Faz o que eu digo, não faças o que eu faço

(Major-General Carlos Branco, in Jornal Económico, 12/05/2023)

As grandes potências respeitam as regras apenas quando lhes são úteis, descartando-as quando deixam de o ser.


A tão apregoada “Ordem Internacional Liberal” (OIL) tem sido apresentada por alguns comentadores como a inevitável TINA (There is no Alternative) das relações internacionais.

O conceito cunhado há cerca de duas décadas e meia por John Ikenberry, vem propor-nos um relacionamento entre os Estados, em particular entre as grandes potências, pautado por um conjunto de princípios, normas e regras, cujo conteúdo enaltece o caráter benigno de uma Ordem mundial unipolar subordinada aos desígnios da “nação excecional”, como Madeleine Albright chamou aos EUA.

Baseada nas premissas enformadoras da corrente liberal das relações internacionais, a OIL propõe-nos, entre outras coisas, a cooperação entre Estados através de um vasto número de instituições internacionais criadas pelos EUA a seguir à Segunda Guerra Mundial, como sejam, por exemplo, o sistema de Bretton Woods (1944), o qual inclui instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, as Nações Unidas (1945), a NATO (1949), assim como o GATT, mais tarde Organização Mundial do Comércio, apenas para mencionar as mais importantes.

Importa perceber se, na prática, estas organizações têm vida própria, ou se não passam de projeções do poder dos Estados que convenientemente abraçaram os seus objetivos e apoiaram as suas ações; e até que ponto estas instituições vinculam e limitam a ação das potências que as criaram e as promoveram respeitando os seus objetivos. Os factos dizem que não.

As grandes potências respeitam as regras apenas quando lhes são úteis, descartando-as quando deixam de o ser. Tornou-se recorrente a predisposição dos EUA para atuarem fora das regras dessas instituições, sempre que isso lhes seja favorável.

Os EUA foram useiros e vezeiros nesta prática, pervertendo reiterada e abusivamente o tão alardeado espírito de cooperação multilateral, mesmo dentro do seu sistema de alianças, tomando unilateralmente decisões desalinhadas com os pressupostos da OIL.

Os casos de desrespeito pelo sistema são imensos e não caberiam neste texto. Um dos primeiros terá sido a violação unilateral do acordo de Bretton Woods, que regulava os arranjos monetários internacionais desde 1944, tornando-o irrelevante por ter deixado de servir os interesses norte-americanos.

No pós-Guerra Fria, os EUA usaram o seu poder para impor uma ordem coerciva e egoísta sobre o mundo, em vez de subordinarem a sua atuação às regras que norteiam a rede das várias instituições que integram. Entre outros exemplos, salientamos o ataque à Jugoslávia (1999), a invasão do Iraque (2003), a operação militar na Líbia (2011), todas sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, a não adesão ao TPI, a não ratificação da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, ou a retirada unilateral do JCPOA (programa nuclear iraniano).

Podíamos ainda adicionar a esta discussão os privilégios que os EUA e os países da União Europeia desfrutam nos acordos e instituições como o Banco Mundial e o FMI, que levaram a China a replicar essas instituições criando instituições financeiras paralelas.

Não será, portanto, de estranhar que a desacreditação da OIL causada pelo desrespeito das suas normas pelos seus defensores tenha provocado uma reação de contestação, que levou a China e a Rússia a resistir-lhe, e assim evitar que os EUA dominem o sistema internacional económica, militar e politicamente. Como diz o povo, quem semeia ventos, colhe tempestades.


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

7 pensamentos sobre “Faz o que eu digo, não faças o que eu faço

  1. Os EUA estão a travar uma guerra contra a UE (sua vassala) para a dissociar da Rússia e da China. Eles não se importam com as mortes na Ucrânia. Querem uma nova cortina de ferro para manter esse mercado.
    Não podem vencer a Rússia (como os russos não podem vencer os EUA sem autodestruição nuclear) … mas se conseguirem enfraquecê-la TAMBÉM como em 1991, …

    Quando uma civilização, uma nação dominante está no fim da corda, está decadente, está arruinada, tem elites corrompidas, e sabe que vai ser suplantada por outra nação no topo da hierarquia mundial, então, muitas vezes, joga a pior política, semeia o caos à sua volta, destrói o mais possível os outros países para não se afundar sozinha…
    O Império Americano, potência unipolar que governa o mundo desde 1945, está a perder a sua liderança, por isso os EUA querem enfraquecer, ou mesmo destruir, as nações que ousam resistir-lhe, principalmente a China e a Rússia. Os EUA estão, portanto, a usar os ucranianos como carne para canhão para travar uma guerra contra a Rússia…

    O Ocidente já perdeu a guerra economica, e a paz que se seguirá naturalmente ao conflito será o triunfo do campo “anti-ocidental”, ou seja, de três quartos do planeta. Teremos então um mundo multipolar.

