Um país doente

(José Sócrates, in Diário de Notícias, 01/10/2023)

Dizem que o julgamento de Manuel Pinho vai começar e não quero fazer parte da coligação de silêncio nacional que se estabeleceu com o propósito de normalizar a inacreditável sucessão de abusos judiciais no processo penal que enfrenta.

No final de julho, como estarão lembrados, a sua pensão foi novamente arrestada. Ela tinha sido arrestada uma vez e a decisão revogada pelo Tribunal da Relação. Foi arrestada uma segunda vez e, mais uma vez, foi desarrestada pelo mesmo Tribunal. Foi agora arrestada uma terceira vez. Na altura alguém me disse que desta vez tinham ido longe demais, que era um escândalo e que iria haver uma reação. Grave engano.

Os que assim pensam não perceberam ainda onde chegou a falta de escrúpulos com o direito democrático. O jornalismo começou imediatamente a operação de normalização – o incidente é reportado como um exercício de contorcionismo. Desta forma, dizem os jornalistas, o Ministério Público contornou o acórdão do Tribunal da Relação. Pronto, contornaram. Simples exercício de inteligência – contornaram. A especialidade do jornalismo português é normalizar o absurdo.

O que se passou não foi nenhum contorno, foi um infame espetáculo de desobediência a uma sentença de um tribunal superior. Os veredictos dos tribunais não são um obstáculo que possa ser contornado – são decisões que devem ser acatadas por todos, em particular pelas autoridades penais. O que se passou é, pura e simplesmente, um abuso de poder. Um episódio de bandalheira judicial. O Departamento Central de Instrução a Ação Penal exibe assim o seu esplêndido poder, cumprindo apenas as decisões judiciais que lhe agradam, não as outras. As outras devem ser contornadas. E o que é absolutamente extraordinário neste episódio é que são sempre os mesmos protagonistas a recusar obedecer, uma, duas, três vezes. Sempre o mesmo procurador e sempre o mesmo juiz. Os dois recusam aplicar as decisões dos tribunais superiores. Os dois acham que estão acima da lei. Melhor, os dois acham que eles são a lei.

A violência estatal contra Manuel Pinho é obscena. E o silêncio à volta dessa violência mais ainda. Está preso preventivamente há quase dois anos em razão de perigo de fuga que foi deduzido de três factos. O primeiro facto é a venda de património em Portugal, o que é falso. É verdade que no final de 2016 vendeu a sua casa em Lisboa para amortizar o empréstimo bancário, mas nessa altura não havia nenhuma notícia de que era suspeito em qualquer processo e, por essa razão, é impossível ligar essa venda a qualquer intento de fuga. Mais ainda, depois dessa venda Manuel Pinho herdou várias propriedades e não vendeu nenhuma, tendo investido, aliás, na recuperação da antiga casa de sua mãe onde habita presentemente. Portanto, e em conclusão, toda a história da venda de património é uma fraude.

O segundo facto é o de encerramento de contas bancárias em Portugal. Igualmente falso. Manuel Pinho não encerrou nenhuma conta bancária em Portugal. Pura e simplesmente isso nunca aconteceu.

Finalmente, o terceiro facto que levou os procuradores a invocarem perigo de fuga, é que Manuel Pinho terá decidido viver no estrangeiro (mais concretamente em Alicante, Espanha) quando soube da constituição como arguidos dos dirigentes da EDP. De novo, a história é falsa. As medidas de coação a António Mexia e Manso Neto foram decididas em 2020 e Manuel Pinho decidiu viver em Espanha em 2018, antes, portanto, de ambos terem sido constituídos arguidos. Esse facto consta do documento oficial passado pelas autoridades espanholas datado de julho de 2018. Em conclusão, os três argumentos são falsos.

Há, todavia, um outro argumento, um quarto argumento, para justificar o perigo de fuga – Manuel Pinho tem filhos a viver no estrangeiro. Bom, esse argumento é verdadeiro, mas o leitor que julgue por si próprio o que ele significa. Para mim, a invocação desta razão é tão repugnante que me faz imediatamente lembrar o tempo em que as polícias de Estado convidavam os filhos a denunciar os pais.

Bem vistas as coisas, e pondo de lado o cinismo que envolve tudo isto, a verdadeira razão por que Manuel Pinho está preso não tem nada a ver com estes argumentos, mas com o facto de ser um antigo ministro de um Governo socialista ou, melhor dizendo, um antigo ministro de Sócrates. Assim sendo, não tem direito a ser levado a sério. A sua defesa não tem direito a ser ouvida. Os juízes que validaram a prisão não pediram ao procurador que apresentasse as provas do que afirma porque há muito que o processo penal foi virado do avesso – o Estado acusa sem ter de provar seja o que for, basta o apontar do dedo.

Em última análise, o caso de Manuel Pinho segue o padrão das modernas táticas penais do DCIAP – difamação, prisão e mentira. Muita mentira. Sem culpa formada, sem direito a defesa e, é claro, sem direito a presunção de inocência.

Ficámos agora a saber que o Estado português lhe nega a mais elementar das garantias constitucionais, qual seja a de ver cumpridas as decisões judiciais que lhe dizem respeito. Foi a isto que chegámos. Quanto ao jornalismo, com afetuosa lembrança de tempos melhores, há muito que se deixou de interessar pela verdade.


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2 pensamentos sobre “Um país doente

  1. Que a verdade e o autor tenham alguma relação respeitável é uma improbabilidade.
    Que a Justiça está transformada em publicadora de indícios com miserável desempenho em processos, é um facto!

  2. Tenho alguma dificuldade em comentar porque de facto não costumo seguir estas odisseias do poder judicial português; mas por outro lado também não quero fazer parte da referida coligação de silêncio…
    De uma coisa estou certa, um país que tem: uma justiça que acusa e leva anos e anos para julgar e se pronunciar finalmente; uma comunicação social, ávida de escândalos, que condena na praça pública sem julgamento e lança os arguidos às feras; e um povo que acha tudo isto muito natural e não se escandaliza nem reage, é realmente um país doente, que, não o reconhecendo, agrava ainda mais a sua situação.
    José Sócrates apresenta argumentos fatuais; esta pode ser uma oportunidade para rebater esses argumentos e não se esconder sob juízos morais preconcebidos e ataques ad hominem.

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