Em 9 de Abril de 2022, Zelensky preferiu a guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos – Parte III

(José Catarino Soares, 13/02/2024)

Oleksiy Arestovych numa das suas intervenções diárias como “terapista-mor” da Ucrânia, antes de ter caído em desgraça, em Janeiro de 2023.

3.3. A recomendação e a profecia de Arestovych em 18 de Fevereiro de 2019

A recomendação de Arestovych foi a de que a presidência de Zelensky (que na altura era apenas um simples candidato a esse cargo e cuja candidatura Arestovych apoiou) deveria pedir à OTAN(/NATO) um “Plano de Acção para a Adesão Individual” (Ingl. “Membership Action Plan”) a esta aliança militar. Esse pedido, frisou Arestovych, não poderia deixar de desencadear como resposta uma invasão da Rússia, razão pela qual a Ucrânia deveria empenhar-se «numa guerra total com a Rússia», como «preço a pagar para a entrada da Ucrânia na OTAN” e, sobretudo, como sua recompensa com “base na vitória” da Ucrânia.

Esta confiança ‒ auto-ilusória e auto-intoxicante, como se viu ‒ na vitória da Ucrânia nessa guerra com a Rússia, decorria, declarou Arestovych nessa entrevista, da certeza de que a Ucrânia seria «muito activamente auxiliada pelo Ocidente — com armas, equipamento, assistência, novas sanções contra a Rússia e, muito possivelmente, a introdução de um contingente da OTAN, a interdição do espaço aéreo da Ucrânia [pela OTAN], etc. Nós não perderemos e isso é bom».

A profecia de Arestovych, que se revelou certeira, foi a de que essa guerra começaria em 2021 ou 2022, quando a Rússia se convencesse de que teria de desmilitarizar (anular o poderio militar) a Ucrânia e neutralizar a potencial ameaça nuclear que a Ucrânia representava [7] antes de esta ser admitida como membro de pleno direito na OTAN e de maneira a impedir que isso acontecesse [8].

(O trecho mais importante da entrevista de Arestovych de 2019 pode ser visto e ouvido, com legendas em Inglês, aqui.

Desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 24 de Fevereiro de 2022, até Janeiro de 2023, Arestovych fez pontos de situação diários em vídeo sobre a evolução da guerra, na qualidade de assessor e porta-voz do Gabinete do Presidente da Ucrânia. Esses vídeos, quase sempre ultra-optimistas (“vamos ganhar”, “estamos perto da vitória”, “Putin vai ser afastado”, etc.), juntamente com a certeira profecia de 2019, granjearam-lhe a alcunha de “terapeuta-mor” da Ucrânia (por levantar o moral da sua população, acabrunhada pelas agruras da guerra) e um enorme número de seguidores: cerca de 700 mil no FaceBook, 1 milhão no Instagram e mais de 1,6 milhões no YouTube [9].

Todavia, o aspecto importante a salientar para o propósito deste artigo é o facto de Arestovych ter sido, tal como Oleksandr Chalyi e Davyd Arkhamia, um dos membros da delegação da Ucrânia nas negociações de paz com a Rússia que tiveram lugar na Turquia em Março-Abril de 2022.

4. O testemunho de Chaliy: “Putin fez tudo para conseguir um acordo”

O outro ponto a salientar ‒ e bem mais importante para o propósito deste artigo ‒ é que os testemunhos de Davyd Arakhamia e Gehrard Schröeder (eles próprios antecedidos pelo testemunho de Naftali Bennett, ex-primeiro ministro de Israel em 4 de Fevereiro de 2023) foram corroborados pelos recentes testemunhos de Oleksandr Chaliy e Oleskiy Arestovich.