    A guerra na Ucrânia nunca deveria ter acontecido.
    Se a UE, na altura do desaparecimento da URSS, tivesse sido capaz de se distanciar dos americanos e tentar uma associação com a Rússia, de uma forma ou de outra – sem qualquer garantia de sucesso -, não estaríamos nesta situação.
    Além disso, se a palavra dada a Gorbachev de não estender a NATO aos antigos satélites soviéticos tivesse sido respeitada, a evolução do comportamento de Putin teria sido diferente.

    Se a paz é inevitável, o que é uma conclusão positiva, poderíamos acrescentar tudo isto sem cair no pessimismo.
    O que restará destas cinzas fumegantes são os ressentimentos, e penso que serão tão altos como o galo de Barcelos, símbolo do orgulho.

    A Europa, sob a tutela americana, quis aproveitar-se da falsa moeda americana, foi o seu próprio suicídio. Agora, os Estados Unidos tentam adiar o fim inevitável de um mundo partilhado e colocar pequenos fantoches em ação, que não vai mudar o resultado: é o fim do império dos falsificadores… com dor e vergonha.

    Desde 1945 que Washington sabia que a Europa seria um concorrente perigoso quando fosse reconstruída; a reunificação alemã, combinada com a disponibilidade de energia russa barata, foram os factores que desencadearam o ataque ao gasoduto do Báltico em …..!

    A União Europeia declarou guerra à Rússia ao apoiar a Ucrânia, como se tivéssemos uma guerra na fronteira da Espanha!!! O que fizemos para apoiar os curdos, os arménios contra a Turquia??? Temos de esperar que Putin ponha o seu orgulho no bolso para negociar a paz com o Zelenski, que já recusou um cessar-fogo.

    Eu diria que a UE não poderia de modo algum ter-se distinguido dos americanos, uma vez que a UE federalista é uma criação americana e os seus funcionários que tomaram o poder são agentes americanos. A América atribuiu um lugar à Europa, tal como à Austrália, ao Canadá, ao Japão, à Coreia…. Portanto, somos súbditos de um Estado vassalo nos degraus do Império. Somos contribuintes de uma coligação de cerca de quarenta dos países mais endividados do planeta e estamos em guerra com os nossos fornecedores, que já não querem ser pagos em dinheiro de monopólio. Pensamos que, se nos apoderarmos desses fornecedores, se colocarmos uma equipa de gestão que nos agrade, não teremos de pagar mais nada, nem mesmo em dinheiro de monopólio. Não vai resultar, daqui a quatro ou cinco meses vamos finalmente ver a parede para onde estamos a cantar.

    A Europa, e Portugal em particular, afundou-se perante a Rússia, uma nação com a qual tínhamos uma parceria interessante. Há muito que os Estados Unidos compreenderam que a sua liderança está numa inclinação descendente, mas não querem afundar-se sozinhos. E nós estamos a pagar o preço.

    É evidente que a UE é um império subserviente ao império americano e que já não há diplomacia possível, o que torna as crises impossíveis de parar. Enquanto não sairmos do império, não encontraremos uma diplomacia razoável, porque plural.

    Há uma outra frente na situação que nos é imposta na Europa: Os povos foram despojados da sua soberania pela tecnoestrutura de Bruxelas e pelos seus cúmplices na maior parte dos governos coniventes, tudo transmitido e apoiado pelos meios de comunicação social sob perfusão capitalista.

    Onde é que se pode exprimir a voz destes povos, presumivelmente todos hostis a esta guerra? Em lado nenhum, enquanto Ursula van der Leyen pode decidir sozinha o envio de armas para a Ucrânia sem qualquer legitimidade? Enquanto em Portugal não se fez qualquer debate na assembleia ? Para podermos efectivamente iniciar relações renovadas e justas com a Rússia, em particular, temos antes de mais de sair deste “confisco”, desta pseudo-democracia europeia-globalista e da sua máquina, que apenas funciona como um cavalo de Tróia perverso e fascista. Sair desta sujeição doentia sem condenar a colaboração das nações, dos seus povos e o futuro da Europa que constituem. Sabendo que uma nova visão e uma nova direção requerem urgentemente novas pessoas e novas mentes.

