EUA provocam tumulto na Geórgia para abrir nova frente contra a Rússia

(Por Brian Berletic*, in Geopol.pt, 13/03/2023)

Já em 2003, o governo dos Estados Unidos patrocinou a mudança de regime na Geórgia


Não é coincidência que, enquanto Washington faz uma guerra por procuração contra a Rússia na Ucrânia, os conhecidos focos de problemas noutros pontos da periferia da Rússia tenham voltado a incendiar-se. Na região do Cáucaso, na nação da Geórgia, começaram os protestos, visando o actual governo e tentando obstruir uma lei de transparência destinada a expor e gerir o próprio tipo de interferência americana e europeia que impulsiona os protestos.

A BBC, no seu artigo, “A Geórgia protesta: A polícia empurra os manifestantes de volta do parlamento”, afirmaria:

«A polícia utilizou canhões de água e gás lacrimogéneo contra manifestantes na capital da Geórgia, Tbilisi, por uma segunda noite. As multidões estão zangadas com uma lei controversa de estilo russo, que classificaria grupos não governamentais e de meios de comunicação como “agentes estrangeiros” se recebessem mais de 20% dos seus fundos do estrangeiro.»

O artigo também dizia:

«Uma lei semelhante na Rússia tem sido utilizada para limitar severamente a liberdade de imprensa e suprimir a sociedade civil. “Pensamos que o nosso governo está sob influência russa e isso é muito mau para o nosso futuro”, disse Lizzie, um dos muitos estudantes que participaram nos protestos.»

No entanto, é bastante claro que por “sociedade civil”, a BBC está a referir-se a grupos de oposição patrocinados pelo Ocidente activos na Geórgia desde o colapso da União Soviética. Para além da ironia dos grupos de oposição patrocinados pelo Ocidente que se queixam da “influência russa” quando eles próprios são produtos da influência EUA-Europa, os protestos procuram especificamente obstruir as tentativas da Geórgia de proteger a sua soberania de Washington, Londres, e a influência injustificada de Bruxelas.

A BBC tenta lançar dúvidas sobre as motivações do governo georgiano para aprovar leis destinadas a expor o financiamento estrangeiro dentro do espaço político e mediático da Geórgia.

O artigo afirma:

«O presidente do Sonho Georgiano Irakli Kobakhidze disse que as críticas ao projecto de lei como sendo semelhante à própria legislação repressiva da Rússia eram enganadoras. “No final, a agitação acabará por desaparecer e o público terá transparência no financiamento das ONG”, disse ele.»

Contudo, Eka Gigauri da Transparency International disse à BBC que as ONG já estavam sujeitas a 10 leis diferentes e que o Ministério das Finanças já tinha pleno acesso a contas, financiamento e outras informações.

Embora no início possa parecer estranho que uma organização chamada “Transparency International” estivesse a argumentar contra uma maior transparência, especialmente no que diz respeito a algo tão sensível como o financiamento estrangeiro, um olhar sobre o próprio financiamento da Transparency International que inclui o Departamento de Estado dos EUA, a Comissão da UE, e o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, torna-se claro que a organização existe para fazer avançar os objectivos da política externa ocidental, especificamente à custa da transparência real.

A BBC tenta reforçar a sua narrativa alegando que os manifestantes estão a lutar pelo seu “futuro” na União Europeia, no entanto, o que a BBC está na realidade a descrever não é apenas uma repetição dos esforços de mudança de regime patrocinados pelos EUA que visaram a Ucrânia em 2014, desencadeando o conflito em curso no qual a Rússia interveio desde então, mas também uma repetição do desempenho da interferência dos EUA na própria Geórgia.

A História repete-se

Já em 2003, o governo dos Estados Unidos patrocinou a mudança de regime na Geórgia.

Num artigo de 2004 do Guardian londrino intitulado, “Campanha dos EUA por detrás da agitação em Kiev”, o jornal não só fala da interferência dos EUA na Ucrânia no meio da chamada Revolução Laranja, mas também na Sérvia e na Geórgia.

O artigo admite:

«…a campanha é uma criação americana, um exercício sofisticado e brilhantemente concebido no branding ocidental e no marketing de massas que, em quatro países em quatro anos, tem sido utilizado para tentar salvar eleições fraudulentas e derrubar regimes repugnantes.»

