O que é o HAMAS? (Parte I)

(José Catarino Soares, 06/11/2023)

Desfile das brigadas Izz al-Din al-Qassam em Gaza.

1. Caracterização

O HAMAS (aqui, e só desta vez, escrito em maiúsculas para lembrar que é o acrónimo árabe para “Movimento de Resistência Islâmica”) é um partido nacionalista, islamista (do ramo sunita), jihadista, teocrático, da Palestina. O seu lema resume bem o seu ideário:

«Alá é o nosso alvo, o Profeta é nosso modelo, o Corão é a nossa constituição, a Jihad é o nosso caminho e morrer por amor a Alá é o nosso desejo supremo» (artigo 8.º da Carta de Princípios do Hamas).

Fica claro, presumo, que a emancipação dos palestinianos nunca poderá ser alcançada pondo este lema em prática.

2. Composição

O Hamas tem três ramos distintos e autónomos: uma entidade caritativa (que estabeleceu e gere uma extensa rede de hospitais, escolas, jardins-de-infância, orfanatos, bibliotecas, clubes juvenis e outros serviços sociais), criada em 1973; uma entidade política (que governa a Faixa de Gaza desde 2006, administrativamente auxiliado pela Autoridade Nacional Palestiniana [1]), criada em 1987; e uma entidade militar (as brigadas Izz al-Din al-Qassam), criada em 1991.

3. O Hamas e a luta armada

Convém saber que a própria ONU reconhece, desde 3 de Dezembro de 1982, através da resolução 37/43 da sua 90.ª assembleia geral, a legitimidade de o povo palestiniano recorrer à luta armada para conquistar o seu direito à autodeterminação. As brigadas Izz al-Din al-Qassam são a maneira como o Hamas interpreta e dá corpo a essa luta armada.

Assim, estas brigadas empregam tácticas de guerrilha (TG) para combater as forças armadas e policiais de Israel, o Estado ocupante e opressor dos palestinianos. Todavia, empregam também tácticas terroristas (TT) contra a população civil israelita, o que constitui uma interpretação abusiva da resolução 37/43.

As TG incluem missões de reconhecimento especial; acções de sabotagem, destruição ou remoção de obstáculos; emboscadas; ataques com morteiros, foguetes, mísseis e drones; surtidas, operações de busca, resgate e salvamento — todas elas dirigidas, regra geral, contra alvos militares e policiais. As TT incluem (tt.1) ataques suicidas, cujo êxito, depende, necessariamente, da morte do(s) agente(s) atacante(s) (e.g. homens-bomba); (tt.2) missões quase suicidas, nas quais os perpetradores podem ou não morrer pelas suas próprias mãos (e.g. sequestro de um avião ou de um navio); (tt.3) colocação furtiva de diferentes tipos de engenhos explosivos improvisados em locais frequentados ou utilizados por muita gente (e.g., centros comerciais, esplanadas, autocarros, aviões), (tt.4) acções terroristas com alvos altamente remuneradores [na lógica do terrorismo [2]] (e.g., assassinatos selectivos; rapto, sequestro e troca de reféns) — todas elas dirigidas, regra geral, contra elementos, grupos e organizações da sociedade civil.

4. Divergências na caracterização do Hamas

O sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado” (SMDCSOA para abreviar) faz vista grossa sobre a estrutura tripartida do Hamas. Armado com esta análise vesga, faz questão de nos repetir todos os dias que o Hamas é, tão-somente, uma organização terrorista — o que já vimos ser um erro, mesmo se reduzíssemos o Hamas apenas às brigadas Izz al-Din al-Qassam.  Além disso, apresenta essa caracterização defeituosa como se ela fosse universalmente aceite. Mas isso também não é verdade.

Não há unanimidade entre os Estados que fazem parte da ONU sobre a caracterização do Hamas. Por exemplo, Israel, EUA, UE (Portugal inclusive), Canadá e Japão consideram o Hamas uma organização terrorista. Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e Egipto consideram terrorista apenas o braço armado do Hamas: as brigadas Izz al-Din al-Qassam. Rússia, China, Turquia, Irão, Brasil, África do Sul e Noruega não consideram o Hamas (nem o seu braço armado) uma organização terrorista.

Para alguns comentadores do SMDCSOA, tanto os governantes dos países pertencentes aos dois últimos grupos, como os cidadãos dos países pertencentes ao primeiro grupo que compartilham a posição desses governantes neste particular, são “idiotas úteis do Hamas” [3].

