Orçamento. PCP deixa Governo preso por arames depois de Costa perder Bloco

(Liliana Valente e Mariana Lima e Cunha, in Expresso Diário, 28/10/2020)

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A meio do debate do Orçamento do Estado, o deputado do PSD Duarte Pacheco classificou esta aprovação sui generis do Orçamento do Estado na generalidade como um “strogonoff vegan”. Os ingredientes do molho foram os habituais PS, PCP e PEV a que foram adicionados o PAN e as duas deputadas não inscritas. Mas o cozinhado saiu com pouca consistência e em risco de azedar: o BE saltou fora – passou o seu picante para o lado da oposição – e o PCP avisou que a mistura pode borregar se o Governo não condimentar melhor o OE na especialidade. Tudo misturado, a ‘geringonça’ voltou a quebrar esta quarta-feira, e o caldo entornou-se como ainda não tinha acontecido: a relação entre PS e BE que já não era boa, passou a péssima – e o PCP deixou o Governo preso por arames.

Foi na verdade o momento mais marcante do debate. Depois de dois dias a ser acarinhado pelo Governo e pelo PS, o PCP deixou um aviso sonoro: “A abstenção do PCP não é um ponto de chegada. É assumida com o objetivo de abrir a discussão que falta fazer, confrontando as necessidades do povo e do país com as medidas que lhes garantem resposta, apesar da sistemática recusa do Governo em lhes corresponder”, disse o líder parlamentar, João Oliveira. Acrescentou um ponto que melhora o conto: “O voto contra impediria essa possibilidade”. Para bom entendedor, fica a clarificação: esta abstenção tem sabor a chumbo e é mais táctica, olhando para a forma do debate que se vai fazer e esperando ganhos visíveis no futuro, do que pelo conteúdo.

O taticismo da abstenção do lado comunista ficou ainda evidente quando, para justificar a abstenção d’Os Verdes, o deputado José Luís Ferreira usou uma expressão que diz muito: a abstenção “tem um propósito claro”, “dar mais uma oportunidade ao PS” para melhorar o documento e em nada “condiciona e em nada compromete” o voto final. O Governo tem mais uma ficha para usar numa nova ronda de negociações e a esquerda quer cobrar um preço que pode sair caro. Enquanto os socialistas se entretêm a apontar mira ao Bloco, vão ouvindo, quase desvalorizando, os avisos do PCP. Mas o PCP, que já fez isto no Suplementar (abster-se primeiro para chumbar depois) quis vincar por várias vezes que não é uma fava contado no bolso do PS.

Com a relação com o PCP encarada pelos socialistas com outros olhos, Ana Catarina Mendes, líder parlamentar do PS, fez alvo ao Bloco, mas respondendo com uma expressão usada pelo PCP: “Este é o início do caminho e não o fim do caminho que o BE quer impor”, disse a socialista. Mas a estrada é longa e cheia de obstáculos. Será um mês duro de negociações na especialidade (medida a medida) e sobre estas conversas não houve um levantar do véu muito objetivo sobre até onde está disposto o Governo a ir.

O PCP, a meio do debate, pediu “respostas claras” sobre os avanços que poderiam ter lugar e fez depender por várias vezes a evolução do seu sentido de voto daquilo que acontecer extra orçamento: nas leis laborais. António Filipe, questionando a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social frisou que este orçamento “passou a ser de emergência nacional” e que por isso “não pode ser de continuidade”, refira-se aliás que são palavras tiradas a papel químico da argumentação do BE no primeiro dia. Mas disse mais: desvalorizou a ameaça do Governo de que “não basta dizer que é preciso ter um orçamento” (Siza Vieira, no encerramento do debate usaria esse mesmo argumento do lado do Governo), e pediu que o Governo clarificasse se na especialidade estaria disposto a tornar o orçamento “socialmente aceitável”, pressupondo-se, pela argumentação do comunista que, como está, não é.

Esta maioria que se formou nesta votação é instável não só pelo lado do PCP, mas também pelo PEV, como já se viu e pelo PAN. Os dois partidos abstiveram-se (também Joacine Katar-Moreira e Cristina Rodrigues, que não tem possibilidade de falar) e deixaram avisos para o que aí vem: “Na especialidade, o PAN não se demitirá de fazer o seu trabalho . A partir de amanhã começará uma nova fase e saberemos o grau de compromisso do Governo”, disse Inês Sousa-Real, a líder parlamentar do PAN.

