Apertem os cintos, outra vez

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 19/10/2019)

Clara Ferreira Alves

Vamos atravessar uma zona de turbulência. Apertem os cintos. Aprecio os pilotos que, em vez de aterrorizarem os passageiros, se limitam a mandar apertar os cintos quando já andamos aos encontrões nos corredores e as hospedeiras balançam os tabuleiros. Ou seja, em plena turbulência. Melhor saber no momento do que a seguir à descolagem, poupando na ansiedade. Se os ventos vão soprar nos cúmulos polares e nas montanhas de gelo celestiais, prefiro não saber.

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Nada existe que não se preveja ou profetize. Abolimos o inesperado e o espontâneo e trocámo-lo pelo planeamento rigoroso das nossas vidas protegidas das intempéries. As linhas aéreas dão o exemplo, cobrando uma fortuna por viagens de improviso e oferecendo lugares a seis meses por seis cêntimos. A viagem, como acontecimento romântico, acabou. Foi exterminada. Na economia, ou na turbulenta vida económica das nações, igual. O Fundo Monetário Internacional (FMI), uma dessa entidades nebulosas onde não se vislumbra quem manda o quê ou quando, quem desenha os gráficos ou quem mata as aves para ler as entranhas, veio avisar que vamos atravessar uma zona de turbulência. Em Portugal, em toda a vida da democracia, foi sempre assim. Tão depressa cruzamos os céus da prosperidade, com o avião a tremer e o motor ronco, como entramos na tempestade e temos de mandar recolher as vitualhas, agarrar o copo de plástico meio vazio ou meio cheio, conforme as disposições, e tomar o calmante.

Podemos começar a tirar a benzodiazepina do bolso. As previsões do FMI dizem que somos dos que menos acompanham a Europa nos próximos anos, e a Europa vai crescer pouco porque, adivinhem, a política americana voltou a tramar os europeus. A guerra comercial dos americanos e as indecisões erráticas de Trump, mais as fissuras internas da Europa e a falência democrática, obrigam-nos a encolher a prodigalidade. Para os portugueses, tornou-se um hábito porque nunca chegamos a sair da crise, e o nosso tecido social e económico nunca chega a ganhar resistência. O Estado nunca se chega a reformar. A pobreza também não. O nosso capitalismo sai de uma crise para entrar noutra, de braço dado com os “estímulos”. Centeno tem “menos margem de manobra”, mas quem tem menos margem de manobra é a democracia liberal.

Em 2008, estava em Nova Iorque. No dia de setembro em que o Dow Jones desceu às profundezas e o resgate se tornou inevitável para evitar a falência do sistema financeiro mundial, assisti a cenas épicas. Banqueiros que fugiam escondidos atrás de pastas e caixotes, manifestantes com cartazes onde se lia “Morte aos Bancos”. Num parque junto a Wall Street, o Occupy montou acampamento, antes de ser corrido e de morrer de tédio, perante a indiferença das massas. Nesse dia de setembro, profetizei que íamos pagar na Europa um preço elevado pela catástrofe. Ia ser pago com atraso e a prestações, mas ia ser pago. E agora, vê-se nos gráficos do FMI que a economia americana é a única que cresce nos anos vindouros. Timidamente, mas cresce. Os Estados Unidos, por ciclos, dão cabo de nós e do mundo e saem da crise quando estamos a entrar.

A crise do subprime, a crise que ninguém previu, teve como consequência última e não menos grave, consequência da austeridade imposta de repente e à bruta, antecedida por uma breve solução de expansionismo, a crise das democracias europeias. Da França do ‘coletes amarelos’ aos independentistas catalães, das populações brexitianas do norte da Inglaterra aos votantes do fascismo italiano, para não falar das subidas dos partidos de extrema-direita, antieuropeus e nacionalistas, ou pseudo-soberanistas, ou populistas, o que temos é ainda uma consequência remota das austeridades. Não da imigração, apesar do crescimento desta devido às guerras do Médio Oriente, não do terrorismo, debelado na fonte síria e iraquiana até ontem, quando a Turquia e a Rússia resolveram partilhar a terra de ninguém do norte da Síria e exterminar os curdos que nos salvaram do Daesh, mas sim das austeridades desenfreadas. Pensar que os povos iam pagar os resgates e sofrer o desemprego e a destituição sem um sobressalto, depois de terem sofrido pelos desvios da globalização, foi um erro. As redes sociais, e a sua mobilização radical, fizeram o resto.

Sobrepôs-se à crise de autoridade da democracia a crise da imigração, que serviu de bode expiatório. O imigrante como inimigo principal, quando o verdadeiro inimigo foi outro. A decisão de mandar apertar o cinto, e de sobrepor-lhe a decisão de voar sem direito a bebida, comida ou uso da casa de banho. De Barcelona a Hull, das vilas da “França profunda” aos subúrbios da Itália periférica, assistimos à confusão entre furor e culpa. Entre o ódio ao outro e o ódio ao político, vagamente diluído nos erros de gestão das sublevações sociais, avançamos de crise em crise. Nos terrenos do ‘Brexit’, o ódio ao polaco europeu é superior ao ódio ao afegão asiático, mas os conservadores não podem admitir ser este o fundamento identitário, seria um sinal de primitivismo, e resolveram transferir a culpa para Bruxelas.