5. Falhas analíticas

Pode discutir-se a razão de ser destas discrepâncias sobre a caracterização do Hamas, que são parcimoniosamente noticiadas pelo SMDCSOA. A meu ver, estão todas ligadas a duas falhas analíticas:

(i) a falha em reconhecer que o Hamas é semelhante a uma hidra com três cabeças. Se uma for cortada (as brigadas Izz al-Din al-Qassam, por exemplo), as outras duas não desapareceriam como por encanto, porque dispõem de uma forte base social de apoio: a resistência do povo palestiniano à opressão multiforme e sufocante do Estado de Israel.

(ii) a falha em distinguir TG e TT e em reconhecer que o Hamas, através do seu braço armado, emprega ambas.

Seja como for, o SMDCSOA nunca ou raramente nos dirá três coisas essenciais (ver secções 6, 7 e 9), sem as quais não é possível compreender a actuação do Hamas, incluindo o seu ataque em 7 de Outubro de 2023 (ver secção 8).

[continua]


Notas e Referências

[1] O Hamas governa a Faixa de Gaza com a ajuda da ANP (dirigida pela Al-Fatha, organização bem mais antiga e rival do Hamas) que co-financia e co-administra os serviços de saúde e de educação da Faixa de Gaza. Este facto é raramente mencionado nas análises sobre o Hamas e sobre Gaza. 

[2] A lógica do terrorismo consiste em planear e realizar com êxito acções violentas que causem medo intenso ou espalhem medo intenso na população que apoia os seus inimigos políticos e em conseguir fazê-lo de uma forma altamente remuneradora — isto é, que potencie ao máximo, nessa população, o efeito de terror resultante dos danos físicos causados às suas vítimas imediatas (que podem ser desproporcionalmente diminutos relativamente à grande intensidade e abrangência do terror que geram).

[3] Ver, por exemplo, Jorge Almeida Fernandes (doravante JAF, para abreviar), “Os idiotas úteis do Hamas.” (O Estado da Coisas. Público 3 de Novembro de 2023). Para este comentador, «As vítimas palestinianas dos bombardeamentos [de Israel] são de uma natureza muito diferente das vítimas do Hamas». Porquê? Porque (P1) umas vítimas, argumenta JAF, as vítimas de Israel, são o resultado de «efeitos colaterais» dos bombardeamentos; ao passo que (P2) as outras, as vítimas do Hamas, são o resultado de «assassínios planeados». Assim, deduz-se que, para este comentador, os governantes e militares de Israel não cometem crimes de guerra nem crimes contra a humanidade, só os dirigentes e combatentes do Hamas o fazem.  O conceito de “efeitos colaterais” de JAF é, como se vê, muito elástico porque inclui, por exemplo, os 72 funcionários da United Nations Relief and Works Agency (UNRWA), uma agência humanitária da ONU, e as 3.648 crianças e menores vítimas mortais dos bombardeamentos israelitas em Gaza desde 8 de Outubro de 2023.

Mas só não vê quem não quer que estes bombardeamentos são «assassínios planeados» em grande escala e a grande distância, assassínios por atacado — mas que podem também tomar uma forma mais personalizada, como acontece amiúde. O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, declarou a propósito de um dos mais recentes desta última espécie: «Estou horrorizado com o ataque em Gaza [de 3 de Novembro] contra uma caravana de ambulâncias à porta do hospital Al Shifa. As imagens de corpos espalhados na rua em frente ao hospital são angustiantes», disse, acrescentando: «Há quase um mês que os civis em Gaza, incluindo crianças e mulheres, estão sitiados, não recebem ajuda, são mortos e bombardeados fora das suas casas». (“Israel admits airstrike on ambulance near hospital that witnesses say killed and wounded dozens.”CNN, November 4, 2023). Presumo que Guterres, será, para JAF, um dos «idiotas úteis do Hamas». É uma conclusão que faz sentido, se admitirmos as suas premissas, (P1) e (P2). Todavia, para entendermos o qualificativo de “idiota útil” que JAF emprega na sua análise do conflito israelo-palestiniano, faz também todo o sentido aplicar a JAF a distinção que ele faz da natureza das vítimas palestinianas de Israel e das vítimas israelitas do Hamas, mas sem aceitar (como ele pretende) que umas valem menos do que as outras quando as contamos. Se o fizermos, chegamos à conclusão de que JAF se coloca do lado do contendor mais poderoso, mais mortífero e mais impiedoso — ou seja, para empregar a sua própria terminologia, que ele se assume como “um idiota útil de Israel”; quiçá (presumo) com muita honra e orgulho de o ser.