Numa conferência realizada na Suíça, em 5 de Dezembro de 2023, pelo Geneva Centre for Security Policy (GCSP), o embaixador Chaliy afirmou:

«Eu fazia parte, nesse momento, do grupo de negociadores ucranianos que negociámos com a delegação russa praticamente durante 2 meses, em Março e Abril [de 2022], um possível acordo de paz entre a Ucrânia e a Rússia. Como se lembrarão, nós finalizámos o chamado “Comunicado [=Acordo] de Istambul” e estávamos muito perto, no meio de Abril e no fim de Abril [é evidente que se trata, aqui, de um lapso verbal do embaixador Chaliy, que teria querido dizer “no meio de Março e no fim de Março,” n.e.], de alcançar o nosso objectivo de celebrar um acordo de paz. Por alguma razão, o acordo foi revogado. Mas, no meu entendimento ‒ esta é a minha opinião pessoal ‒ Putin, uma semana depois de ter iniciado a sua agressão em 24 de Fevereiro do ano passado, rapidamente compreendeu que tinha cometido um erro [ao fazê-lo] e tratou de tentar tudo o que era possível para concluir um acordo com a Ucrânia. Foi uma decisão pessoal dele aceitar o texto do comunicado de Istambul, que se afasta completamente da proposta inicial, do ultimato que a Rússia apresentou à delegação da Ucrânia em Minsk. Por conseguinte, ele conseguiu realizar um compromisso muito sério e, portanto, Putin quis realmente chegar um acordo de paz com a Ucrânia. É muito importante lembrá-lo» [o destaque, por meio de negrito, foi acrescentado ao original, n.e.] [n.e. = nota editorial]

(O depoimento de Chaliy pode ser visto e ouvido, em Inglês, aqui. O trecho citado começa no momento 28m13s e termina no momento 29m39s).

5. As incompreensões, erros e omissões do embaixador Chaliy

O embaixador Chaliy parece incapaz de compreender (ou sequer admitir como hipótese plausível) que a denominada “operação militar especial” (OME) da Rússia em 24 de Fevereiro de 2022 se destinava, num primeiro tempo, não a tomar Quiev (como fantasiosamente alvitram tantos comentadores de meia-tijela), mas a levar a Ucrânia rapidamente à mesa das negociações. No entanto, foi isso exactamente o que aconteceu.

No dia seguinte à entrada das tropas russas na Ucrânia, Zelensky (e não Putin, como sugere Chaliy) propôs negociações com a Rússia, que foram aceites. A primeira reunião foi realizada quatro dias após o início da OME, em 28 de Fevereiro de 2022, na cidade de Gomel, na Bielorrússia. Terminou sem resultado, com as delegações de ambos os lados regressando às suas capitais para consultas. A segunda e terceira rondas de negociações ocorreram em 3 e 7 de Março de 2022, em Brest, outra cidade da Bielorrússia perto da fronteira com a Ucrânia. A quarta e quinta rondas de negociações foram realizadas em 10 de Março, em Antália, na Turquia, e em 12 de Março por videoconferência. A sexta ronda ocorreu em 29-30 de Março, em Istambul, prolongando-se pelos dias seguintes de Abril, desta vez com os resultados relatados por Arakhamia e Schröeder.

Mas não podemos de modo nenhum escamotear o que viemos a saber em 4 de Fevereiro de 2023 (pela boca de Naftali Bennett). É um assunto sobre o qual o embaixador Chaliy não diz uma palavra, a saber: logo na primeira semana de Março de 2023, Naftali Bennett (na altura, primeiro-ministro de Israel) foi contactado por Zelensky, que lhe pediu para mediar um acordo entre a Ucrânia e a Rússia. Bennett aceitou o pedido e conseguiu realizá-lo com êxito. Em 4 de Março, Bennett encontra-se com Putin em Moscovo e negoceia com ele um acordo. Nesse acordo, Putin garantia que não tinha quaisquer planos para assassinar ou derrubar Zelensky do poder (um receio que Zelensky expressou publicamente em 24 de Fevereiro de 2022 e que Bennett transmitiu a Putin) e deixava cair a exigência de “desmilitarização” da Ucrânia. Por seu turno, Zelensky comprometia-se a adoptar um estatuto de neutralidade militar para a Ucrânia, em que esta renunciava concomitantemente ao objectivo de entrar na OTAN [10]. Por conseguinte, a terceira, quarta e quinta rondas de negociações decorreram já sob o signo desse acordo preliminar entre os dois Presidentes. 

O embaixador Chaliy afirma que o acordo entre a Ucrânia e a Rússia «foi revogado por alguma razão». Só não diz por quem (Zelensky!), nem qual a razão: a interferência directa e avassaladora do “Ocidente”, mais concretamente ‒ como revelaram Bennett, Arakhamia e Schröeder ‒ dos EUA, Reino Unido (com Boris Johnson no papel de deus Mercúrio), a Alemanha e França. Não obstante, e esse é o ponto importante do seu depoimento, Chaliy faz questão de frisar que Putin fez tudo o que era possível para que esse acordo fosse feito.

