(Viriato Soromenho Marques, in Jornal de Letras, 19/03/2025)

(A cambada lá conseguiu calar o Viriato na sua coluna semanal que mantinha, há anos, no Diário de Notícias, Andava a ser demasiado incómodo a abrir os olhos aos carneirinhos. Pelos vistos o homem agora tem que publicar no Jornal de Letras e em blogs, tendo muito menos visibilidade. Mas há sempre alguém atento nas redes sociais a chamar a atenção da Estátua para este excelente artigo.
Estátua de Sal, 21/03/2025)
Como nos sistemas totalitários, formou-se no Ocidente uma cultura de massa vigilante para com a dissidência. Na imprensa ocidental, vozes desafinadas, jornalistas e colaboradores, mesmo académicos prestigiados, foram afastados. Nas universidades, fez-se caça às bruxas. Carreiras profissionais foram interrompidas. O objetivo de quem domina e manipula consiste em manter o controlo da narrativa binária: “ou és amigo, ou és inimigo”. Para isso, seria preciso esconder os factos, se não fosse possível destruí-los.
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Uma das mais dolorosas aprendizagens durante estes mais de três anos de guerra na Ucrânia tem sido a de confrontar-me com o trágico declínio da honorabilidade académica e do brio intelectual, tanto nas instituições universitárias como nos meios de comunicação social. É com tristeza que tenho acompanhado o modo como professores, investigadores e jornalistas têm violado o imperativo de “imparcialidade homérica”, expressão cunhada por Hannah Arendt para definir uma virtude específica da tradição espiritual do Ocidente: a capacidade de analisar com objetividade a realidade, a natureza das situações, e os motivos dos agentes coletivos e individuais, mesmo no quadro de conflitos violentos. O exemplo indicado por Arendt foi o do modo como Homero, na Ilíada, tratou as principais personalidades envolvidas nesse grande drama épico, escrito na aurora da literatura europeia: o príncipe troiano, Heitor, e o herói grego, Aquiles. O imortal autor grego não menorizou nem diabolizou Heitor, nem idolatrou Aquiles. Pelo contrário, procurou reconhecer neles as qualidades humanas e os motivos que dirigiam a sua conduta. Isso significa estar atento aos dados reais, aos factos elementares, fazendo abstração dos preconceitos.

Na guerra da Ucrânia nada disso aconteceu. A invasão militar russa, libertou no Ocidente um tsunami propagandístico que há muito esperava que ela acontecesse. Slogans correram a imprensa de todo o mundo, nomeadamente, a frase “invasão não provocada”. Riscar a história, significa colocar a invasão num plano estritamente jurídico e moral. Se uma agressão não tem causas, isso significa que se tratou do ato de um agente malévolo. Ao aceitarem a tese de uma invasão fora da esfera objetiva e material da causalidade, muitos cientistas sociais juntaram-se ao registo ululante e propagandista de uma nova vaga de russofobia, que há muito estava a ser preparada. Já em 2014, Kissinger acusava a crescente diabolização de Putin nos meios de comunicação social americanos como sendo o pior exemplo da ausência de uma política realista dos EUA perante a Rússia. Na verdade, a russofobia, velha presença na cultura ocidental, foi intensificada nos últimos quinze anos. Disso são prova os filmes e séries, onde os russos são sempre tratados como criminosos.

Perante a guerra, esta ou qualquer outra, o que se espera de um intelectual é o exercício da sua capacidade analítica, antecipada pela procura dos dados empíricos que são as fontes primárias que alimentam o pensamento crítico. Nada disso sucedeu. Como nos sistemas totalitários, formou-se no Ocidente uma cultura de massa vigilante para com a dissidência. Na imprensa ocidental, vozes desafinadas, jornalistas e colaboradores, mesmo académicos prestigiados, foram afastados. Nas universidades, fez-se caça às bruxas. Carreiras profissionais foram interrompidas. O objetivo de quem domina e manipula consiste em manter o controlo da narrativa binária: “ou és amigo, ou és inimigo”. Para isso, seria preciso esconder os factos, se não fosse possível destruí-los.
Agora, quando a guerra se encontra num momento tão sangrento como decisivo, a necessidade de mergulhar nas fontes, de conhecer os acontecimentos, de ler os documentos, é mais necessária do que nunca. Nesse sentido, os norte-americanos sempre se portaram melhor do que os europeus. Enfrentaram com mais coragem os obstáculos, também imbuídos pelo imperativo ético de denunciarem os abusos praticados pelo seu país para ocultar as suas próprias responsabilidades. São três documentos de autores norte-americanos, aquilo que gostaria de propor ao leitor. Estes três contributos são de uma riqueza extraordinária, e são acessíveis a todos os que a eles queiram aceder. Indispensáveis para a formulação de um juízo esclarecido e livre.

