Aprender com a ADSE, proteger o SNS

(Por Marco Capitão Ferreira, in Expresso Diário, 27/02/2019)

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Na senda em curso com a falta de vontade dos privados em devolverem 38 milhões de euros que cobraram a mais, nos termos das regras vigentes, aos beneficiários da ADSE, há várias lições a reter, e uma delas com implicações importantes para todos.

Para além de, finalmente, ter servido para deixar claro ao País que a ADSE é, hoje, um assunto dos seus beneficiários, porque são eles que a suportam, e que não se trata de um qualquer suposto privilégio – se a função pública tivesse um décimo dos privilégios que lhe atribuem, não tinha as dificuldades que tem em atrair e reter talento, mas essa é uma outra conversa para outro dia, toda esta situação trouxe à luz uma dura realidade: há coisas que não se podem deixar nas mãos do mercado.

Isto é especialmente importante num momento em que se discute a Lei de Bases da Saúde e o papel da prestação de serviços públicos pelo Estado, pelos privados e pelo sector social.

O direito a cuidados de saúde é, na nossa sociedade, e é bom que assim continue, um direito constitucionalmente protegido, inegociável, e que não pode ser condicionado ao poder económico de cada um.

Ninguém defende que se impeçam os privados de acrescentar valor ao Sistema, de terem um papel, de trazerem boas práticas e eficiência de gestão. A questão é saber se deve assentar na iniciativa privada a prestação generalizada de cuidados de saúde.

Como os 1,2 milhões de beneficiários da ADSE estão a aprender, e é bom que o resto do País tome atenção, a resposta é não. Não podemos ficar na posição de depender destas empresas.

E porquê? Porque elas não se coíbem de usar o seu poder de mercado coletivo – se pisando ou não a linha da violação da lei da concorrência ainda se irá apurar, isto supondo que a Autoridade da Concorrência não se arma em Banco de Portugal e finge que não vê o que todos vemos – para tomar a nossa saúde refém em nome dos seus interesses económicos. Ou, mais realisticamente, ameaçar tomar a nossa saúde refém.

Fica tudo dito e, por mim, a conversa acaba aqui. Os privados podem ter um papel no SNS, mas o SNS tem de ser público, tem de ter controlo sobre a prestação de cuidados e tem de ser a nossa aposta coletiva. Tudo o que não seja isso expõe os portugueses – os nossos filhos, os nossos pais, os mais fracos e os mais frágeis – à procura desenfreada do lucro pelo lucro, sem olhar a meios.

Não vamos agora, sabendo o que já sabemos, arriscar isso. Queira o que quiser Marcelo, sabe-se lá porque motivos.

 
 

Quando a diferença de preços cobrados à ADSE pode chegar a 3000%

(In Diário de Notícias, 16/02/2018)

Lisboa - Farmácia do Instituto Português de Oncologia de Lisboa

(Esta notícia é uma vergonha. Há grupos privados que querem deixar de prestar serviços à ADSE porque ela quer terminar com a chulice, impedindo que os beneficiários continuem a ser descaradamente roubados por certos prestadores convencionados. De facto, a saúde é um grande negócio – há quem diga que até é melhor que a droga e as armas. Se o prestador mais barato já ganha dinheiro, o prestador que cobra 3000% acima não passa de um larápio. Só espero que o Governo não ceda a esta quadrilha de malfeitores.

Comentário da Estátua de Sal, 17/02/2019)


O preço de um medicamento que os hospitais privados cobram à ADSE chega em alguns casos a uma diferença de 2950%. São muitos os exemplos, e vão desde o simples paracetamol, que tanto pode custar 0,12 cêntimos como 3,66 euros. E, se a comparação for feita entre o que uma unidade pública paga por um determinado remédio e o que um prestador privado fatura à ADSE, as diferenças também são abissais.

Por exemplo, um hospital público pagou 236 euros pelo Denosumab injetável, usado para evitar complicações causadas por metástases ósseas, enquanto um privado imputou à ADSE 445 euros. Ainda no campo da oncologia, o preço de um comprido Ondansetron, usado para os vómitos provocados pela quimio e radioterapia, varia entre os 0,6 cêntimos pagos no público e os quatro euros faturados à ADSE por um privado.

E estes são medicamentos de preços acessíveis, referem gestores hospitalares ao DN. Já quando se trata dos chamados medicamentos inovadores, com preços bastante elevados, essas diferenças podem chegar aos milhares de euros, em algumas situações com valores superiores a 40%. Além de que estes remédios não precisam de autorização do Infarmed para serem ministrados no privado – no público passam por um processo complexo de autorização de utilização especial (AUE). Esta situação, se por um lado pode gerar desigualdades entre quem é tratado num ou noutro sistema, por outro também pode levar a que se gaste milhares de euros sem que a eficácia do tratamento seja comprovada, alertam. A questão, dizem essas mesmas fontes, é que “a ADSE não tem filtro” e “necessita de um sistema de validação e de litigância” para poder fazer baixar os valores cobrados.
Códigos abertos e os 38 milhões.

Estas discrepâncias de preços são possíveis porque nas tabelas de preços dos regimes convencionados com prestadores privados apresentam códigos abertos – ou seja, não existem limites de preços, o que permite aos privados cobrar o que entenderem.

