foram acumulando.

Quase todas elas denunciavam justamente a falsa moralidade e as incoerências políticas do vereador. Mas, por saturação, elas obstruíram o próprio sistema de onde emergiam e já só apontavam, dotadas de reversibilidade, para quem as pronunciava. Todo o discurso sobre o assunto já só parecia uma excrescência, um efeito que ganha vida autónoma, separando-se das suas causas.

Os factos implodem na hipertrofia dos comentários. E o demónio da reversibilidade perturba a possibilidade de percepções e juízos pertinentes porque se anulou até o sentido da realidade. Todo o discurso adquire então uma forma imoral e histérica, e é já só esse imoralismo que nos interpela e suscita reacção, já que o imoralismo e a contradição política insanável do vereador que começaram por ser o motivo da crítica, da denúncia e da indignação perderam substância e resistência.

O motivo da “festa” desaparece porque esta vai para além dos seus próprios fins e torna-se hipertélica. Começa por ser uma orgia, mas prolonga-se de maneira patética: há sempre alguém ainda a correr para alimentar a orgia e não deixar que ela acabe.

Não há êxtase que sempre dure, e uma orgia alimentada como uma novela deixa de ser uma orgia, é um  serviço obrigatório, mais militar do que civil.

Uma pergunta conhecida, cheia de implicações, devia ser colocada à porta onde se aglomeram tantos funcionários da palavra erecta: “What are you doing after the orgy [com o vereador imoral]”? Nada, absolutamente nada, a não ser tornar bem visível a obscenidade e a inércia de um mundo saturado.