Financiada e organizada pelo governo dos EUA, destacando consultoras americanas, sondadores, diplomatas, os dois grandes partidos americanos e organizações não governamentais dos EUA, a campanha foi utilizada pela primeira vez na Europa em Belgrado em 2000 para vencer Slobodan Milosevic nas urnas.

Richard Miles, o embaixador dos EUA em Belgrado, desempenhou um papel fundamental. E no ano passado, como embaixador dos EUA em Tbilisi, ele repetiu o truque na Geórgia, treinando Mikhail Saakashvili em como derrubar Eduard Shevardnadze.

A partir de 2003, os Estados Unidos iriam fornecer armas e treino aos militares da Geórgia. Em 2008, a Geórgia atacaria a Rússia numa guerra por procuração, que em muitos aspectos justifica as preocupações de segurança nacional de Moscovo em relação à Ucrânia a partir de 2014.

Enquanto muitos, tanto nos governos ocidentais como nos meios de comunicação social, tentam retratar o conflito de 2008 como uma “invasão russa”, a Reuters num artigo de 2009 intitulado, “A Geórgia iniciou uma guerra com a Rússia”: relatório apoiado pela UE”, relataria:

“Na opinião da Missão, foi a Geórgia que desencadeou a guerra quando atacou Tskhinvali (na Ossétia do Sul) com artilharia pesada na noite de 7 para 8 de Agosto de 2008”, disse a diplomata suíça Heidi Tagliavini, que liderou a investigação.

O texto observaria também:

«…as conclusões foram particularmente críticas quanto à conduta do aliado norte-americano Geórgia sob a presidência do presidente Mikhail Saakashvili e são susceptíveis de prejudicar ainda mais a sua posição política.»

Foi Mikhail Saakashvili que o Guardian, no seu artigo de 2004, admitiu ter chegado ao poder na sequência de interferência política “organizada pelo governo dos EUA”.

Georgia novamente um procurador:
Washington procura uma nova frente contra a Rússia

Apesar do que muitos manifestantes em Tbilisi podem pensar estar a protestar, a realidade é que Washington procura abrir uma segunda frente contra a Rússia para melhorar as suas probabilidades em relação à sua flagrante guerra por procuração na Ucrânia.

Longe de especulações, a utilização da Geórgia exactamente para este fim foi articulada em detalhe num documento da RAND Corporation de 2019 intitulado, “Estendendo a Rússia“.

Entre outras medidas destinadas a alargar e esgotar a Rússia, incluindo “Fornecer ajuda letal à Ucrânia”, estava a “Explorar as tensões no Cáucaso do Sul”.

O documento é elaborado:

«…os Estados Unidos poderiam pressionar para uma relação mais estreita da NATO com a Geórgia e o Azerbaijão, levando provavelmente a Rússia a reforçar a sua presença militar na Ossétia do Sul, Abcásia, Arménia, e Sul da Rússia.»

A Rússia sendo forçada a reforçar a sua presença militar na Ossétia do Sul, Abcásia, Arménia e sul da Rússia, Washington espera, desviaria recursos da Ucrânia.

O documento explica melhor:

«A Geórgia há muito que procura a adesão à NATO; aderiu ao Conselho de Cooperação do Atlântico Norte em 1992 pouco depois de se ter tornado independente e aderiu ao programa da Parceria para a Paz em 1994. Em teoria, os aliados colocaram a Geórgia no caminho da adesão, mas a guerra russo-georgiana de 2008 colocou este esforço num impasse indefinido. A Geórgia, contudo, nunca desistiu das suas ambições da NATO, participando em operações da NATO no Mediterrâneo, Kosovo, Afeganistão, e noutros locais. Se a oposição europeia impedir a adesão da Geórgia à Aliança, os Estados Unidos poderiam estabelecer laços de segurança bilaterais.»

Claro que tudo isto depende de que a Geórgia seja dirigida por um regime de clientes americanos obedientes, o que exige os protestos actuais que também em e por si mesmos criam instabilidade ao longo das fronteiras da Rússia e servem o mesmo objectivo de aumentar a pressão sobre a Rússia em geral.