E foi ao tabelar pelo preço mais baixo que a ADSE chegou a 38,8 milhões de euros que considera terem sido sobrefaturados pelos privados só em 2015 e 2016. Deste total, segundo o estudo de Eugénio Rosa, do Conselho Diretivo da ADSE, 31,7 milhões (81,6%) tinham sido faturados a mais pelos cinco maiores grupos privados da saúde – Luz, José de Mello Saúde, Lusíadas, Trofa e HPA do Algarve. O braço-de-ferro entre os gigantes da saúde e o governo já levou a que estes tenham vindo anunciar a suspensão das convenções a partir de meados de abril – Lusíadas foi o único que não avançou com data.

A sobrefaturação, diz a ADSE, acontece em próteses e medicamentos e outros consumos em sala de cirurgia ou internamento – uma prótese com o mesmo código custou num caso 12 608 euros e noutro 21 676 euros.
Por isso, sublinhou ao DN o Conselho Diretivo da ADSE, “a tabela de regime convencionado que está a ultimar incluirá, nomeadamente, preços fixos máximos que a ADSE e o beneficiário (quando aplicável) podem suportar com procedimentos cirúrgicos, medicamentos antineoplásicos e imunomodeladores e próteses intraoperatórias. Desta forma, a atual regra de que os prestadores podem faturar estes atos aos preços que entendam e a ADSE regulariza posteriormente deixará de existir para estes atos médicos assim que esses preços sejam fechados”.

A existência de regras prévias é, na opinião de Bagão Félix, essencial para pôr fim a esta disparidade nos preços, de forma a que todos conheçam as regras do jogo. “A ADSE tem de ter meios para negociar um preçário, atendendo a uma consulta de mercado prévia. Quanto maior for o controlo e a gestão contratual, menor tendência haverá para abusos.” O ex-ministro das Finanças e também o da Segurança Social têm algumas reticências sobre a devolução da faturação e o facto de a ADSE estabelecer como referência os valores mais baixos praticados por um determinado prestador de cuidados em nome de um preço que, afinal, não é conhecido do mercado. A guerra da devolução dos 38,8 milhões já levou a ADSE a pedir um parecer à Procuradoria-Geral da República que lhe deu razão. E, perante as ameaças dos privados em denunciar as convenções, o primeiro-ministro, António Costa, já veio mostrar disponibilidade para o diálogo, exigindo contudo boa-fé. Também a associação do setor disse na quinta-feira que há margem para voltarem atrás.

Cartel da Saúde, S.A.

(Marco Capitão Ferreira, in Expresso Diário, 13/02/2019)

capitaoferreira

O País adora discutir a ADSE, como tantos outros assuntos, a partir de uma posição de saber pouco e achar que sabe muito. Normalmente, cai-se numa verborreia qualquer sobre ter de se acabar com a ADSE porque é um privilégio.

Que há anos a esta parte ela seja inteiramente paga pelos próprios trabalhadores é ignorado pela maioria, mais uns quantos sonsos que, sabendo, fingem que não sabem.

Depois diz-se que os funcionários públicos têm mais é de contribuir para o Serviço Nacional de Saúde. Coisa que fazem, claro, porque pagam os mesmos impostos que os outros.

Reparem, estas mesmas pessoas não querem defender o Serviço Nacional de Saúde, querem atacar a ADSE.

Porque não têm nenhum problema com sistemas de saúde complementares de outras profissões (SAMS, PT-ACS, etc). E muito menos com seguros de saúde privado. Esses podem ser feitos, as pessoas são livres, gastam o seu dinheiro como quiserem. Só os funcionários públicos não podem. Devem ser menos que os outros.

Mas enfim, adiante. Uma das razões porque há quem não goste da ADSE é que ela tem poder de mercado negocial. Por ser o maior subsistema complementar do País negoceia com os privados numa posição de menor assimetria de poder de mercado que muitos outros. Um dos segredos dos privados na Saúde é este: são contra a ADSE, mas existem muito por conta da ADSE.

E é aqui que vos quero trazer hoje. O lugar dos privados na Saúde tem sido muito discutido a propósito da Lei de Bases da Saúde. Independentemente de onde nos posicionemos nesse assunto – e entre a visão de Maria de Belém e a da atual Ministra vai um mundo, e eu prefiro o segundo – há aqui sinais muito preocupantes.

Uma empresa privada na área da Saúde é livre de querer ou não continuar a manter o acordo com a ADSE. Mas o que assistimos nos últimos dias foi muito diferente. Foram diversas empresas privadas, em perfeita consonância de posição negocial, exercerem um poder de mercado conjunto como forma de pressão negocial. Alguém algures decidiu combinar que iam todos fazer o mesmo.

Isto tem um nome e é ilegal: é um cartel.

Eis as maravilhas do mercado a funcionar por si. Supondo que na Autoridade da Concorrência as pessoas estão acordadas, as buscas devem decorrer ainda hoje e a punição será rápida e exemplar. Distorcer o funcionamento do mercado é sempre grave. Fazer isso com serviços de saúde é gravíssimo.

Brinco, claro está, não vai acontecer nada. Mas para quem quiser abrir os olhos, aqui está um bom exemplo de porque é que cometer aos privados um papel maior no âmbito da prestação de cuidados de saúde é um erro, mesmo que nos posicionemos ideologicamente mais à direita. Os privados, como se vê, não distinguem saúde de outros bens e serviços quando se trata de prosseguir o lucro custe o que custar. Nem que seja vidas humanas.

Agora imaginem que o SNS não existia. Onde iriam mais de um milhão de pessoas tratar-se? Onde iríamos todos, e a que preço? Não é preciso especular: íamos acabar por ter um mercado de cuidados de saúde onde a taxa de sobrevivência dependeria do decil de rendimentos. E recusar isso, meus caros amigos, não é já tanto uma questão ideológica. É uma questão de sermos civilizados.