Primeiro. Conferência de Jeffrey Sachs no Parlamento Europeu. No dia 21 de fevereiro, por convite do deputado alemão, conde Michael von der Schulenburg (da Aliança Sahra Wagenknecht), um dos mais famosos e influentes economistas mundiais veio falar ao Parlamento Europeu, até hoje uma das mais belicistas instituições da UE. Durante mais de hora e meia, Jeffrey Sachs falou com conhecimento de causa, profunda sabedoria e notável eloquência sobre a sua experiência vivida junto de responsáveis políticos dos EUA e da Rússia, além de outros países do leste europeu, durante os mais de 30 anos que precederam a guerra. Testemunhou com veemência o efeito devastador de uma política externa dos EUA, onde o excesso de vontade de poder contrastava com a falta de competente prudência (1).

Segundo. Uma Cronologia da Guerra da Ucrânia. Dois escritores e jornalistas independentes americanos – Matt Taibbi e Greg Collard – produziram um documento que é um tesouro documental para historiadores profissionais e amadores. Inseridas nessa cronologia, encontram-se 114 documentos – ofícios desclassificados, filmes, gravações áudio, cópias de declarações oficiais, etc. -, desde a célebre reunião de 9 de fevereiro de 1990 (quando os EUA prometeram à URSS de Gorbachev que a NATO não se estenderia para Leste…) até à atualidade. Descarregando estes materiais, o leitor poderá construir o seu próprio arquivo sobre o sombrio rasto deixado pelas reais causas deste conflito (2).
Terceiro. As responsabilidades do Ocidente. O terceiro e último documento é um ensaio breve, mas muito esclarecedor, de um investigador independente, Benjamin Abelow. Escrito no início do conflito, este ensaio recolhe uma pertinente informação sobre os numerosos esforços de diplomatas, políticos e académicos norte-americanos que tentaram evitar o alargamento da NATO e a degradação crescente das relações russo-americanas que tal implicaria. Muito bem assente nos dados empíricos, o ensaio partilha com os leitores o pensamento de autores de grande relevância, entre os quais sobressaem os seguintes: John Mearsheimer, Stephen F. Cohen, Richard Sakwa, Gilbert Doctorow, George F. Kennan, Chas Freeman, Douglas Macgregor, e Brennan Deveraux (3).