“LÁGRIMAS DE CROCODILO” E OUTROS MIMOS PARA O BE

Quando decidiu votar contra a proposta do Governo, o Bloco estava consciente de que seria o novo alvo de todos os ataques do PS. Se dúvidas houvesse, a crispação entre os antigos parceiros foi palpável durante o discurso de encerramento de Catarina Martins. Por cada frase, multiplicavam-se os apupos e os gritos na bancada do PS. Quando acusou o Governo de se refugiar em “jogos políticos”, foi o auge – os deputados respondiam com apartes inflamados, o primeiro-ministro ria-se à gargalhada por baixo da máscara.

A partir do púlpito, Catarina esforçava-se por explicar, ponto por ponto, os motivos do Bloco. Primeiro, os de conteúdo, enumerando as insuficiências do documento no que toca ao reforço do SNS ou das prestações sociais. A seguir, um problema de fundo: se o Bloco sustenta que deu a mão ao Governo em momentos anteriores – caso do Orçamento que vigora ou do Suplementar -, dessas negociações ficou um traço de desconfiança que inquina a relação dos ex-parceiros. “Nenhum dos acordos foi cumprido no tempo certo, muitos foram pura e simplesmente esquecidos”. Daí que o Bloco tenha aprendido a “ser exigente até ao detalhe das letras mais pequenas” – e é por isso que tem agora dificuldade em explicar as tais letras pequenas que esvaziam, na prática, os anúncios do Governo.

Não é que nos tempos de ‘geringonça’ a sintonia fosse perfeita: Catarina Martins fez questão de recordar as aproximações do passado, já na altura “limitadas”. Mas desta vez, e “tragicamente”, “o PS deserta até desse estreito campo de entendimento”. Uma rasteira: a deserção era a acusação que o Governo dedicava ao Bloco logo no arranque do debate, acusando-o de se juntar à direita. E o Bloco quis devolvê-la, garantindo, por exemplo, que o Governo não apresentou uma verdadeira proposta conjunta para rever as leis laborais – antes uma proposta requentada que serve de arma de arremesso para obrigar o partido a continuar a votar com o Governo… ou ser pintado como o tal “desertor”.

Esse clima de ameaça, garante Catarina Martins, não funcionará: o Bloco “não viabilizará o Orçamento de olhos fechados”, só porque “aprovou antes” Orçamentos deste Governo. Só o fará se houver ganhos relevantes daqui até à votação final, a 26 de novembro. Mas mesmo nesse cenário, os cacos da antiga ‘geringonça’ parecem difíceis de colar.

Ana Catarina Mendes ouviu o discurso da bloquista e prometeu que as conversas na especialidade vão continuar, mas, numa intervenção dura, a líder parlamentar socialista chegaria a dizer ao BE que “não basta chorar lágrimas de crocodilo e lavar daqui as mãos”. Durante o debate, os socialistas não se coibiram de criticar o BE, mas a líder parlamentar deu mais um passo e atribuiu ao voto contra do BE um propósito: “Porque vota contra o Bloco de Esquerda? Porque é mais fácil e mais cómodo estar fora das soluções quando a situação é difícil. Porque não quer partilhar o risco da gestão da crise. Digam o que quiserem, mas escolher este momento para abandonar toda a esquerda e ir para os braços da direita é um sinal de irresponsabilidade de quem tem medo de enfrentar a maior crise das suas vidas”, disse.

Não há dúvidas que o Governo e os socialistas sempre preferiram o PCP. Aliás, até João Leão, ministro das Finanças, fez questão de o dizer durante o debate: acusou o BE de se “enganar” nas contas e disse que o PCP “faz um papel importantíssimo” no debate. O próximo mês ditará se chegará para aprovar o Orçamento. Na hora H tem chegado para evitar crises políticas, mas muita água vai ainda correr no moinho. Para já, o PCP, o PAN e o PEV têm o Governo encurralado no beco da especialidade.


OE: cuidado com promessas assinadas em papel molhado

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 09/10/2020)

Daniel Oliveira

Para o BE, é incomportável estar associado a mais dinheiro para o poço sem fundo do Novo Banco. Se os bancos não aumentam a sua contribuição e o NB continua a receber dinheiro do Fundo de Resolução, será o contribuinte a pagar. Não basta o Orçamento não falar do Novo Banco, é preciso um compromisso que não faça da omissão um truque. É preciso amarrar o Governo a uma escolha – à esquerda ou de bloco central – que ponha fim ao pântano em que estamos, com a ausência de uma maioria política clara e um governo que surfa em alianças circunstanciais. A chantagem só é estratégia de aliança quando se quer ter um governo a prazo.