    É a lei da dominação que move os Estados Unidos, e eles farão tudo para preservar as suas vantagens. Não previram que o mundo não ocidental ousaria voltar-lhes as costas. Estes países ousam agora, já não têm medo da dominação americana, vão fazê-la pagar: Iraque, Afeganistão, Líbia, Sérvia. É tempo de vingança para todos os países não ocidentais. Encontraram o calcanhar de Aquiles americano: A desdolarização.

    A Europa não é a paz, a Europa é a guerra!
    Os pobres europeus ingénuos estão convencidos! Durante este tempo, a China avança, os americanos manipulam.E nós, Portugueses, estamos a sonhar …., sem contar com a vacinação duvidosa.

    Teoricamente, a guerra termonuclear total (GTT) libertar-nos-ia a todos das nossas preocupações quotidianas, mas não acontecerá porque aqueles que falam dela amam demasiado o seu “deus dinheiro” para renunciar… Preferirão uma paz instável para enriquecerem…. Como em 18 e 45.

  2. Esta cena de toda a gente se ocupar de maldizer a TINA sem que alguém explique qual a alternativa que existe ou que entendem dever construir-se, sempre me confunde.
    Tanto mais que, quando dessas alternativas aparecem indícios, são os financiadores da TINA que aparecem a de algum modo as financiarem as alternativas.
    Se a par disso se visse um claro designio de baixar o consumo e os privilégios dos habitantes dos países da TINA, como inevitavelmente resultaria dessas alternativas, o acréscimo de credibilidade seria irrecusável.

    • Ainda não comprrendeu que os triliões de dólares que são reservas dos países do Sudeste Asiático, voltarão, inúteis, para os EUA no Fed… Os dólares, em circulação no mundo, já não financiam a inflação dos EUA, que ficarão nos EUA… Quem financiará o custo de vida exorbitante dos americanos?
      Ninguém!

      Como todos os escravos, o Presidente não tem outra opção senão obedecer ao seu senhor, caso contrário os subúrbios estão prontos….

      Os va-t-en guerra descobrirão um dia em breve que terão sido simplesmente os vendedores do comerciante americano, o primeiro fabricante de armas e o primeiro moralizador da humanidade: a incultura no seu melhor!

      Os Idiotas úteis que repetem o catecismo da NATO…para sua desgraça; sim há alguns mas também aqueles que não querem fazer a guerra e que se obrigam …. em 14 deixaram a flor com a arma, mas rapidamente desiludidos, os refractários …. dispararam.
      Na Ucrânia já devem estar mortos pelo menos 180.000 ucranianos, por nada, por uma loucura estúpida, ódio aos russos. Do lado russo são mais espertos, mandam o grupo Wagner, mercenários que gostam disso (há alguns). A Ucrânia, enquanto país, é uma criação artificial de 1919, uma reunião de povos demasiado diferentes que juntaram autoproclamados tolos à volta de uma mesa para cortar o bolo europeu.
      Em 1940, voltaram a pôr em ação 50.000.000 de soldados, sem contar com os civis ….
      e tudo isto para quê? para chegar hoje a um verdadeiro confronto por procuração entre o Estado profundo americano e o Estado profundo russo-oligárquico, com a ameaça nuclear como pano de fundo.
      Os chineses estão a prestar atenção a Arte da Guerra, do general chinês Sun Tzu, não é um simples manual táctico sobre como derrotar um inimigo. É também uma reflexão sobre a natureza humana e as condições psicológicas que permitem ganhar vantagem, mesmo quando as coisas não são a priori favoráveis do ponto de vista material.
      Hoje, as condições materiais são-lhes favoráveis, sem dúvida.
      Então, o que será o amanhã, uma NOM no Ocidente e uma rota da seda no Oriente, uma travessia ocidental e um renascimento momentâneo no Oriente?

    • Tanto papel escrito só na última década sobre redirecionar a produção para o necessário, bem mais sustentável que o luxo para meia dúzia, bem de como é quem cria a moeda que cria a economia, e esta gente a dizer que ninguém explica.
      Ninguém explica como um problema de contabilidade que não é, lá isso não, mas os modelos da TINA que mal acertam uma os idiotas úteis só questionam quando é o clube errado a cumpri-los, que os clubes certos nem tentam que o sabem de irrelevante e preferem facilitar as portas douradas. Falam de credibilidade, como se alguma vez fossem partir de algum raciocínio sem ser pela conclusão.

Deixar uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.