(Hugo Dionísio, in Canal Factual, 03/02/2023)

As ondas de paixão que unem os centros do poder neoliberal e neoconservador à cúpula do poder leal ao regime ultranacionalista ucraniano, encontram muitos pontos em comum, que tornam possível um casamento com potencial altamente destrutivo para o povo pacífico e trabalhador daquele país. Povo, martirizado por um regime belicista e com uma ideologia odiosa, que merece toda a solidariedade, devida a todos os povos do mundo.
Um dos mais importantes dotes a cumprir, para a consecução da união “amorosa”, está bem traduzido na recente reforma laboral do país, que Michael Hudson comparou – não sem razão – à do próprio Pinochet, o que nos permite caracterizar aquele regime não apenas como reminiscente da pior das versões fascistas – o nazismo -, como prossecutor da doutrina do choque neoliberal, inaugurada pelos Chicago Boys de Milton Friedman, religiosamente praticada por Thatcher e agora transposta para o país do leste europeu com a manifesta oposição do seu povo trabalhador.
Vejamos que, mesmo organizações ocidentais, sempre tão branqueadoras da ideologia fundadora daquele regime, foram obrigadas a reconhecer, nos seus comunicados, que “o governo Ucraniano pode usar a lei marcial e a invasão russa para atacar os direitos laborais”. Olhando agora para a extensão da “reforma” laboral e o epílogo do processo com uma carta de amor enviada às maiores corporações de Wall Street – (ver aqui) -, pelo próprio presidente comediante, é razão para nos questionarmos sobre o que unirá tais organizações ditas “democráticas” a uma figura corrupta (vide Pandora Papers) que recruta à força para a guerra, vende o país ao estrangeiro – Blackrock e Monsanto dominam hoje uma parcela enorme da propriedade rural e urbana do país -, e ataca os direitos dos trabalhadores, tornando-os carne para canhão, não apenas nos campos de batalha, mas também nas mãos dos oligarcas que sustentam o seu poder.
Diga-se, em bom rigor, que a tentação da “reforma” neoliberal das leis laborais nesse país já não é de hoje. A cada governo pró-ocidental e nascido de uma qualquer revolução laranja, lá vinha a tentativa de alteração e consequente destruição do património jurídico-laboral do país. Claro que, quando se sabe que a maior central sindical do país tem mais de 50% da população activa sindicalizada nas suas estruturas, bem se percebe que o ataque é aos sindicatos e à própria democracia que sem eles não vive. Para os que ficam tão chocados com os negócios que muitos países fazem com a China, em que esta constrói as infraestruturas e depois obtém benefícios de concessão, no caso concreto, o Fundo da Propriedade Estatal da Ucrânia anunciou a privatização do porto de Belgorod-Dnestrovsky em Odessa. A teoria é a de que o porto não era rentável e a receita nem para os salários dá. Até parece que por cá também não foram geridas, de forma tão danosa quanto criminosa, empresas públicas, apenas para justificar a sua privatização a baixo preço. Ora, se isto aconteceu em países como Portugal, imagine-se como é no país mais corrupto do mundo, nas palavras do próprio Bill Gates. O facto é que estes fundos abutres ocidentais, não constroem nada, só pilham. Tudo baseado na corrupção, na aquisição com ganhos elevados para o erário público dos países “investidos” e sempre, mas sempre, em lógicas comunicacionais e argumentativas comprovadamente falaciosas. Se houve algo que ficou provado à saciedade, foi que a gestão pública, quando bem feita, não só é mais eficiente, como mais benéfica, para os utentes e para o país. Claro, não está ao dispor da pilhagem medieval, disfarçada pela aura da sofisticação financeira.
Para se ter uma ideia dos efeitos nefastos da “reforma” do passado Verão (como é diabolicamente maligna essa palavra “reforma”), cerca de 70% dos trabalhadores deixam de estar sob a protecção do Código do Trabalho. Nascida das entranhas das cúpulas neoliberais e propagandeada na Conferência de Lugano “Ukraine recovery”, um amplo festival de pilhagem, travestido de “privatizações, liberalização e transparência”, e bem relatado em aqui, no que toca ao trabalho, toda a acção se centra na criação de um regime paralelo que derroga a aplicação a todos os trabalhadores de pequenas e médias empresas, até 250 trabalhadores.
Estes, ao invés de contarem com os sindicatos, a contratação colectiva e o próprio código para regularem as suas condições, passam a “negociar” directamente com os patrões, numa lógica individual. Ou seja, como estabelece a lei em causa “em condições de igualdade”. Condições de “igualdade” que sabemos não existirem entre as partes, sendo precisamente por isso que nasceu o direito do trabalho.