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O leilão do Orçamento do Estado do ano passado teve um preço. António Costa, que sendo muito hábil sofre do pecado da soberba, garantiu a aprovação inicial. Depois, para não ter de ceder em nada de substancial, fez um leilão com todos na especialidade, tornando aquele documento numa coisa só sua. O PCP, que não podia salvar o Governo sozinho, pôs-se de fora na votação final. Mas o BE, com medo de uma crise política, acabou por viabilizar sem ter conseguido alguma coisa. Foi um erro que lhe retirou poder negocial para este ano. Um erro que as últimas notícias dão a entender que não quer repetir. Veremos até onde aguenta a pressão.

Perante este historial e o risco de novos episódios como a crise dos professores, é natural que o BE não viabilize o OE sem um documento escrito de compromisso para 2021. E parece-me evidente que terá de votar contra um Orçamento em que nem isso Costa esteja disposto a dar. Nenhum partido pode ficar refém de chantagem e dramatização durante quatro anos. Ficar nessa situação corresponderia a um desrespeito pelos seus eleitores. Se eles quisessem o PS com maioria absoluta sem ter de ceder a ninguém teriam votado no PS. É claro que, se for verdade que o PCP garante uma abstenção inicial, parte da pressão é aliviada. Isso não diz nada do voto final – mudou-o no Orçamento de 2020 – e não chega. Falta o PAN, que geralmente sai barato.

Com o Bloco de Esquerda, a dias de se conhecer a proposta de OE, pouco ou nada avançou. A moratória à caducidade das convenções coletivas é o mínimo dos mínimos e estou convencido que o Governo avançaria com ela mesmo sem acordo. Vieira da Silva chegou a impor uma. Costa pretende fazer este ano o que fez no ano passado: pega em medidas que já tem planeado e atribui a sua autoria a outro, dando-lhe um prémio de propaganda. O prémio mais forte, este ano, até seria a nova prestação social de emergência. Também já estava decidida e até anunciada. Isto não é negociar, é conter os danos no aliado circunstancial.

Não está em causa apenas o Orçamento do Estado. Os custos políticos de ficar amarrado ao Governo num momento de incerteza exigem mais. Por isso, também está em cima da mesa o aumento do salário mínimo nacional – é absurdo andar a apoiar empresas para permitir que a recuperação se volte a fazer com base em salários baixos – e algumas mudanças na lei laboral, como o recuo no período experimental que só serviu para aumentar a precariedade. E há o aumento da indemnização por despedimento.

O mais complicado e mais relevante é mesmo o Novo Banco. Mais relevante porque, para o Bloco de Esquerda, é politicamente incomportável estar associado a mais um cêntimo que seja atirado para aquele poço sem fundo. O Governo parece estar disponível a comprometer-se a não transferir mais dinheiro para o Fundo de Resolução. Mas diz que não pode impedir o Fundo de fazer transferências para o Novo Banco. E aqui, meus amigos, é pura matemática: se os bancos não aumentam a sua contribuição e o Novo Banco continua a receber dinheiro, será, agora ou depois, o contribuinte a pagar.

Não basta o Orçamento não falar do Novo Banco, é preciso um compromisso que não faça dessa omissão um truque. O Fundo de Resolução é gerido pelo Estado e no fim, todos sabemos, é o Estado que vai pagar. Não travar a sangria ali é brincar com as palavras. E é cada vez mais evidente que a administração do Novo Banco percebeu a disponibilidade sem fim do Estado e pretende extorquir tudo o que conseguir enquanto esvazia o banco por dentro. O risco é andar a pagar e ficar com uma carcaça que alguém terá de voltar a salvar. Pode um partido com o discurso do BE ter o seu nome associado a isto? Do meu ponto de vista, seria um suicídio.

Ou o PS faz um acordo de bloco central, tendo como argumento a situação extraordinária que vivemos, ou opta por uma governação com opções distintivas. O Orçamento não pode ser igual nas duas circunstâncias. Não é só o BE que precisa de um contrato escrito para viabilizar o OE. É o país. É preciso amarrar o Governo a uma escolha que ponha fim ao pântano em que estamos desde as últimas eleições, com a ausência de uma maioria política clara e um governo que surfa em alianças circunstanciais. Isto impede um rumo claro para um país que se prepara para um período difícil. Ou à esquerda, ou em bloco central. A escolha é de António Costa e terá sempre custos. A chantagem só é estratégia quando se quer ter um governo a prazo.


Costa pintou uma vaca às riscas e quer que acreditemos que é uma zebra

(Martim Silva, in Expresso Diário, 14/10/2019)

Os sorrisos na reunião de quarta-feira, na sede do Bloco. No dia seguinte, terminou tudo

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As moscas que picam as vacas são um problema mais sério do que possa parecer. O seu impacto na produção pecuária dos Estados Unidos num só ano está estimado em qualquer coisa como 2,2 mil milhões de dólares (quanto mais as vacas são picadas, mais pesticidas são necessários, etc., etc., etc.). Um estudo científico recente mostra como as picadas podem ser fortemente mitigadas se as ditas vaquinhas forem pintadas com riscas verticais brancas e pretas. Ao tornar as vacas parecidas com zebras, as moscas ficam confundidas e as vacas são menos suscetíveis de ser picadas. No fundo, baralhamos as moscas, fazendo as vacas passar pelo que não são.