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2 pensamentos sobre “O que é o HAMAS? (Parte I)

  1. O Hamas é isto
    “Quem quiser impedir a criação de um Estado palestiniano deve apoiar o reforço do Hamas e transferir dinheiro para o Hamas. Isto faz parte da nossa estratégia”. Estas são as palavras proferidas por Netanyahu em 2019, segundo o principal diário israelita Haaretz.

    Em 1988, a OLP reconheceu o direito de Israel a viver “em paz e segurança” e declarou a sua “renúncia total” ao terrorismo. Desde então, é reconhecida como o parceiro palestiniano nas negociações para resolver o conflito israelo-palestiniano.

    Para quem segue geopolítica como eu não é difícil perceber que os “grandes” fazem, é condenando os fracos.
    Neste sentido, os grandes podem fazer o que quiserem, enquanto os pequenos ou fracos estão condenados a sofrer as leis injustas dos grandes.

    La Fontaine compreendeu-o bem: “A razão do mais forte é sempre a melhor.
    A grandeza dos grandes arrisca-se a perdê-los; os grandes estão mais inclinados a destruir o mundo em vez de o construir.

    Gostaria de partilhar uma nova visão do conflito entre a Palestina (HAMAS) e Israel, uma vez que, por acaso, o parlamento dos Estados Unidos se recusou a autorizar mais fornecimentos militares e económicos dos EUA à Ucrânia e, por acaso, quando os países europeus que estavam a ajudar a Ucrânia perderam para os Estados Unidos, por acaso, surge uma nova manobra de diversão e penso que o Hamas respondeu a um concurso público perpetrado por uma organização interna dos Estados Unidos, sob a presidência de Joe Biden, para desencadear um conflito fantasma por procuração contra Israel, a fim de permitir que a presidência dos EUA aprove uma nova noção de ajuda estatal para permitir que os Estados Unidos assumam a liderança.

    Penso que o Hamas respondeu a um apelo à apresentação de propostas por parte de uma organização interna dos EUA, sob a presidência de Joe Biden, para desencadear um conflito fantasma por procuração contra Israel, a fim de permitir que a Presidência dos EUA aprove uma nova noção de ajuda estatal que permita aos EUA financiar novamente o conflito israelo-ucraniano. Israelitas como desculpa para uma instabilidade mundial causada pela Rússia e pela China na sequência da sua derrota na Ucrânia e em Taiwan,quando os Estados Unidos falham invertem a sua posição e não conseguem o que querem, desviam as atenções através de um novo conflito por procuração fantasma interno , por isso, entre parêntesis, estes não o Hamas faz guerra direta a Israel, mas o seu maior aliado são os Estados Unidos, através da representação do Hamas, o que permite aos Estados Unidos relançar o seu projeto de noções de ajuda financeira; A sua maior preocupação são os Estados Unidos, através do Hamas, o que permite aos Estados Unidos relançar o seu projeto de ajuda financeira; militar e externa contra a Rússia e a China, pelo que uma nova guerra fria e cortinas de ferro se erguem no horizonte e o risco de quererem desencadear uma desordem mundial através desta marcha para poderem manter a sua hegemonia no mundo. Os Estados Unidos deverão contar com mortos civis à sombra da 3° guerra mundial ….apenas as populações ditas autóctones e largamente manipuladas e doutrinadas serão utilizadas em fins de sacrifícios de satisfações de potências de hegemonia dos Estados Unidos,e as suas últimas cartas são a UE, Coreia do Sul, Taiwan, Japão, Austrália e Índia.

    Conspirar é pecado???

  2. «o Hamas é semelhante a uma hidra com três cabeças»
    Por outras palavras: é uma hidra com uma cabeça e três braços, ancorada no Corão e no mais arcaico do sentido deste.
    E se «morrer por amor a Alá é o nosso desejo supremo», não tenho nada contra quem lhe queira satisfazer tão ardente desejo.
    Podiam entretanto promover que se deslocasse para sul quem não tem um tal desejo.

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