6. O testemunho de Arestovych: “o acordo era tão bom que abrimos uma garrafa de champanhe”

O segundo testemunho é de Arestovych, numa entrevista datada de 15 de Janeiro de 2024, e vai no mesmo sentido.

Arestovych: Sim, fui membro do processo de Istambul e foi o acordo mais proveitoso que podíamos ter feito. /…/ Mas agora — não sei. Porque a meio do acordo em Istambul viemos para Quieve e depois de Bucha ouvimos o Presidente [Zelensky] dizer que tínhamos parado as negociações. A próxima reunião deveria ter lugar no dia 9 de Abril e foi recusada no dia 2 de Abril.

Entrevistador: Então o senhor regressou de Istambul pensando que as negociações tinham sido bem sucedidas?

Arestovych: Sim, completamente. Abrimos uma garrafa de champanhe. Tínhamos discutido a desmilitarização, a desnazificação, questões relativas à língua russa, à igreja russa e muito mais. Nesse mês,

a questão do número de forças armadas ucranianas em tempo de paz foi discutida e o Presidente Zelenskyy disse: «Posso decidir esta questão indirectamente com o Sr. Putin». Os acordos de Istambul eram um protocolo de intenções e estavam 90% preparados para um encontro directo com Putin. Esse seria o passo seguinte das negociações.

Entrevistador: Qual foi a sequência e como é que Bucha fez descarrilar esse processo?

Arestovych: De facto, não sei. O Presidente ficou chocado com Bucha. Todos nós ficámos chocados com Bucha. Eu estava em Bucha no segundo dia, quando as forças russas foram repelidas. Zelensky mudou completamente de cara quando chegou a Bucha e viu o que tinha acontecido. Muitas pessoas dizem que foi o Primeiro-Ministro Boris Johnson que veio a Quieve e pôs fim às negociações com a Rússia. Não sei exactamente se isso é verdade ou mentira. Ele foi a Quieve, mas ninguém sabe do que falaram, excepto, penso eu, Zelensky e o próprio Boris Johnson. Penso que foi no dia 2 de Abril, e eu estava em Bucha no dia seguinte. O Presidente chegou um dia depois, por isso pode ter sido no dia 4 de Abril, e a reunião seguinte seria no dia 9 de Abril. Portanto, alguma coisa aconteceu nesses cinco dias. Mas os membros do grupo de negociações interromperam todas as negociações. Quando perguntámos como poderiam ser retomadas, o Presidente disse: “Algures, um dia, mas não agora”.

Entrevistador: Então, alguma coisa fez Zelensky mudar de ideias?

Arestovych: Sim, absolutamente. E os historiadores terão de encontrar uma resposta para o que aconteceu.

Entrevistador: Mas acha que a Rússia foi sincera? Ter-se-ia mantido fiel a esse acordo negociado?

Arestovych: Os russos mostraram-se disponíveis para continuar as negociações e nós recusámos. /…/ [11] [destaque, por meio de negrito, acrescentado ao original, n.e.].

(A entrevista de Arestovych pode ser vista e ouvida, em Inglês, aqui. O trecho citado começa no momento 35m34s e termina no momento 41m30s).

[continua]


Notas e Referências

[7] Em 15 de Abril de 2021, Andriy Melnyk, embaixador da Ucrânia na Alemanha, anunciou a intenção da Ucrânia de se dotar de armas nucleares, caso não fosse integrada na OTAN a breve trecho. «Ou fazemos parte de uma aliança como a OTAN e damos o nosso contributo para reforçar esta Europa, ou só temos uma opção: rearmarmo-nos. De que outra forma poderíamos garantir a nossa defesa?», disse Melnyk, citado pela agência noticiosa alemã DPA (cf. “Ukraine may seek nuclear weapons if left out of NATO”, Aljazeera, 16 April 2021; “Ukraine Gave Up a Giant Nuclear Arsenal 30 Years Ago. Today There Are Regrets”. New York Times, February 5, 2022). Em 19 de Fevereiro de 2022, Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, discursando na Conferência sobre Política de Segurança de Munique, reafirmou a intenção da Ucrânia de se dotar de armas nucleares e de renunciar assim, na mesma passada, ao estatuto de neutralidade militar que a Ucrânia aceitara ao subscrever o “Memorando de Budapeste sobre Garantias de Segurança” (1994) e que tinha cumprido até então. Zelensky declarou que esse memorando estava obsoleto (cf. “Zelensky’s full speech at Munich Security Conference”. The Kyiv Independent, February 19, 2022).

