A sexta-feira menos negra

(António Guerreiro, in Público, 03/12/2021)

António Guerreiro

Importado dos Estados Unidos, o Black Friday, que ocorre imediatamente a seguir ao Dia de Acção de Graças, já está entre nós e não termina à meia-noite da sexta-feira, de um brilho tão ofuscante que se torna “negra”. É o dia em que as multidões, atraídas por descontos que dão que pensar sobre o que é o valor da mercadoria, acorrem às lojas mal abrem as portas, antes que esgotem as “ofertas”, e aí entregam-se ao potlach das compras de Natal. Cada consumidor sente que tem de correr contra o tempo e chegar primeiro que os outros porque o tempo e os stocks são limitados.

Dá-se assim uma exibição exasperada do capitalismo como religião (quem o disse, há quase um século, nem podia imaginar a força analítica das suas palavras), como objecto de um culto que dura todo o ano, todos os dias, todas as horas, mas adquire um grau de euforia selvagem quando chega a festa do Natal, celebrada em regime pagão.

Assine já

Esta ocasião incita a ir buscar ao armário das relíquias o conceito antigo de alienação, caído em desuso por estar associado (ainda que não exclusivamente) a uma teoria social e política que não goza hoje de muitos favores, como tudo o que circula na órbita de nomes como Marx e Lukàcs. A vida alienada opõe-se à “boa vida”, que também tem os seus pergaminhos conceptuais, não é uma mera expressão da linguagem corrente. Mas recentemente alguém se encarregou de reabilitar o conceito de alienação, tornando-o apto para uma “crítica social” actualizada. Trata-se do sociólogo alemão Hartmut Rosa, uma vedeta universal da sociologia desde que publicou em 2005 um livro sobre Aceleração (é precisamente esse o título), sobre a mudança das estruturas temporais na modernidade. A sua tese fundamental é a de que a alienação é determinada pela aceleração, nas suas três dimensões: a aceleração técnica, a aceleração das trocas sociais e a aceleração do ritmo de vida. A aceleração é, pois, um processo totalitário característico da modernidade e, progressivamente, foi dominando todos os aspectos da nossa vida. Ela é responsável por uma crónica falta de tempo, essa doença social do nosso tempo que nas suas manifestações mais graves se manifesta sob a forma de burn-out. A aceleração provoca uma perda de controlo sobre a nossa própria vida, e é por isso que Hartmut Rosa a considera a principal fonte de alienação, de desvio em relação a uma “boa vida”. Enquanto membro da última geração da Escola de Frankfurt, o autor de Aceleração recupera esta questão de Adorno: como construir uma “boa vida” no seio da vida má, da vida mutilada, isto é, alienada.

O conceito de alienação provoca reservas porque está associado à concepção de uma “verdadeira” humanidade e de vida autêntica, ou seja, a algo em que hoje só é possível acreditar com uma boa dose de beatitude e de anacrónicas ilusões. Mas Hartmut Rosa, nomeando a alienação como uma “patologia social” do nosso tempo, resgata-a de projecções passadistas e nostálgicas. O antídoto que ele apresenta contra a aceleração e a alienação que dela deriva é a “ressonância”. Os seus últimos trabalhos têm consistido precisamente na construção e desenvolvimento do conceito de ressonância que se refere a uma relação entre o sujeito e o mundo caracterizada pela reciprocidade e pela transformação mútua. A alienação, pelo contrário, é a impossibilidade de estabelecer essa relação.

Um dos contributos maiores deste sociólogo é o de nos fazer perceber que uma das maneiras de examinar a estrutura e a qualidade das nossas vidas é concentrarmo-nos sobre motivos temporais. Por isso é que há uma “má vida” que atinge hoje também a burguesia endinheirada, que tem um salário altíssimo, mas nunca tem tempo. A falta de tempo tornou-se um castigo infligido a todos. Excepto aos desempregados, para quem todo o tempo que têm passou a ser tempo excedente.