Se acha que estou a brincar, não estou (ler AQUI).

Agora, que tem isto a ver com o fim da geringonça, decretado na última quinta-feira à noite? Mais do que parece.

Quando ganhou as eleições, António Costa foi rápido a dizer que ia partir de imediato para conversações com os partidos, com a intenção de reeditar uma aliança à esquerda que garantisse estabilidade governativa para os próximos quatro anos.

A sua declaração surgiu aliás em consonância com tudo o que afirmou ao longo da última legislatura, nomeadamente a proclamação de vontade de manter uma aliança que tinha funcionado bem. Nessa altura, quando fazia juras de amor eterno à geringonça, Costa já sabia que o PCP não estar disponível para novo acordo escrito. Justiça seja feita, os comunistas e Jerónimo de Sousa sempre foram coerentes com o que afirmaram – independentemente de se concordar ou não com essa posição política.

Saído das eleições, que fez então o líder do PS?

Na terça-feira ao final do dia, na sequência das audições às dez forças políticas que vão ter assento no novo Parlamento, Marcelo Rebelo de Sousa indigitou Costa como primeiro-ministro. Na quarta-feira, nova ronda de encontros, mas desta vez com uma comitiva socialista liderada por Costa (e de que faziam parte ainda Carlos César, Ana Catarina Mendes e Duarte Cordeiro). À vez, os socialistas estiveram com o PCP, o Bloco de Esquerda, o PAN e o Livre.

Em nenhum destes encontros se sentiu, pelas declarações à imprensa e pelos relatos feitos pela comunicação social, que possíveis pontes estivessem totalmente impossibilitadas. Pelo contrário, sentiu-se uma predisposição para falar, para negociar, para partir pedra de forma a poder-se (ou não, no final) chegar a um entendimento.

António Costa foi mesmo explícito nessa vontade. Leia-se o que se escreveu então no site do Expresso: “Vamos continuar a avaliar”, disse Costa, prometendo para a “próxima semana” reuniões bilaterais “para ver quais as condições de convergência que permitam ver qual o grau compromisso” a que os dois partidos poderão chegar (ler AQUI).

Estávamos na quarta-feira da semana passada. No dia seguinte, os socialistas reuniram-se com os parceiros sociais. Ao final desse mesmo dia, sem que qualquer facto novo tivesse surgido, o PS decide fazer um comunicado anunciando que nesta legislatura não haveria qualquer acordo formal com outro (ou outros) partidos, que as negociações nesse sentido cessariam e que o PS e António Costa vão fazer um Governo de minoria, tentando pescar à linha e aprovar as leis fundamentais olhando caso a caso para o variado leque de opções que o resultado das eleições permite.

Nos dias seguintes, socialistas e bloquistas trocaram acusações, com estes a responsabilizarem aqueles pelo fim da geringonça e aqueles a responderem a estes que a possibilidade de acordos se mantém intacta.

Neste caso, convém ser claro. E o Bloco tem toda a razão. Costa quis pintar uma zebra e que todos nós fossemos enganados, qual moscas.

Claro que o PS tem toda a legitimidade para tentar governar ‘à Guterres’ em vez de procurar um acordo de legislatura com um ou vários parceiros – embora com isso aumente consideravelmente os riscos de conseguir estabilidade política a prazo.

Mas se é assim, o PS podia ao menos poupar-nos à sonsice de andar a dizer uma coisa publicamente e fazer outra em privado.

Porque quem quer muito reeditar um acordo de legislatura não rompe as negociações quando elas ainda mal começaram e estavam longe de chegar a um ponto de rutura. Porque quem quer muito reeditar um acordo de legislatura não pode vir dizer que não é possível uma aliança em que o PCP não se comprometa com uma assinatura (quando esse pressuposto era um dado público há pelo menos dois anos). E se o PCP estivesse disponível para um acordo, será que a vontade do Bloco em alterar as leis laborais já não era assim tão gravosa aos olhos do PS?

A tática na política deve ser uma forma de se atingir uma estratégia. Quando a tática é a própria estratégia, estamos mal.

Acabar com uma aliança é legítimo. Mas pintar o quadro para acreditarmos todos que o PS fez tudo para que uma nova geringonça vingasse, é o mesmo que acreditar que somos todos moscas e não vamos perceber que a zebra, afinal, continua a ser uma vaca.