Enquanto o recente artigo da BBC sugere que os manifestantes na Geórgia estão a lutar pelos seus melhores interesses, a RAND Corporation revela quão devastadora tem sido a utilização da Geórgia pelos Estados Unidos contra a Rússia.

As observações de relatórios:

«Em agosto de 2008, após a ruptura dos acordos de paz com separatistas, a Geórgia travou uma breve guerra sobre os enclaves da Ossétia do Sul e da Abcásia, duas províncias pró-russas semi-independentes da Geórgia. A guerra revelou-se desastrosa para a Geórgia. A Rússia interveio rapidamente e acabou por ocupar ambas as regiões e, brevemente, também outras partes da Geórgia. A Geórgia assinou um acordo de cessar-fogo a 14 de Agosto de 2008, apenas oito dias após a intervenção russa. No entanto, as forças russas permanecem na Ossétia do Sul e na Abcásia, ambas as quais declararam desde então a sua independência.»

O jornal adverte também que se Tbilissi pretendesse aderir à NATO, “a Rússia poderia muito bem intervir novamente”.

Tal como na Ucrânia, onde a política externa dos EUA desviou a nação, o seu povo, o seu governo e as forças armadas, colocando-a no caminho da autodestruição total, os EUA procuram incendiar e queimar outras nações ao longo da periferia da Rússia, numa tentativa de “estender a Rússia”, como dizem literalmente os documentos de política dos EUA nos seus títulos. Isto inclui a Geórgia.

Para além disso, o facto de os manifestantes patrocinados pelos EUA se queixarem da “influência russa”, mas lutarem avidamente contra legislação destinada a tornar o financiamento estrangeiro mais transparente, ilustra mais uma vez como supostos “valores ocidentais” são meras cortinas de fumo por detrás das quais os EUA e os seus aliados avançam com os seus objectivos de política externa em contravenção ao direito internacional, e não em apoio do mesmo.

  • Autor: Ex-marine, investigador e escritor geopolítico 

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

3 pensamentos sobre “EUA provocam tumulto na Geórgia para abrir nova frente contra a Rússia

  1. O parlamento da Geórgia aprovou uma lei que obriga qualquer organização não-governamental com mais de 20% de financiamento estrangeiro a registar-se como ‘agente estrangeiro’. Não vejo o que esta decisão possa ter de extraordinário, se tais ONG’s não tiverem vergonha de ostantar quem paga pelo exercício das suas aactividades na Geórgia.
    Vale a pena recordar o que a lei dos Estados Unidos da América declara sobre o mesmo assunto:

    Additional exemptions from registration are provided for diplomats and officials of foreign governments and their staffs properly recognized by the U.S. Department of State, persons whose activities are of a purely commercial nature, lawyers engaged in legal representation of foreign principals in the courts or similar type proceeding that does not involve influencing U.S. domestic or foreign policy, and those registered under the Lobbying Disclosure Act, 2 U.S.C. § 1601 et seq.
    Fonte: https://www.state.gov/non-governmental-organizations-ngos-in-the-united-states/

    Ou seja, qualquer organização não-governamental cuja actividade vise influenciar a política interna ou externa dos Estados Unidos da América é obrigada a registar-se (is NOT excempted from registration).

  2. Pois, como se costuma dizer, em relaçao aos Estados Unidos , o melhor é ‘olhar-se para o que dizem, não para o que fazem’. Não são exemplo para ninguém que se respeite. Infelizmente parece que a ficha ainda não caiu e a maior parte das pessoas não percebe qual é o jogo, nem o que está em jogo.
    A ideologia que domina, com o apoio da Escola e dos Media corporativos continua a alimentar uma visão heroica e maniqueísta da história e esta de vitória em vitória é bem capaz de levar a nossa precária humanidade até à derrota final!

  3. Pelo que se lê, dizem os entendidos em transparência, que a designação como ‘agente estrangeiro’ se define pelo volume de financiamento.
    Recorda-me o tempo em que o PCP se dizia ‘estritamente patriótico’ quando o apoio da URSS ao partido e aos seus militantes fazia dele um ‘agente soviético’ nos termos de um tal critério.

    Contas claras é legítima exigência.
    Um registo como ‘agente estrangeiro’, não é transparência, é designação para quem promove ou gere interesses de terceiros.

Leave a Reply to Antonio FerraoCancel reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.