Então, o que há de errado com o Código do Trabalho ucraniano? A bem dizer, nada, apenas não se coaduna às pretensões neoliberais em voga no Ocidente e tão bem conhecidas no nosso país. O Código do Trabalho é de 1971, ou seja, ainda do tempo da URSS, e embora tendo sido alvo de muitas alterações, mantém a matriz protectora do direito do trabalho, própria de um regime jurídico que visa proteger os trabalhadores e o seu direito ao trabalho. Basicamente, o código tem tudo o que tem um qualquer código laboral europeu mais protector: férias, despedimentos com justa causa, contratação colectiva, participação sindical, greve…
De 2000 em diante, sempre que a direita neoliberal e pró-ocidental estava no poder, foram várias as tentativas de afastar este Código do Trabalho, a última das quais em 2021. As massivas manifestações, à data, tornaram impossível a aprovação das leis propostas, tendo o governo recuado nas suas pretensões.
Consequentemente, e perante as dificuldades, vem o Foreign Office Inglês (quem mais?) e, através de um programa financiado pelo UKAid, no valor de 180 milhões de Libras, não apenas estabeleceu os parâmetros da reforma como produziu uma estratégia política e de comunicação, que passou por partir a reforma em vários projectos mais pequenos e em usar a lei marcial para contornar os processos de consulta pública: um procedimento “altamente democrático”, portanto.
O resultado? Para além do que já referi atrás, ainda encontramos coisas como:
• Contrato de trabalho de 0 horas;
• Negociação individual com a possibilidade de afastamento do direito à liberdade sindical, à greve e à contratação colectiva, nas PME;
• Desregulação dos horários de trabalho, férias, despedimento e categorias profissionais.
Na estratégia de comunicação podemos encontrar todo o tipo de chavões neoliberais: “a lei laboral é muito rígida”; “há que simplificar e facilitar o despedimento e a contratação”; “ a liberalização vai levar ao aumento do emprego e melhoria dos salários”; “a liberalização levará a postos de trabalho mais dignos”; “a rigidez da lei laboral afasta os investidores”; “ a lei é protectora, mas não é aplicada”, e por aí fora.
Esta “mãozinha” dada pelo padrinho Inglês Boris Johnson e a madrinha Úrsula, acaba com um casamento de sonho, declarado através de uma carta de amor às maiores empresas de Wall Street, em que o comediante sem graça apresenta o programa AdvantageUkraine e diz, entre outras coisas:
– O meu país tem muitos e bons negócios para quem quiser investir (daí a mão de obra barata);
– São 400 milhões em parcerias publico privadas (leia-se “teta”) e privatizações, incluindo da banca pública;
– Um projecto gerido pelo USAID (esta organização é a encarnação do mal) que ajudará os investidores a identificar as melhores oportunidades (leia-se, os EUA a pilharem a Ucrânia);
– Esta é a maior oportunidade de reconstrução desde a Segunda Guerra mundial (leia-se: paguem-me que eu dar-vos-ei tudo).
Não se conhecendo nenhum país que tenha saído mais rico e desenvolvido de um casamento deste tipo, pois o “dote” é extremamente caro e deixa a família da noiva (o povo) na mais absoluta penúria, até a OIT veio criticar o arranjo. Aliás, são as próprias organizações sindicais europeias e inglesas – com posicionamentos questionáveis sobre este conflito, para não correr o risco de exagerar – que vêm anunciar “o fim da democracia”. É o caso da organização inglesa “Opendemocracy” ligada ao Labour e ao TUC. São estes também que vêm reconhecer que, ao contrário dos tempos da URSS, hoje, os sindicatos ucranianos não têm qualquer participação na gestão das empresas. O que faz o tempo a estas cabeças!
Bem, dizer isto é manifestamente exagerado. Pois quer dizer que, das duas uma, ou consideram o regime ucraniano actual uma “democracia” e isso é preocupante, ou então andaram a dormir este tempo todo, desde o golpe de extrema-direita que apoiaram em 2014.
É que, todo este casamento começou a construir-se aí mesmo. O primeiro partido aniquilado – formalmente, claro – foi logo o partido comunista ucraniano, um partido que, por sinal – e não é para admirar – se opunha, e opõe (agora clandestinamente), à intervenção russa. Portanto, nem foi sequer um problema de ódio racial anti russo, foi mesmo um problema de ódio ideológico.
Depois seguiram-se os sindicatos, hoje mais ameaçados do que nunca, muitos encerrados e eliminados administrativamente, com as suas propriedades confiscadas. Neste caminho, nenhum partido de esquerda, do PC ao Partido Socialista sobrou. Foram mais de uma dezena os partidos extintos e, inclusive, encarcerados alguns dos seus líderes. Nem a Igreja ortodoxa se safou, numa perseguição religiosa baseada também no ódio racial.