A Alemanha, que tudo fez para evitar a inflação, o demónio de Weimar, lançou-se na recessão, com a indústria automóvel afetada pela guerra comercial e a emergência climática. Angela Merkel, que tudo fez para dotar a Grécia de uma crise humanitária em pleno território europeu, e que sancionou a punição dos gregos, tentou a redenção com a política de imigração, o tal milhão que ia alimentar a máquina industrial germânica. Os imigrantes não se integraram como previa, e a extrema-direita foi ganhando território, passo a passo. A chefia de Merkel entrou em declínio. A França parecia em melhor estado, mas a república, pesada e burocraticamente irreformável, tem dificuldades em entender ou converter o extremismo lepenista, que acabou a conquistar funcionários públicos e classes baixas. Os socialistas desapareceram. E na Catalunha, se o anseio independentista é antiquíssimo, a ira é nova e deve muito à dose excessiva de austeridade e à ideia de que a região estaria melhor, mais rica, sem fazer parte de Espanha. Políticas económicas e fiscais erradas, um turismo predador e descontrolado para compensar e o esmagamento da revolta pela força, ideia do PP e de Rajoy, conduziram a este falhanço político da democracia, que o PSOE terá de resolver.

Ninguém em parte alguma aceitou a austeridade com benevolência, apesar de assim ter parecido. Ninguém aceitou os resgates ou as privações impostas com magnanimidade. E mal saímos do imbróglio, mal salvámos o euro e a unidade europeia, já estamos a entrar noutro imbróglio. Apertem os cintos.

O catastrofismo quotidiano

(António Guerreiro, in Público, 13/07/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

(O meu comentário a este texto não é meu. É um poema de Manuel António Pina:

“Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde”

«Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

É pelo hálito que te conheço no entanto
o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se de mais são tempos de poucas palavras.

Falo contigo de mais assim me calo e porque
te pertence esta gramática assim te falta
e eis por que não temos nada a perder e por que é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios.»

Estátua de Sal, 14/07/2018)


Em França, as lojas anunciam os saldos com uma frase que parece retirada de um canto apocalíptico ou das assombrações dos fins: “Tout doit disparaître” (tradução literal: “tudo deve desaparecer”). Se traduzíssemos para francês o regime da finitude em que mergulhou o nosso tempo, diríamos que entrámos há algum tempo em época de saldos e já estamos na fase última da “liquidação total” (também em português a linguagem da publicidade está cheia de conotações metafísicas).

Na verdade, estamos expostos a uma obsessão pelos fins, pelos declínios, pelo que se extinguiu ou está à beira de se extinguir. Não se trata propriamente de uma escatologia porque não há sequer escathon, Juízo Final. É um apocalipse sem redenção. Não me refiro ao grande medo do fim do mundo, dos oráculos e previsões a que a ideia de uma nova era geológica a que foi dado o nome de Antropoceno deu legitimidade científica (há um livro notável do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro e da sua mulher, filósofa, Deborah Danowski, intitulado Há Mundo Por Vir?, de 2014, que é um ensaio sobre o medo e o imaginário do fim e do catastrofismo ecológico).

Refiro-me sobretudo a outros fins mais parciais. Primeiro, foi o fim das “grandes narrativas”, que deu lugar a que se falasse do “fim da arte”. Devemos esse discurso a Arthur Danto, um crítico e filósofo americano que morreu em 2013 (evidentemente, o fim da arte, para Danto, não significa que deixa de haver artistas e obras de arte).

Quase ao mesmo tempo, apareceu o livro de Fukuyama sobre o fim da História e o fim da política entrou no repertório dos lugares-comuns. Mas, entretanto, a corrida para o regime das finitudes acelerou-se e alargou-se em muitas outras direcções.

Esta exacerbação da ideia dos fins produz verdadeiros hinos zombies. Ou melhor, estamos prestes a tornarmo-nos todos zombies. A lista das nossas obsessões apocalípticas é cada vez mais vasta: há o fim do Ocidente, mas esse é já um clássico, em exibição há pelo menos um século (muito embora a sua tonalidade cultural tenha sido substituída por uma tonalidade económica).

A esse, veio acrescentar-se uma outra modalidade derivada, que é o fim da Europa. Mas a temática apocalíptica torna-se muito menos metafísica e até um pouco cómica quando se fala do fim do homem branco, do fim do macho, do fim da heterossexualidade. Estas três últimas figuras condenadas à extinção não são uma grande preocupação para os metafísicos, mas são objecto de grandes elaborações literárias. Um escritor como Michel Houellebecq deve grande parte do seu sucesso ao facto de as suas ficções narrativas configurarem um mundo onde se chegou ao fim dessas figuras.

Esta nossa obsessão pelos fins é muito desinteressante e nem sequer tem aquela beleza decadente, nitidamente kitsch e decorativa, do “alegre apocalipse” vienense, quando o Império austro-húngaro estava a ruir por todos os lados enquanto se dançava a valsa no palácio do Imperador que continuava a dirigir-se “aos meus povos”.

Imersos em tantos fins, talvez seja útil e uma boa ideia lermos um livro fundamental, uma compilação póstuma de materiais, de um antropólogo italiano, um génio tardiamente reconhecido chamado Ernesto De Martino. Chama-se La fine del mondo e, pelo subtítulo, anuncia-se como um “contributo para a análise dos apocalipses culturais”. O conceito de apocalipse cultural é um importante contributo de De Martino para os instrumentos da análise cultural e para história das ideias.

Ele chama apocalipses culturais aos momentos em que se dá uma forte sensação de perda, uma sensação que não é só física, orgânica, mas também psíquica. Eis um conceito que o nosso tempo nos convida a revisitar.