Quando a regra em que vivemos é a falta de tempo, ter tempo é uma falha insuportável e até inocula culpa a quem dele usufrui. Ter tempo para além dos períodos calendarizados e codificados do lazer é sentido como um pecado.

O #Accelerate Manifesto, publicado em Inglaterra em 2013, da autoria de Alex Williams e Nick Srniceck, parecia contradizer esta análise da aceleração. Mas o que os autores deste manifesto defendiam era que devemos acelerar cada vez mais para aproveitar o que há de bom no capitalismo e deixá-lo chocar contra os seus próprios limites. Ou seja, alienarmo-nos exaustivamente até que a alienação se extinga por força de um mecanismo que conduz as coisas para além do seu próprio fim.



Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

A Natureza e a nossa fragilidade

(Joaquim Vassalo Abreu, 24/03/2020)

Que a força da Natureza nunca ninguém a venceu… ( António Gedeão)

Tempos houve em que as fábricas foram intimidas e obrigadas a bombas e demais material militar fabricar…eram tempos de guerra.

Agora são incentivadas a produzir ventiladores! Será apenas mais uma guerra? Que o é não restem dúvidas, mas contra um inimigo diferente porque invisível.

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Insidioso e matreiro ele é, até parece que treinado e comandado, enviado não sabemos por quem nem porquê, para este estilo de vida exterminar… Ou será apenas para nos lembrar que o caminho que o mundo vinha seguindo era para inexoravelmente tudo acabar?

Sem honra nem glória pensemos pois perante o desabar dos seus equilíbrios que um dia a Mãe Natureza se iria a sério zangar! E mostrar que perante a sua força, por muitos desrespeitos e afrontas, ela iria determinar o fim de todos os que durante décadas a hostilizaram e capturaram para negócios próprios e egoístas, sem tratarmos de que ela era de todos e de todos, património a preservar!

Talvez com este aviso queira e exija que mudemos de vida e de paradigma. Talvez esteja exigindo que sendo todos nós mortais e assim sendo iguais a todos os demais, devendo pensarmos no bem comum ela queira dizer, enfim, que somos todos iguais quer para o bem quer para o mal…

E parecendo isto até uma paragem no tempo onde Ela, depois de nos fazer pensar, mais pujante e pródiga renascerá mas sempre pronta a nos censurar se mais uma vez desrespeitada!

A verdade é que a vida neste mundo tem estado em suspenso e envolvida por quatro pequenas letras: M-E-D-O! Mas tanto tem bastado para que as águas dos rios estejam agora mais transparentes e nelas de novo seja possível ver-se os peixinhos serpenteando…E parados os automóveis outro ar seja possível respirar!

Abram pois as janelas e deixem este novo ar entrar. E encham a pleno os pulmões deste ar puro e digam, digamos todos: Obrigado Mãe Natureza por nos ter feito pensar!

Mas finalmente perguntemos-lhe: Mas quando poderemos Mãe Natureza a nossa vida retomar, para dela a nossa mudança podermos provar?


Durante muito tempo vai deixar de haver notícias

 (José Pacheco Pereira, in Sábado, 17/06/2016)

 

Autor

Pacheco Pereira

 

Que fique bem claro que penso que o Campeonato Europeu de Futebol, ainda por cima com a participação de Portugal, é notícia e matéria de relevo noticioso. Não ponho nada disso em causa. Admito mesmo uma situação de cobertura noticiosa especial, com meios e tempo acima do normal. Mas não é isso que se passa. O que se passa é uma profunda anomalia e deriva dos media para se tornarem apenas puro entretenimento e deixarem de ter fronteiras entre géneros, com a canibalização de todas as emissões – a televisão é o melhor exemplo do que digo – pelo futebol. A lógica jornalística implicava que as principais notícias fossem dadas nos noticiários (e refiro-me a notícias e não ao penoso espectáculo de adeptos, jornalistas, políticos, etc., a dizer coisa nenhuma, a não ser a portugalidade descoberta pela via da bola). E depois os programas desportivos, em canais especializados, falassem o que quisessem e quanto quisessem. É assim nos países civilizados. Dito mesmo assim: nos países civilizados ninguém imagina este excesso português, talvez latino-americano, de parar tudo porque daqui a uma semana há um jogo da Selecção. Até lá é a logomaquia futebolística para encher o ar.