[8] Para a boa compreensão desta profecia de Arestovych, convém recordar dois factos: um sobre a preparação da Ucrânia para uma grande guerra com a Rússia ‒ adiante referido como A ‒ e outro sobre o momento propício para o começo dessa guerra, adiante referido como B

A) Com o auxílio de instrutores e conselheiros militares da OTAN (/NATO) e de oito dos seus Estados-membros (com destaque para os EUA, o Canadá e o Reino Unido), foram treinados 10.000 soldados ucranianos por ano, durante oito anos, a partir de 2014, num centro de treino de 288 km2 em Yavoriv, a 16 km da fronteira polaca (“The Secret of Ukraine’s Military Success: Years of NATO Training.” Wall Street Journal, April 13, 2022). Em 24 de Março de 2021, Zelensky promulga o decreto n.º 117/21 que define o objectivo e a estratégia para reanexar a Crimeia (incluindo Sebastopol), uma república autónoma (e uma cidade federal) da Federação Russa.

B) O artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte, base da OTAN (/NATO), diz o seguinte: «As Partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas, e, consequentemente, concordam em que, se um tal ataque armado se verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima defesa, individual ou colectiva, reconhecido pelo artigo 51.° da Carta das Nações Unidas, prestará assistência à Parte ou Partes assim atacadas, praticando sem demora, individualmente e de acordo com as restantes Partes, a acção que considerar necessária, inclusive o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na região do Atlântico Norte».

Como declarou na sua famosa entrevista de 2019, Arestovych entendia que a Ucrânia e a Rússia tinham uma avaliação coincidente (embora por razões distintas) do momento propício para começar uma guerra entre ambas. Para a Ucrânia, esse momento seria necessariamente ANTES da sua admissão na OTAN, precisamente porque esse seria o preço a pagar pela sua admissão na OTAN, a qual, por sua vez, seria a recompensa que a Ucrânia teria se alcançasse uma vitória sobre a Rússia. Para a Rússia, esse momento seria também, necessariamente, antes da admissão da Ucrânia na OTAN, porque se fosse depois dessa data, a Ucrânia poderia invocar o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte a fim de assegurar a sua defesa. A entrevista completa de Arestovych, com legendas em Inglês, pode ser vista aqui [https://www.youtube.com/watch?v =1xNHmHp ERH8]. O trecho mais relevante começa no momento 7m15segundos.

[9] Estes números variam segundo a fonte consultada: “Olekseiy Arestovych”, Wikipedia em Inglês; Dmytro Oliinyk, “Zelenskyi’s spokesperson: soldier, actor, psychologist, propagandist.” OpenDemocracy, 26 April 2022; Emmanuel Grynszpan, “Who is Oleksiy Arestovych, the ‘shrink’ raising Ukrainian morale?” Le Monde, 23 Septembre 2022. Optei pelos valores máximos de cada uma delas. Sobre a alcunha de “terapeuta-mor” atribuída a Arestovych, ver Konstantin Skorkin, “The rise and fall of Ukraine’s ‘therapist-in-chief’: Zelensky adviser Oleksiy Arestovych is out of a job, but likely not for long”. Meduza, January 20, 2023.

[10] Ver “Bennett speaks out” [https://www.youtube.com/watch?v=qK9tLDeWBzs]. O trecho interessante para o assunto deste artigo vai do momento 2h31m22s até ao momento 3h00m39s, em que Bennett descreve o acordo entre Putin e Zelensky feito com a sua mediação, e como os EUA, o Reino Unido, a França e a Alemanha impediram que fosse por diante.

[11] Freddie Sayers, “Oleksiy Arestovych: Zelenskyy’s challenger.” Unherd, January 15, 2024.


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