Se a isto juntarmos as prisões arbitrárias, as punições e linchamentos públicos de cidadãos russófonos, ucraniano-russófonos, comunistas, ciganos e outros… Tudo bem documentado desde 2014. Dá para pensar no que anda esta gente a ler, para dizer que agora é que vai acabar a democracia. Fazia-lhes falta ler este artigo sobre a natureza do nacionalismo naquele país, o papel da CIA na sua promoção, as ligações entre Bandera e o nazismo e, por fim, a assunção da ideologia de Bandera pelo regime atual, como seu elemento identificativo e fundador – uma ideologia racista, xenófoba e intolerante. Está documentado e é assumido pelos próprios! Não há um único “democrata” que se preze que possa dizer: “não, eu não sei que o regime ucraniano se baseia na ideologia de Bandera!”. Notas, bandeira, hino e outros símbolos, têm consagrado o tríptico de Bandera! O que é preciso mais? Já não chega de faz de conta?
O mais caricato disto tudo é chamar ditadura ao regime russo. Com limitações óbvias e conhecidas (mas nem sempre reportadas da forma adequada), a Rússia é, mesmo assim, um país que em todos os índices democráticos, sociais, culturais, corrupção e económicos tem uma performance bem mais simpática do que a do regime do comediante sem graça. Têm piada estas classificações fáceis, típicas da ideologia identitária e “woke” que o neoliberalismo injectou nalguns “democratas” e que os levou a trocar as questões do trabalho, pelas das minorias urbanas radicais e intolerantes. O que tanto jeito dá ao desesperado e decadente império! Conseguir desviar uma parte importante da luta pela emancipação humana, das questões essenciais como a desigualdade e injustiça material, as quais impedem a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, orientando as massas para questões que, sendo importantes, são apenas decorrentes das primeiras… foi de mestre! É equivalente a um assaltante conseguir colocar um cão de guarda a correr atrás da própria cauda, ao invés de o ter a correr atrás de si (hei-de voltar a esta comparação!). Eis o que fazem os ingénuos identitários “woke”, correm atrás dos problemas, ao invés de eliminarem o mal que os cria. Ao invés, até são apanhados na armadilha do apoio a “causas” que elas próprias entroncam na natureza dos problemas que dizem combater, como o caso da guerra no leste europeu, que opõe as duas maiores potências militares do planeta.
O desesperado e decadente império agora encontra-se em divórcio acelerado com a China e programa para 2025 a sua próxima batalha. Uma vez mais, uma batalha desesperada, uma perigosa fuga para a frente, que constitui uma tentativa de criar uma situação de caos mundial do qual os EUA – como na Segunda Guerra Mundial – voltem a emergir como única potência não destruída e com os meios para se apoderar – como sucedeu na Europa, Japão e Coreia do Sul – dos mais variolosos recursos desses países, a troco de uma “ajuda” que não podem recusar. Aliás, esse processo já está em curso, hoje e neste preciso momento, nas várias dependências neocoloniais identificadas como UE e G7.
Não obstante, já anda gente muito assustada com isto tudo, ao ponto de Pedro Sanchéz vir dizer que “é preciso falar mais de paz”, o novo primeiro-ministro checo vir criticar as sanções e apelar ao diálogo, a Croácia idem e Lula da Silva ter dado uma lição de humanidade a Mácron, o empregado da Mackinsey e dos Rothschild, quando lhe disse “a nossa guerra é contra a fome”. A de Macronette também deveria ser…. Devia.
Numa UE onde já não chegam as pontes e as arcadas para abrigar o povo que é atirado para a rua, continua a haver dinheiro para enterrar no buraco negro de Zelinsky e companhia. Que só serve para matar mais ucranianos. Dinheiro, esse, bem visível nos bólides de 200.000 euros que, com a matrícula ucraniana, rodam por Lisboa. Dá que pensar: o povo trabalhador é despojado dos seus direitos, para que alguém tenha carros e casas caras. Onde estão agora os defensores do povo ucraniano, com as suas bandeirinhas de Bandera?
Na cimeira UE-Ucrânia temos a celebração do casamento de sonho, de onde sairá a promessa de união na vida (dos EUA) e na morte (da Ucrânia), na saúde (dos EUA e NATO) e na doença (do povo ucraniano e europeu) e na riqueza (das elites oligárquicas e seus capatazes dos EUA/G7 e UE) e na pobreza (dos povos envolvidos).
Uma espécie de casamento por contrato, em que a noiva é arrastada a ferros, pelo pai (o comediante sem graça) que a deveria proteger dos agressores. O pai, neste caso, recebeu um dote bem guarnecido. Agora, alguém que apareça e diga que existe impedimento!
Voluntários? Foi o que pensei!
P.S. Para quem pretender uma informação mais detalhada sobre as alterações à legislação do trabalho na Ucrânia, ver aqui.
Não concordo com o que diz o autor do comentário: é que nem o Pinochet se lembraria de tal reforma!
Tem razão. Lembrar-se-ia sim! Mas é para dramatizar e chamar á atenção para a gravidade da coisa.