 O que se passa é uma pura invenção contínua de imagens do “nada”, sem conteúdo noticioso que não são mais do que paisagem, na qual não acontece nada. Os jornalistas estão lá à espera seja lá do que for. Se uma menina com chupa-chupa aparecer vagamente vestida de futebolês, lá vão eles atrás. Os jogos em si mesmos são uma pequena parte deste espectáculo, é a partida, é a chegada, é o pequeno-almoço, o almoço, o jantar, o treino, o passeio, seja lá o que for serve.

Deixou de haver especialização que permita separar a emissão normal, já afectada pelos directos que se justificam, insisto que se justificam, do permanente fluxo de palavras e imagens a pretexto do futebol, sem qualquer conteúdo informativo, só entretenimento e entretenimento pobre, muito pobre.

 golo

No cabo era suposto haver canais noticiosos e canais de desporto e, embora em momentos excepcionais, como é, e não tenho dúvidas, o actual campeonato, seja normal tocarem-se uns aos outros. Mas não é isso que acontece – o zelo futebolístico dos ex-canais noticiosos é tal que ultrapassa o dos canais especializados, até porque podem deslocar meios e recursos e as audiências do prime time para o futebol. O ónus vai para os canais de cabo, mais do que para os canais com sinal aberto. Aí são os noticiários que perdem a cabeça, mas as telenovelas essas mantêm-se. O público feminino fica a ver a novela, o masculino é atirado para o cabo. Esta perda de autonomia do cabo é particularmente perigosa para os canais noticiosos, que perdem identidade e função, tornando-se durante muito tempo canais de desporto.

O efeito é semelhante à dopagem. Televisões dopam as pessoas que precisam de doses cada vez maiores de futebol, duas horas de jogo e 200 de “nada”, para se sentarem diante do ecrã sem mais nada dentro da cabeça do que a pílula da bola, ou o químico do jogo. Se não for isso que está lá no ecrã, seja na RTP, na SIC ou na TVI – e está de manhã à noite -, mudam de canal para a “concorrência” e as audiências afundam. Ninguém consegue manter a sanidade, limpar a cabeça e o corpo. Depois há a ressaca, e parece que falta alguma coisa. Até à próxima.


 Portas e o seu valor no mercado

 

Foi o próprio Portas que, falando de si, disse que “estava no mercado”. Sobre a sua atitude disse tudo o que queria dizer na discussão que tive na Quadratura do Círculo [SIC Notícias], excepto uma coisa: por que razão um homem que é esperto e sabe as consequências reputacionais daquilo que faz correu tão rapidamente para um emprego de lobista de uma empresa? A resposta deu-a o próprio Portas: o seu “valor” no “mercado”. Ora o “valor” de Portas no “mercado” do lóbi degrada-se rapidamente à medida que o tempo passa e os contactos e relações que estabeleceu enquanto esteve no governo, onde ocupou os mais altos cargos de “estado”, vão-se desvanecendo. Aliás, uma retórica balofa que uma certa direita do CDS tem do “estado” está bem traduzida neste episódio, em que um antigo vice-primeiro-ministro, ministro dos Negócios Estrangeiros e ministro da Defesa passa a lobista exactamente usando o “valor” que vem dessa alta experiência. E o “valor” são os segredos de Estado, os conhecimentos, os contactos, e o currículo de cargos governamentais no cartão-de-visita. É por isso que Portas tem pressa e assim pode comprar os talheres de prata mais cedo, ou fazer o upgrade para os de ouro.