Trata-se de uma oportunidade única de alargar horizontes. Sobretudo, o leitor pode encontrar aqui instrumentos que o imunizam contra a poderosa máquina de desinformação e manipulação, que considera a liberdade do espírito crítico como o seu principal inimigo.
Notas:
- Jeffrey Sachs (21 02 2025) Brings Real Politics to the EU Parliament (1h 38’). https://www.youtube.com/watch?v=_RNE3X41IvM
- Matt Taibbi & Greg Collard (07 03 2025), Timeline: The War in Ukraine.
- Benjamin Abelow, How the West Brought War to Ukraine. Understanding how U.S. and NATO Policies led to Crisis, War, and the risk of Nuclear Catastrophe, Great Barrington, Siland Press, 2022. https://progressivehub.net/wp-content/uploads/2023/11/How-the-West-Brought-War-to-Ukraine.pdf
Estes documentos, dispensados pelo Professor Viriato Soromenho Marques, são de uma importância
incalculável. Se, por um exercício de ilusionismo pudesessemos pôr o povo da Europa a ler este material, com atenção e espírito aberto, as cabeças “doentes” das cúpulas da União Europeia iriam rolar rapidamente. Só os burros continuavam a segui-los. Infelizmente, tal sonho é impossível e o “povão” vai continuar a engulir todas as patranhas que lhes enfiam, sem usar os neurónios. Só espero que, quando se propuserem enviar para a suposta guerra, os filhos e netos, haja alguma atenção ao que verdadeiramente está em jogo.
Obrigado pela lição de história e pela introdução do conceito de “imparcialidade homérica”, que no fundo remonta a um dos mais célebres autores fundacionais da história, cultura e literatura europeias (e ocidentais), e talvez à sua obra mais divulgada, a Ilíada, a par da Odisseia.
E também pelas fontes do passado próximo e mais contemporâneas, que são tão preciosas nos dias que correm, pela sua falta de divulgação na comunicação social de massas, que prefere dar palco à propaganda e desinformação desenfreadas e manipuladoras (fabricadoras de “percepções” e “subjectividades” a la carte).
Mantenha a boa forma, senhor professor, e os excelentes conteúdos nos seus valiosos artigos.
Foi precisamente graças à capacidade de Homero em narrar factos históricos, que entretanto já tinham adquirido uma patine mítica e continham uma aura mitológica (o conflito na Ucrânia não tem essa dimensão sobrenatural e épica, é de uma natureza política e económica, mesmo que a propaganda por vezes a queira recriar, misturada em obscurantismo e ideologias de purismo identitárias neopagãs, ou fundamentalistas cristãs), e de alguma forma romancear os eventos, os actores e as personagens que participaram nesses acontecimentos, mesmo que apenas liricamente – que vão dos animais aos deuses, passando por oráculos, sacerdotes, princípes, reis, daemons e semi-deuses, e heróis e soldados anónimos, de ocasião – que no século XIX, alguém foi levado a redescobrir a localização de Tróia e desenterrá-la numa das mais famosas (e infames) escavações arqueológicas de sempre.
Hoje em dia temos uns argumentistas que tentam dourar a pílula, criam os “Fantasmas de Kiev”, e os “Heróis da Ilha da Serpente”, mas não conseguem nem ser rigorosos com os dados históricos nem retratar as personagens com um mínimo de distanciamento.
«Com a Ilíada nas mãos, em busca de Troia
Schliemann era uma mistura de sonhador, pioneiro e saqueador colonial. Um sonhador porque viajou pela Turquia com uma edição da Ilíada na mão, visando localizar Troia. Um pioneiro, porque no final do século 19 inventou métodos de pesquisa utilizados ainda hoje. E saqueador, porque simplesmente carregava consigo os achados arqueológicos.
Ainda hoje ele é uma figura controvertida, e muitas vezes considerado mais aventureiro do que arqueólogo. Ele não via problemas em adicionar coisas inventadas aos seus registros. “Todo arqueólogo de hoje desaconselhará tomar Schliemann como guia, pois ele não procedia de acordo com os padrões da arqueologia da época”, comenta o historiador Ernst Baltrusch.
Também o conceituado arqueólogo Ernst Curtius, seu concorrente, nunca o respeitou de verdade, conta. Muitos pesquisadores condenam Schliemann por deixar seus trabalhadores cavarem trincheiras profundas sem levar em conta as perdas, destruindo irremediavelmente importantes vestígios de assentamentos. Em vida, ele foi especialmente bem recebido na Inglaterra, onde era celebrado como o descobridor da lendária Troia.
Guerra de Troia, mito ou realidade?
A busca pela cidade dura milênios, mas ninguém conseguiu provar que havia alguma verdade no épico sobre a Guerra de Troia. “O que está escrito em Homero e o que Schliemann tomou como base para sua arqueologia ainda hoje é controverso”, diz Baltrusch.
“Não se sabe se essa guerra realmente aconteceu”, mas o que tornou Schliemann relevante foi sua interpretação literal da Ilíada: “Ele aprendeu grego antigo para entendê-la e depois saiu em busca dos sítios, partindo da ideia de que houve uma Guerra de Troia”.
Em 1871, então com 49 anos de idade, ele tropeçou nos supostos restos da cidade de Troia sob a colina de Hisarlık, no noroeste da hoje Turquia. E não era o primeiro a acreditar que a cidade descrita por Homero ficasse exatamente ali: o britânico Frank Calvert já explorara a região antes dele.»
https://www.dw.com/pt-br/h%C3%A1-200-anos-nascia-o-alem%C3%A3o-que-descobriu-troia/a-60347340
Mais do que isso, facilmente se criam e divulgam personagens e histórias fictícias, ou mal contadas, e se apagam dos relatos eventos e populações inteiras, como se não existissem. Ou então atribuem actos malvados apenas a alguma(s) das partes ou facções, e elevam a(s) outra(s) ao nível de imaculados ou perfeitos.
Estas manipulações acontecem porque os relatos que nos chegam são veiculados pelas centrais de informação e inteligência, nomeadamente de uma das partes do conflito, a que o ocidente alimenta, financia e fornece, como sendo fidedignas e inquestionáveis, enquanto os que provêm da outra parte são censurados e classificados oficialmente como “propaganda e desinformação” pura e dura, sem qualquer nuance, e portanto merecedoras de todo o descrédito.
Ao menos Homero deixava isso à consideração dos leitores, explicando as motivações e as histórias pessoais e individuais, assim como a essência das histórias colectivas das várias partes e facções. E não apagava nenhuma dessas individualidades ou colectividades dos relatos, mesmo que alguns dos que constavam fossem puramente mitológicos ou míticos.
É a diferença entre cultura e propaganda, uma alimenta a “civilização”, a outra provoca a sua conturbação e dissolução, levando aos caminhos da “barbárie”.